Roberto Romano*
"A eisangelia destina-se a punir
governantes infiéis que prejudicam o erário. Os acusadores eram punidos
se a causa não tivesse bom fundamento. Por muito tempo o acusador era
livre da multa de mil dracmas e perda dos direitos civis caso desistisse
do processo ou falhasse em conseguir um quinto dos jurados. Tal
prerrogativa, abusada por sicofantas, foi abolida no quarto século, mas
só em relação à multa. Foi mantida a perda dos direitos políticos dos
acusadores incapazes. Árbitros (diaitêtai) também eram submetidos ao
afastamento por má conduta. A mais importante eisangelia era destinada
aos crimes contra o poder público, como ardis para subverter
a Constituição, péssima conduta na gerência dos assuntos financeiros,
juiz ou promotor que aceitasse agrados, etc. Seria punido, se preciso
com pena de morte, quem tentasse enganar o povo".*
Falamos em golpes de Estado e impeachment da presidente. E veiculamos crenças no sistema democrático. Fantasmas de golpismos são aventados, mas os golpes reais se efetivam nos gabinetes palacianos. Luiz Inácio da Silva é hoje o governante de fato. Trata-se de um golpe de Estado digno de Maquiavel, Gabriel Naudé
e outros clássicos da política. Muitos acadêmicos e jornalistas
dogmatizam sobre as nossas instituições. Eles proclamam a “normalidade
institucional”, mas ignoram o que é o golpe de Estado. Um deles mudou a
Presidência da República. A pessoa eleita serve de anteparo para uma
prática ilegítima. Como diz Carl Schmitt, soberano é quem decide sobre o estado de exceção. No Executivo decide Luiz Inácio.
Temos um regente não autorizado pelo direito público, usurpação
explícita e confessada. E tal fato não pode ser dito “normal”. A
interpretação dos golpes de Estado vem da Antiguidade. Já Aristóteles
pensa o fenômeno. A ordem moderna conheceu sua prática e teoria. Mas no
Brasil o conceito ainda não foi assimilado, pois “golpe” é visto como
ação de quartéis e manobras jurídicas. Em matéria golpista existe bem
mais do que sonha - ou delira - nossa vã filosofia.
Não discutimos muito o poder popular e a responsabilidade administrativa que fundamentam a democracia e o afastamento do poder no mais alto cargo. A corrupção
distorce o exercício das funções públicas. Na Grécia, origem dos nossos
costumes políticos, existiram diplomas legais contra o suborno
político. Eram quatro leis: a graphe doron, que proibia dar e receber presentes ilicitamente, a graphe dekasmou, para a compra de corpos judiciais, a graphe doroxenias,
para coibir um júri de livrar o réu por ter dele recebido pixulecos.
Havia outra lei, não nomeada, para punir promotores ou testemunhas que
receberam agrados. A assembleia se unia ao Areópago
para investigar e fornecer o primeiro veredicto sobre casos de
corrupção. Temos aí os germes das comissões parlamentares de inquérito.
Apesar de semelhantes leis, a democracia ateniense conheceu a leniência,
o que gerou o tom enfático dos escritores éticos contra o fato
corruptor (Conover, Kellam: Anti-bribery Legislation in Practice: how
legal inefficacy strengthened the Athenian Democracy).
Além das normas citadas, uma era dirigida contra o péssimo exercício do poder, a eisangelia.
Não existe poder democrático sem que o povo seja de direito e de fato
soberano. É com tal pressuposto que os ingleses do século 17 retomam a
ideia da eisangelia, traduzida por impeachment.
Ela se aplica quando uma autoridade (rei, deputado, juiz, bispo) não
cumpre a lei e não presta contas satisfatórias ao povo dos recursos
naturais, econômicos, humanos. Tal é a base histórica da accountability
instaurada pelos gregos. É também o mesmo núcleo de noções que hoje
determina o recall. O debate sobre tais pontos deveria partir da gênese
democrática, verificar se eles podem e devem ser assumidos em nossos
tempos, e quais as garantias de sua aplicação sem desvios despóticos,
demagógicos, etc.
A eisangelia destina-se
a punir governantes infiéis que prejudicam o erário. Os acusadores eram
punidos se a causa não tivesse bom fundamento. Por muito tempo o
acusador era livre da multa de mil dracmas e perda dos direitos civis
caso desistisse do processo ou falhasse em conseguir um quinto dos
jurados. Tal prerrogativa, abusada por sicofantas, foi abolida no quarto
século, mas só em relação à multa. Foi mantida a perda dos direitos
políticos dos acusadores incapazes. Árbitros (diaitêtai) também eram
submetidos ao afastamento por má conduta. A mais importante eisangelia
era destinada aos crimes contra o poder público, como ardis para
subverter a Constituição, péssima conduta na gerência
dos assuntos financeiros, juiz ou promotor que aceitasse agrados, etc.
Seria punido, se preciso com pena de morte, quem
tentasse enganar o povo. Todo julgamento por eisangelia era autorizado
por decreto da assembleia, que às vezes definia as penalidades a serem
aplicadas (David Stockton: The Classical Athenian Democracy).
Na assembleia soberana qualquer cidadão
pode começar o processo de eisangelia denunciando um governante ou
pessoa privada. Se a assembleia decide ser preciso responder à acusação,
começa o julgamento por uma agenda especial. Se o caso é sério o
processo vai às cortes de Justiça (John Thorley: Athenian Democracy). A
eisangelia também se aplica aos juízes negligentes, pune os pais pelo
tratamento ruim dado aos filhos e parentes e maridos por maltratarem as
esposas, etc. Por iniciativa de Sólon o Areópago
“julgou, segundo a eisangelia, os acusados de conspiração para
dissolver a vida democrática” (Aristóteles, cf. Hansen, M. H.
Eisangelia: The Sovereignty of the People’s Court in Athens in the
Fourth Century BC and Public Action Against Unconstitutional Proposals).
Seria uma inovação golpista restaurar a rigorosa eisangelia no Brasil?
É algo a ser examinado com prudência, mas não descartado. A falta de
mecanismos semelhantes ou a presença de formas não democráticas, como a
prerrogativa de foro, causam arrogância e impunidade em muitos
políticos, vários magistrados e outros. E tal vácuo distorce a ética
pública ou privada, oferece a cena perene da renitente desobediência à
lei, cria indivíduos poderosos que não se responsabilizam por seus atos e
pelos de seus auxiliares. Em qualquer Estado do planeta onde um
governante afirma ignorar o que fizeram seus ministros e secretários,
ele sofreria processo de responsabilização. E tal procedimento integra a
democracia, porque é baseado na accountability, no fato de que soberano
é o povo. Ah, se no Brasil vigorassem leis eficazes contra presentes
oferecidos aos poderosos! Ah, se nossas empreiteiras fossem impedidas
realmente de agradar a administradores públicos! Muitos palacetes assim
adquiridos causariam processos por eisangelia, afastamento ou impeachment. Mesmo que, devido a um golpe de Estado, o enriquecido particular usurpasse o poder máximo da República.
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* Escreve Roberto Romano, professor na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em artigo publicado por O Estado de S. Paulo, 12-10-2015.
Fonte: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/547840-golpes-de-estado-e-eisangelia
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