José de Souza Martins*
Estudantes protestam contra mudanças propostas pela
Secretaria de Estado da Educação de São Paulo
É discutível a pedagogia que preconiza
a reunião de alunos de
diferentes níveis numa única escola,
analisa sociólogo
A
educação, mais uma vez, fica no meio do tiroteio entre concepções e até
interesses das partes potencialmente alcançadas por uma decisão da Secretaria da Educação de São Paulo: a de fragmentar as escolas plurietárias, eventualmente redistribuir alunos e professores e organizar escolas homogêneas por nível de ensino e de idade. Para atender apreensões e reclamos, até o Ministério Público [MP] interferiu no caso.
Não
passaria pela cabeça de ninguém, pai de aluno ou professor de escola
particular, recorrer ao MP em caso no qual a direção do estabelecimento
decidisse mudar de endereço. Aqui estamos em face de estranha
incongruência: a meta primeira da escola privada é o lucro, sem que isso
signifique minimizar a questão essencial da qualidade da educação e dos
métodos e meios para assegurá-la.
Já
no caso da escola pública não passa pela cabeça de ninguém que também
ela deve minimizar seus custos e reduzir seus desperdícios, até porque
se trata de dinheiro público, ainda mais agora no miserê decorrente de
uma política econômica desastrosa, cujos efeitos nocivos acabam sendo
transferidos para os setores mais vulneráveis das políticas públicas,
justamente os da educação e da cultura.
Em pronunciamento recente, o secretário da Educação, Herman Voorwald, chamou a atenção para as repercussões, no sistema escolar, da redução da fertilidade humana no País, em particular no Estado de São Paulo, com a diminuição do número de nascimentos e a queda do número de crianças em idade escolar em sua estrutura demográfica. Em consequência, a rede de edifícios e de instalações escolares destinadas a crianças e adolescentes tem hoje uma significativa capacidade ociosa - menos dois milhões de alunos em relação a quantos comportaria. Há
uma infraestrutura subutilizada que consome recursos públicos que
seriam melhor e mais eficazmente empregados se utilizados de modo
racional e calculado. As informações dadas aos interessados
asseguram que não haverá deslocamentos que ultrapassem aquilo que se
situa num círculo muito limitado de distâncias para que a nova ordenação
seja implantada.
Um
certo conteúdo corporativo nas reivindicações dos incomodados com as
mudanças é compreensível, dado que esse é um traço forte das deformações
de nossa organização social e de nossa organização política arcaicas.
Na escola privada, os envolvidos se conformariam e, no limite, mudariam
de escola. Coisa que, aliás, está acontecendo agora. Só que, depois de
décadas de injusta depreciação da escola pública em favor da escola
privada, mais de 200 mil famílias, alcançadas pela crise econômica,
nestes últimos meses, estão transferindo seus filhos da escola
particular paga para a escola pública gratuita. Certamente, não é
boa motivação transferir filhos de escola para fazer economia, ainda que
a carência seja motivo compreensível e legítimo. Mas, na educação,
economia é metro defeituoso para medir a qualidade da escola, seja ela
particular ou pública. A escola pública é diferente da escola
particular e essa diferença deveria ser valorizada por aqueles que a
defendem e representam, a começar pelos docentes, para dar aos pais e
aos alunos a segurança positiva da diferença.
Se
considerarmos que apenas cerca de 25% das escolas e dos alunos serão,
de fato, atingidos pela reorganização que a Secretaria está propondo,
que são aquelas que abrigam os vários níveis de ensino, menos motivos há
para a intranquilidade. Aí incide a questão propriamente pedagógica. A tese da Secretaria é a de que a desagregação dessas escolas permitirá ampliar
o número de estabelecimentos especializados em cursos destinados a
alunos de uma mesma faixa etária, o Fundamental 1, o Fundamental 2 e o
Ensino Médio. É muito discutível a pedagogia que preconiza a reunião
de alunos desses diferentes níveis num único estabelecimento,
especialmente numa fase da formação das novas gerações em que o grupo de
idade é um componente decisivo de sua identidade e de sua
socialização.
O grupo etário tem funções rituais de que os socializandos não podem ser privados sem grave dano à sua identidade. A
desfiguração do pertencimento que a dispersão etária proporciona pode
atender aos requisitos especulativos de natureza filosófica, mas
certamente não atendem aos requisitos da formação da personalidade das
novas gerações.
A
sociedade pós-moderna, que tentamos ser, tem sido tomada por uma
ansiedade enferma de diluir especificidades identitárias e de antecipar a
maturidade de seus filhos, seja descabidamente querendo transformá-los
em gênios precoces, que não são nem serão, ou adultos antecipados.
Priva-os da infância necessária e decisiva na formação do caráter e da
competência para a vida adulta. Em geral, o gênio artificialmente
fabricado ou o adulto falsamente antecipado acabam exibindo sinais
evidentes de dessocialização para a vida de seres maduros, arrastando
para sempre o que é, de fato, uma deformação. Acabam sendo vítimas da
educação pretensiosa para viver uma melancólica vida de frustrações.
------------------------------
*JOSÉ DE SOUZA MARTINS é sociólogo, membro da Academia Paulista de Letras. Escreveu, entre vários livros, Uma sociologia da vida cotidiana (Ed. Contexto).
Fonte: O Estado de S. Paulo – Suplemento ALIÁS – Domingo, 18 de outubro de 2015 – Pg. E3
Nenhum comentário:
Postar um comentário