Paulo Velasco: 'No fundo, ficamos felizes com uma crise na
Argentina' - Fabio Seixo / Agência O Globo
Natural
da capital da Espanha, filho de pai brasileiro, professor de Relações
Internacionais na Uerj levou à Casa do Saber curso em que arte explica o
continente
“Nasci
em Madri por acaso: meu pai estava a serviço do governo brasileiro na Espanha.
Lá passei boa parte da infância. Quase todos meus colegas da escola torciam
pelo Real Madri, e eu sofria pelo Barcelona, que não ganhava nada. Moro no Rio,
sou casado, tenho dois filhos e minha paixão é a América Latina”
Conte
algo que não sei
A
América Latina é o espaço regional mais pacífico, mais desmilitarizado do
mundo. É a região no mundo que melhor conseguiu debelar problemas sociais na
última década. Por outro lado, não temos ainda uma “América Latina”. Ou seja, a
América Latina ainda é uma grande ficção. Ela não chegou ao ponto que os
latino-americanos desejam ou esperam.
O
que desejamos?
A
ideia da AL é importada. Foi criada e imposta pela França, como uma tentativa
de se contrapor à América anglo-saxônica. Temos 33 países muitos diferentes
histórica, cultural e linguisticamente. Mas há um grande elemento em comum: o
desejo pelo desenvolvimento, desde sempre.
Quem
chegou perto?
Há
uma assimetria. Você tem países que crescem economicamente, mas o
desenvolvimento social não se concretiza. O desenvolvimento equitativo, que
alcance a todos: é sempre concentrado, e com bolsões de miséria, de pobreza
endêmica.
Qual
o governo mais distanciado da realidade do país?
Acho
que todos são distanciados. Há um deficit democrático muito forte ainda. O povo
participa pouco e não se engaja. A política é muito conduzida pelas elites. Um
caso raro, realmente, é o Evo Morales. Tivemos o Lula, mas que era uma elite
dentro dos que não eram elite: um dirigente sindical.
A
manipulação de dados e a perseguição à imprensa e a ONGs permanece. A ficção é
instrumento de poder?
Quanto
mais alijado o povo esteja do poder, menor a resistência. É a tendência
latino-americana populista de comandar a massa sem dar espaço de manobra. A
sociedade brasileira, tradicionalmente, é muito adormecida, em comparação, por
exemplo, com a argentina.
As
redes sociais ajudam na busca da democracia real?
As
redes são as maiores fontes de ficção. Discussões surreais, teorias
conspiratórias, qualquer bobagem. É o tipo da realidade que enfraquece a
perspectiva política. Democratiza o acesso, o que é bom, mas empobrece o
debate, levando a polarizações preocupantes. A própria imprensa
latino-americana tem que amadurecer. Falta pluralidade de ideias. Tem
pensamento único, para um lado ou outro. Por isso a tendência de alguns
governos de censurarem o “outro lado”.
Que
obra ficcional no cinema e na literatura destacaria como explicadora da AL?
Quem
pensou tão bem a AL como Gabriel García Márquez? A realidade de sua Colômbia é
a AL até hoje. No cinema, há um filme cubano, “Numa escola de Havana”, que
retrata muito bem a educação no continente. Poderia se passar no Brasil. O
Brasil é um latino-americano.
Mas
tem uma colonização distinta, uma língua distinta. Pertence mesmo à AL?
Pertence,
mas não sentimos assim. Nem as elites políticas, que se voltavam para os EUA, a
Europa. E torcemos contra os vizinhos, e não é só no esporte. No fundo, ficamos
felizes com uma crise na Argentina.
A
ficção latino-americana é um caminho para nos levar a uma América Latina real?
Exatamente.
Podemos buscar uma articulação maior. Será difícil uma integração na AL sem
base de identidade cultural. Integração e diplomacia não pode ser só comércio:
tem que ser literatura, cinema, arte.
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Reportagem por Globo
Fonte: http://oglobo.globo.com/sociedade/conte-algo-que-nao-sei/paulo-velasco-cientista-politico-america-latina-ainda-uma-grande-ficcao-17850307 23/10/2015
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