Leonardo Boff*
Os milhares de refugiados que estão fugindo da guerra na Síria e do
norte da África e buscam simplesmente a paz nos países europeus, nos
fazem lembrar um dos mais belos mitos da cultura grega: os dois
velhinhos Báucis e Felêmon, transmitido pelo poeta latino Ovídeo em suas
Metamorfoses. Admiremos a beleza e o profundo sentimento desse mito.
“Certa
vez Júpiter, pai-criador do céu e da terra e seu filho Hermes,
princípio de toda comunicação (donde vem a palavra hermenêutica),
resolveram disfarçar-se de pobres e vir ao reino dos mortais para ver
como ia a criação que haviam posto em marcha. Ambos se desfizeram de sua
glória Pareciam realmente pobres e andarilhos dos caminhos.
Passaram
por muitas terras. Pediam ajuda a uns e a outros e ninguém lhes
estendia a mão. Muitos outros sequer os olhavam. Era o que mais lhes
doía, por não serem sequer olhados, como se fossem cães lazarentos da
estrada. Assim passaram fome e toda sorte de privações. Depois de tanto
peregrinar e de sentir-se alijados por todos, o que mais queriam era
encontrar alguém que lhes desse uma mínima hospitalidade.
Até que
um dia, chegaram à Frígia, província das mais longínquas e inóspitas do
império romano. Ai vivia um casal muito pobre. Ele se chamava Filêmon
(em grego, “aquele capaz de amar”) e ela Báucis, (em grego, “delicada e
terna”).
Sobre uma pequena elevação construíram sua choupana,
rústica, porém, muito limpa. Foi lá que, ainda jovens, uniram seus
corações. Viviam em grande paz e harmonia pois ambos faziam tudo juntos,
um auxiliando sempre o outro. Quem mandava era também quem obedecia.
Eis
que chegaram Júpiter e Hermes, disfarçados de pobres mortais. Bateram à
porta. Qual não foi a sua surpresa quando o bom velhinho Filêmon,
sorridente, apareceu à porta e, sem muito reparar, foi logo dizendo:
“Forasteiros,
vocês devem estar muito cansados e com fome. Venham, entrem na casa. É
pobre, mas está aberta a hospedá-los”. Báucis, a delicada e terna, logo
se apressou em lhes oferecer dois tamboretes de madeira para se
sentarem.
Antes que manifestassem qualquer desejo, ambos, Filêmon e
Báucis, começaram a reanimar o fogo, quase se apagando, para aquecer a
água e aliviar os pés dos dois hóspedes. Filêmon foi à horta atrás da
choupana e colheu algumas folhas e legumes, enquanto Báucis tirava da
vara, o último pedaço de toucinho. Numa panela de barro, bem antiga,
cozinharam os legumes com o toucinho que enchia a casa de perfume.
Báucis tomou do azeite turvo e grosso, mas perfumado e o derramou por
sobre a sopa. Depois tomou alguns ovos e os meteu sob a cinza quente.
Filêmon se lembrou do vinho que jazia numa vasilha escura no canto da
casa. Tomaram alguns pedaços de pão do dia anterior, aqueceram-nos na
borda do fogão. E de repente tudo estava sobre a mesa em pratos quentes.
“Queridos
hóspedes, vamos comer pois vocês merecem se alimentar depois de tantas
canseiras. Perdoem simplicidade e a pobreza da cozinha”. Os imortais
comeram à saciedade. Muito comovidos ficaram quando os dois velhinhos
ofereceram a própria cama para dormir. Colocaram lençóis limpos, embora
visivelmente gastos. Estenderam por sobre o leito uma cobertura de
honra, um velho tapete, usado nas festas.
Quando Júpiter e Hermes
estavam se levantando para ir dormir, eis que sobreveio grande e
inesperada tempestade. Raios e trovões ribombavam pelo vale afora.
Ocorreu uma inundação vitimando pessoas e animais.
Báucis e
Filêmon se desculparam junto aos Imortais e apressados, se preparavam
para ajudar os flagelados. Mas Júpiter freou a devastadora tempestade.
Foi
então que aconteceu a grande revelação. Báucis e Filêmon viram sua
choupana se transformar num luzidio templo de mármore. Colunas em
estilo jônico enfeitavam a entrada. O teto de ouro reluzia como o sol
recém saído das nuvens. E Júpiter e Hermes mostraram toda sua glória.
Filêmon
e Báucis caíram em si. Puseram-se de joelhos, inclinando a cabeça até o
chão para venerar o Deus presente. Júpiter depois bondosamente disse:
“Bom e justo Filêmon, digna e terna esposa Báucis: façam um pedido que
eu, em agradecimento, quero atender”. Baucis se inclinou para Filêmon e
colocou sua cabeça encanecida sobre o peito dele. E, como se tivessem
previamente combinado, disseram uníssonamente: “O nosso desejo é de
servir a Deus nesse templo por todo o tempo que nos resta de vida”.
E
Hermes acrescentou: “Eu também quero que façam um pedido para eu o
realizar”. E eles, novamente, como se tivessem combinado, sussurraram
conjuntamente: “Depois de tão longo amor e de tanta concórdia,
gostaríamos de morrer juntos”.
Seus votos foram ouvidos e
cumpridos. Filêmon e Báucis, os esposos hospitaleiros, serviram no
templo enquanto durou sua respiração.
Certo dia, enquanto,
sentados no átrio, recordavam de como hospedaram, sem saber, Deus em
sua choupana, Filêmon viu que o corpo de Báucis se revestia de folhagens
floridas até a cabeça. E Báucis viu também que o corpo de Filêmon se
cobria todo de folhagens verdes. Mal puderam balbuciar juntos o
derradeiro adeus. Aconteceu a grande metamorfose. Filêmon foi
transformado num enorme carvalho e Báucis numa frondosa tília. Em cima,
as copas e os galhos se entrelaçaram. E assim abraçados ficaram unidos
para sempre.
Quem passar por aquela região da Frígia, atualmente a
Turquia, ainda hoje ouvirá esta fantástica história contada de geração
em geração. Os mais velhos repetem sempre a lição: quem acolhe um pobre
faminto, hospeda anonimamente Deus.
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*Teólogo. Filósofo. Escritor. Colunista do JB on lineFonte: http://www.jb.com.br/leonardo-boff/noticias/2015/10/05/o-mito-da-hospitalidade-e-os-refugiados-de-hoje/
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