domingo, 3 de janeiro de 2010

Badulaques 139

Rubem Alves*

Minha vida se divide em três fases. Na primeira fase o meu mundo era do tamanho do universo e era habitado por deuses, verdades e absolutos. E eu era um profeta. Na segunda fase meu mundo encolheu, ficou mais modesto e passou a ser habitado por heróis revolucionários que portavam armas e cantavam canções de transformar o mundo. Tornei-me um guerreiro. Na terceira fase, mortos os deuses, mortos os heróis, mortas as verdades e os absolutos, meu mundo se encolheu ainda mais e chegou não à sua verdade final mas à sua leveza final: ficou belo e efêmero como uma jabuticabeira florida.

A DIREÇÃO SAGRADA


Um amigo, Arnaldo da Vidi, um padre italiano que foi missionário no Brasil, contou-me que a sua organização religiosa tem projetos educacionais em vários paises. Num desses paises, de religião islâmica, a escola passou por uma reforma física que incluiu novos banheiros para substituir os antigos, já muito velhos. Mas aconteceu algo estranho: os alunos, que usavam normalmente as privadas antigas, passaram a se recusar a usar as privadas novas. Faziam suas necessidades no chão do banheiro, contra a parede oposta às privadas. Esse comportamento absurdo deixou os diretores da escola perplexos, sem entender o que estava acontecendo. Até que o mistério foi explicado: as privadas estavam na direção da cidade sagrada, Meca. Defecar e urinar na direção de Meca era uma profanação. Era o mesmo que misturar as coisas sagradas às fezes. Antes sujar os banheiros que profanar a direção sagrada. Uma das edições da revista Geographic Magazine trás um mapa para orientar os fiéis islâmicos sobre a direção correta de Meca, o que resolve o problema das privadas que poderão usar.

PROGRESSO


O menino moderno, familiarizado com o computador, ficou curioso sobre como eram as coisas no trabalho do seu pai no tempo quando não havia computadores. O pai, entusiasmado com a súbita curiosidade do filho, pôs-se a campo para encontrar sua velha Olivetti portátil, amante esquecida, abandonada — e ele nem sabia ao certo onde ela estava. Depois de muito procurar encontrou-se dentro de uma mala velha cheia de tranqueiras. Tirou-a da sepultura, limpou-a, conferiu as teclas e alavancas, e também as fitas metade preto e metade vermelho, colocando-a então de novo no mesmíssimo lugar sobre a mesa onde vezes sem conta eles estiveram juntos. “Como é que funciona, pai?” — o menino perguntou. “É assim que funciona...”, respondeu o pai. A seguir colocou uma folha de papel sulfite no rolo, ajustou as margens e começou a “daquitilografar” (era assim que o meu pai falava) umas frases soltas. Ao ver a máquina em ação o menino fez um “oh” de espanto. “Que máquina mais adiantada, diferente dos computadores. É só digitar as letras que o texto sai impresso...” O que me fez lembrar um texto divertidíssimo de Cortazar que se chama, se não me engano, A história das invenções. Só que tudo acontece não de trás para frente mas da frente para trás. A história começa num vôo de supersônico de Nova Iorque a Paris. Três horas. Aí os homens, inteligentes, pensaram que o prazer da viagem poderia ser aumentado se os aviões, ao invés de voarem a uma velocidade acima da velocidade do som e a uma altura de 15 quilômetros, passassem a voar a uma velocidade de 400 quilômetros por hora a uma altura de três quilômetros. Assim poderiam ficar muito mais tempo longe do trabalho e poderiam ver os rios, bosques e vilas... E assim vai acontecendo a história das invenções, sempre ao contrário e sempre melhor... Até que depois de muito progresso, a invenção dos navios a vela não poluentes e das bicicletas que fazem bem ao coração os humanos inventam a mais fantástica de todas as invenções: eles inventam o “andar a pé”...

PLANEJAMENTO


Ele chegou na hora certa. Aluno da Unicam me pedira uma entrevista. Eu não sabia o que ele queria saber de mim. Assentados, ele com prancheta e caneta na mão fez a grande pergunta: “Eu queria saber como foi que o senhor planejou a sua vida para chegar onde chegou...” Compreendi imediatamente. Ele gostava de mim. Me admirava. Queria ser como eu. E queria que eu lhe revelasse o segredo, o mapa... Fiquei triste por ter de desapontá-lo. Minha resposta, absolutamente verdadeira, foi: “Eu estou onde estou porque tudo que planejei deu errado...”

*Rubem Alves é escritor, teólogo e educador
Fonte: Correio Popular/Campinas - 03/01/2010

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