Roberto Romano*
"The sunlight on the garden /Hardens and grows cold,/We cannot cage the minute/ Within its nets of gold, /When all is told/ We cannot beg for pardon" . Os versos de Louis Macneice expressam o paradoxo moderno, onde gárrulas multidões abalam a vida íntima, com uso da língua sem peias. Note o leitor: no Brasil, sempre que uma pessoa lhe diz, com sotaque levemente alterado para imitar o grão doce da voz: "vou ser sincero com você" , a ruindade é infalível. Ela prepara o anúncio de uma pilantragem que vai, com certeza, ferir os seus interesses legítimos. A sinceridade, como disse o filósofo Gérard Lebrun, é fruto de um coletivo de tipo rousseoísta, que não admite outra coisa senão a expansão cardíaca, os sentimentos quentes que fogem dos raciocínios objetivos. Um sociólogo norte-americano, Richard Sennet, publicou certo livro já traduzido para a nossa língua, analisando tal sociedade intimista. Não por acaso o título do volume, na edição francesa, é Tiranias da Intimidade" . No Brasil, o texto foi batizado de O declínio do Homem Público (SP, Cia. das Letras).
Quando as relações objetivas do mercado, da ordem política, da universidade e mesmo das igrejas estão ameaçadas de insignificância, os tratos comuns perdem relevo, visto que ocorreu uma "democratização" pervertida de valores e qualidades. Em aglomerados urbanos corrompidos, tudo se equivale. Assim, as regras de comportamento tendem a se esvanecer e, em seu lugar, aparece o arbítrio disfarçado de sentimento subjetivo. Você compra um aparelho de TV. O vendedor promete maravilhas sobre a coisa adquirida: cores magníficas, imagens perfeitas etc. Você a leva para casa. Ali, estranha: os matizes brilhantes somem, as imagens não têm o delineamento correto etc. Você retorna à loja e chama o mesmo vendedor. Esse, não mais premido pela necessidade de vender, vem de cara amarrada. Quando a reclamação se inicia, cai sobre seu ouvido a frase cálida: "vou ser sincero com você, quando mostramos o aparelho, não é com o sinal da TV comum, mas usamos um CD" . Tal atitude deveria ser analisada pelos estudiosos da ética comercial.
E assim caminha a sociedade que não respeita os direitos humanos, as leis, as regras de etiqueta. Com o "vou ser sincero" caem por terra a honestidade objetiva, o tratamento digno das pessoas, a legalidade sem a qual o mundo é terra de feras. Claro que todas elas, as feras, matam com os olhos lacrimejantes de "sinceridade" , como crocodilos cuja forma apenas lembra o humano. O marido traiu a esposa? Receita infalível na sociedade machista nacional: ele é "sincero" e confessa tudo para ela, garantindo impunidade e recomeço das aventuras a que, afinal, ele julga ter direito. Caso a traição, suposta ou real, venha dela, resulta o assassinato "para defesa da honra ofendida" . O Brasil é o país onde mulheres são batidas no lar, crianças são violentadas por genitores ou padrastos, a insegurança se instala no umbral da própria morada. Este é o lado mais sombrio do "homem cordial" que não se move pela razão, mas por desejos e sentimentos insaciáveis.
Outro traço ético hediondo nessa cultura, com origem em Rousseau e no romantismo ordinário, também recebe o nome de "sinceridade" . Trata-se da maneira covarde de agressão. Se uma pessoa não atende aos alvos dos "sinceros" , eles se permitem dizer, na face do interessado, tudo o que dele se afirma na vida "social" . Hobbes, no De Cive, aconselha quem vai a uma festa a ficar por último na fila de saída. Porque ao deixarem o local, os indivíduos têm sua vida retalhada pelos que ficam. No caso brasileiro é pior: o "sincero" joga na face da vítima toda a sujeira que, real ou supostamente, dela se diz. Para tal agressão, o covarde se disfarça e usa o impessoal "se" . Não, não é ele quem diz isto ou aquilo da pessoa. "Fala-se" dela desta ou daquela maneira. Martin Heidegger, no melancólico Ser e Tempo, mostrou o quanto essa técnica de controle alheio é eficaz e envilecedora. Por tal motivo, caro leitor, quando alguém lhe anunciar "vou ser sincero com você" , responda rápido: "Vade retro, Satana" . E corra, porque depois que tudo foi dito, você morreu mais um pouco, socialmente, sem perdão.
*Roberto Romano é professor de Ética e Filosofia Política na Unicamp
FONTE: Correio Popular online, 30/12/2009
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