domingo, 10 de janeiro de 2010

Badulaques 140

Rubem Alves*




R.S. Thomas
Foi pastor numa pobre e rude comunidade rural da Irlanda durante toda a sua vida. Toda a sua poesia é marcada pela dor do silêncio de Deus. Ele escreveu: “Nenhuma palavra veio ao homem ajoelhado. Ele só ouviu a canção do vento. Ou o barulho seco de asas que não via, não eram anjos, eram morcegos no alto do forro da igreja. Ele não virá mais...” Nesse “ele não virá mais...” está toda a sua dor. E conclui: “o sentido está na espera...”

Mário Quintana
“Seu Glicínio, porteiro, acredita que rato, depois de velho, vira morcego. É uma crença que ele traz da sua infância. Não o desiludas com teu vão saber, respeita-lhe os queridos enganos. Nunca se deve tirar o brinquedo de uma criança, tenha ela oito ou oitenta nos!”
As crianças, não importando a cor da pele ou a língua que falam, têm sentimentos parecidos. É sobre o que aconteceu com uma menina de 4 anos e a sua cadela Abbey. Pelo nome da cadela você adivinha que ela é americana (Mas o que uma criança sente pelo seu cachorro não tem nacionalidade. É um sentimento universal). A notícia me chegou através de um relato de sua mãe que me foi enviado pela amiga Elza Menezes. Vou transcrever. “No dia seguinte à morte da Abbey, minha filha de 4 anos Meredith estava chorando e falando sobre o quanto ela sentia a falta da Abbey. Ela perguntou se não seria possível escrever uma carta para Deus para que, quando a Abbey chegasse no céu, ele a reconhecesse. Eu disse que achava que era possível e assim ela ditou as seguintes palavras: ‘Querido Deus: Por favor, tome conta da minha cadela. Ela morreu ontem e estou com muitas saudades dela. (...) Eu espero que você brinque com ela. Ela gosta de brincar com bolas e de nadar. Estou lhe enviando uma fotografia dela para que você a reconheça como a minha cadela. Com amor, Meredith.’
Pusemos a carta num envelope com uma fotografia da Abbey e da Meredith e a endereçamos para “Deus/Céu” e pusemos o nosso endereço como remetentes. Naquela tarde, ela pôs a carta numa caixa de correio. Alguns dias depois, ela perguntou se Deus já a teria recebido.
Ontem havia um pacote embrulhado em papel dourado na nossa varanda endereçado a “Meredith”, com uma caligrafia que não nos era familiar. Dentro estava o livro Quando um Bicho de Estimação Morre, por Mr. Rogers. Colada na parte interna da tampa estava a carta que havíamos enviado a Deus no seu envelope aberto. Na página oposta estava a fotografia de Abbey e Meredith com esse bilhete: “Querida Meredith, Abbey chegou nos céus sem problemas. A fotografia ajudou muito. Nós a reconhecemos imediatamente. (...) Obrigado pela sua linda carta e agradeça à sua mãe pela ajuda ao escrevê-la. Que mãe legal você tem.
É muito fácil me encontrar. Eu estou em todos os lugares onde o amor está. Beijos. Deus.”
Essa foi uma das coisas mais delicadas que eu jamais experimentei. Não tenho formas de saber que a enviou. Mas sei que há uma linda alma trabalhando no “Escritório de Cartas Mortas” do Serviço Postal dos US.”
PS: Pura curiosidade: haverá em nossos correios algo que corresponda ao “Escritório de Cartas Mortas”?
Os cães vão para os céus? Tenho um amigo que é pastor de uma Igreja Presbiteriana no Rio de Janeiro. Parte da missão de um pastor é esclarecer as dúvidas espirituais que porventura possam advir da leitura confusa das Sagradas Escrituras. Pois ele foi procurado por uma senhora já bem velha, solitária, morava sozinha, que tinha como amigo de todas as horas o seu cãozinho, que já estava velhinho também. A aflição da senhora tinha a ver com o fato de que ela acreditava na Bíblia e lia a Bíblia como consolo. Pois houve um texto que a apunhalou: o escrito no livro de Apocalipse, capítulo 22, versículo 15. Nenhuma das passagens terríveis das Sagradas Escrituras a haviam abalado. Ela as lera e ficara em paz... Mas esse mínimo versículo havia abalado o seu mundo. Porque esse versículo enumera aqueles que não poderão entrar no Paraíso: “...Fora ficam os cães, os feiticeiros, os impuros...” “Reverendo, então o meu cãozinho, meu único amigo, não entrará comigo no Paraíso?” Não foi fácil convencer a velhinha. Aí o pastor teve a ideia de invocar a imagem dos rebanhos de ovelhas. Centenas de ovelhas pastando, os lobos à espreita, o pastor sozinho não dá conta, mas os cães estão sempre atentos. Eles são bons. Eles guardam as ovelhas. Por isso os pastores amam os cães. Pastores, ovelhas e cães entrarão todos juntos no Paraíso...
Rubem Alves é escritor, teólogo e educador
Fonte: Correio Popular online, 10/01/2010

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