Carlos Marcelo
Um amigo já observou que, nas superquadras, a diferença entre pobres e ricos se reflete nos trajetos: os primeiros andam sempre na vertical por necessidade (de ponto de ônibus na W3 para um hospital na L2, por exemplo) e o segundo grupo caminha no sentido horizontal pela manutenção da qualidade de vida. Raramente seus caminhos se cruzam. A mulher que chamarei de dona Rosa parecia totalmente desamparada, prestes a desmaiar, quando eu a encontrei na semana passada na entrada de uma quadra no meio da Asa Sul. Após se restabelecer, Rosa me contou o motivo de sua intranquilidade.
Viúva aos 21 anos, teve que assumir a criação dos seis netos – Anderson, Helenildo, Eunice, Kleberson, Ketllin e Kleber – depois que a filha morreu de câncer na garganta; as crianças foram abandonadas pelo pai ainda no enterro da mãe. Paga R$ 60 para morar de aluguel num barraco no Lago Azul, pra lá do Gama. Para criar as crianças, trabalha como faxineira. Mas enfrenta dificuldades em arrumar trabalho depois que passou a sofrer com ataques de tontura. Quando desabou da escada durante faxina por conta de uma “claridão” que turvou, foi dispensada de imediato pela dona de uma casa na W3; não recebeu nem o dinheiro da passagem. Desesperou. Prepara comida com álcool porque não tem dinheiro para o gás. Ao abordar um morador do Plano e mostrar o valor da conta de água (R$12,30) a pagar, ouviu de volta: “Vai pedir para o Lula, lá no Palácio da Alvorada!”.
Dona Rosa conta que tenta trabalhar para deixar os netos na escola. Anderson, 15 anos, anda quieto; a avó tenta saber o motivo, ele fala para não se preocupar. Ela tem um sonho: voltar com os seis para Mimoso do Sul, cidade capixaba onde nasceu e seu pai “tem uma casinha”. Porque dona Rosa tem uma promessa a cumprir: a filha, já com dificuldades de falar por conta do câncer, pediu que a mãe não deixasse que os seis filhos fossem separados. Está difícil manter o prometido. “Essa menina é linda, deixa ela aqui para eu criar”, pediu um senhor da Asa Sul, ao conhecer uma das crianças. A menina, assustada, agarrou a saia de Rosa: “Dá eu não, vó!”.
Nesse ponto da conversa, dona Rosa tira o lenço colorido da cabeça. Mostra o motivo das tonturas: uma grande protuberância acima da testa. Ela conta que conseguiu marcar cirurgia na rede pública para remover “o caroço”, mas tem medo da intervenção. A vizinha de barraco avisou que pode olhar pelos meninos enquanto ela estiver internada, nada além disso. E dona Rosa não sabe quando vai voltar.
A senhora de cabelos brancos diz que já está bem. Tem que seguir andando. Uma antiga patroa ficou de doar roupas usadas para os netos, um rapaz do verdurão falou que pode conseguir alguma coisa para encher a “geladeirinha velha, mas que gela que é uma beleza”. Me despeço e volto para a minha caminhada. Ela segue o seu rumo, traçado de forma implacável pelo destino. Somente aos meus olhos, e por apenas alguns minutos, dona Rosa deixou de ser invisível.
Fonte: Correio Braziliense online, 10/01/2010
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