gula
A imagem dos frades glutões com uma suculenta coxa de frango entre os dentes é muito pouco religiosa. Desde o Antigo Testamento, a Bíblia alertava os fiéis: "Aqueles que em comidas finas se comprazem definham pelas ruas". A relação com os alimentos é intensa nos livros sagrados - a maçã expulsou o homem do Paraíso, o maná salvou os hebreus da fome na travessia do Egito, Jesus transformou seu próprio corpo em pão. Mas comer mesmo depois de saciada a necessidade do organismo deturpa a alma, afirmavam os profetas.
Numa sociedade onde a obesidade já é considerada epidemia mundial, o número de pecadores ultrapassa o dos retos de coração - ou, pelo menos, de estômago. Como resistir às tentações das redes de fast food, dos restaurantes refinados, dos pães e doces exibidos em prateleiras provocativas? Entupir-se de guloseimas, porém, pode não ser uma afronta tão grande aos céus. Na sexta reportagem da série sobre os sete pecados capitais, especialistas ouvidos pelo Correio sugerem que comer demais está além das nossas vontades. Para algumas pessoas, trata-se de um problema nos genes.
Professora da Universidade College London, na Inglaterra, Jane Wardle descobriu um defeito genético que faz com que seus portadores comam além da conta. O estudo foi conduzido com 131 crianças britânicas entre 4 e 5 anos de idade, para as quais foi oferecido um prato de biscoitos uma hora depois do café da manhã. A pesquisadora descobriu que, entre os meninos e as meninas que aceitaram a sobremesa, a prevalência do gene defeituoso era maior, comparado com aqueles que recusaram a guloseima.
Ao analisar os dados genéticos dos participantes do estudo, Jane Wardle constatou que os pequenos comilões apresentavam uma de suas duas cópias do gene FTO com variações. Pesquisas anteriores realizadas com adultos já haviam comprovado que quem é portador do problema pesa em média 3kg a mais. Já as pessoas que carregam um dos dois genes com defeito é geralmente 1,5kg mais pesado que o restante da população. "A gula ocasional não nos preocupa. Mas o estudo mostrou que algumas crianças simplesmente não sabem como parar, e isso pode levá-las à obesidade e a uma vida inteira de problemas de saúde", diz a pesquisadora.
"Vivemos numa cultura que culpa as pessoas quando elas ganham peso, como se isso fosse absolutamente culpa delas", critica Graham Hitman, pesquisador da London University. Ele foi o primeiro cientista a mostrar a relação genética com a obesidade, em 2007. "Melhorar o estilo de vida continua sendo a chave para reduzir a epidemia da obesidade, mas algumas pessoas acham isso muito difícil por causa da sua composição genética", afirma. No maior estudo de obesidade já realizado entre a população europeia, a equipe de Hitman mediu o tamanho do problema. Metade das pessoas possuem pelo menos uma cópia dos "genes da gula" defeituoso. Dezesseis por cento têm as duas cópias com a variação.
Hitman e outros pesquisadores do estudo acham que, sozinho, o FTO não é responsável pela comilança desenfreada. "Acreditamos que ele é apenas um personagem de muitos", diz. "Três quilos a mais é bastante em muitos aspectos, mas não explica por que algumas pessoas são até 50kg mais pesadas do que as outras", afirma o pesquisador, que continua à caça do culpado pela gula.
O livro dos Provérbios, porém, não oferece salvação aos comilões. "Não estejas entre os beberrões de vinho, nem entre os comilões de carne. Porque o beberrão e o comilão caem na pobreza; e a sonolência cobrirá de trapos o homem", diz o texto. Quando não encarada como pecado, a gula sempre esteve, desde a Antiguidade, ligada a sensações desagradáveis. Se, na intimidade do lar, os antigos romanos devoravam pratos exóticos do Oriente, como o prato feito com vulva de porco (um sucesso da República tardia), em público pregava o estilo frugal de ser. O imperador romano Júlio César, por exemplo, era louvado por comer pouco e recusar o vinho nas refeições. O filósofo grego Aristóteles fazia cara feia para os banquetes oferecidos (como desculpa, claro) aos deuses: "O homem é o mais impiedoso e selvagem dos animais, e o pior em relação ao sexo e à gula", deixou registrado.
Defensor de que a Igreja deve continuar a controlar o estômago dos fiéis, o sociólogo norte-americano Kenneth Ferraro acredita que, se ouvissem os conselhos bíblicos, seus conterrâneos não estariam tão acima do peso. Ele é autor de uma pesquisa que mostra que, ao contrário dos ensinamentos, os fiéis podem comer mais do que aqueles sem religião. Ferraro, pesquisador da Universidade de Prudue, analisou o índice de massa corporal de 2,5 mil pessoas que se consideravam religiosas, num período de oito anos, entre 1986 e 1994. Descobriu que os frequentadores de cultos engordaram 14% nesse período.
Para ele, a culpa é de padres e pastores, que não combatem a comilança da mesma forma que aconselham seus rebanhos a parar de beber ou fumar. "A América está se tornando uma nação de gula e obesidade, e as igrejas estão alimentando esse problema. Se os líderes religiosos negligenciarem isso, vão contribuir para uma epidemia que vai custar milhões de dólares do sistema de saúde e reduzir a qualidade de vida de muitos fiéis", critica.
Segundo Ferraro, os eventos religiosos são verdadeiros convites à tentação da gula, como os donuts servidos depois dos encontros ou os piqueniques organizados pelas igrejas americanas. "Implicitamente, essas refeições gordurosas estão dizendo: 'É assim que celebramos'. Ao contrário disso, os líderes religiosos precisam encorajar seus fiéis a cuidar da saúde, vinculando esse cuidado a uma importante parte de seu bem-estar espiritual", palpita.
Por Paloma Oliveto
FONTE: Correio Braziliense online, 01/01/2010
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