Para João Gilberto Noll, 2010 chega com o viço da juventude, em dois livros para adolescentes
É o momento em que a voz se transforma, o corpo ganha novos contornos, as dimensões aumentam. A adolescência é também a fase em que dúvidas profundas convivem com certezas absolutas. Em que não se é mais criança, tampouco se torna adulto em definitivo. É sobre essa importante passagem que se debruçou o gaúcho João Gilberto Noll para escrever seus livros de estreia para o público jovem: Sou Eu! e O Nervo da Noite, ambos editados pela editora Scipione (48 páginas e R$ 24,90 cada).
Neles, Noll, conhecido por compor imagens que transcendem a narrativa, trata o leitor adolescente não como um iniciante nas letras mas como aquele disposto a descobertas menos imediatas. "Para Noll, a ficção não deve ser apenas espaço para se contar uma história, mas, sobretudo, experiência linguística extremada, ou seja, militância contra as fronteiras que separam a prosa da poesia", observa Rafael Martins da Costa, na introdução de O Nervo da Noite.
Neste livro, a habilidade de Noll está em apontar as dúvidas de um adolescente por meio de sua imaginação. Assim, o leitor acredita que o rapaz questiona-se sobre a vida em uma casa abandonada quando, na verdade, está representando em um palco. Já em Sou Eu!, um jovem da cidade se lembra de um banho de rio que tomou com um garoto do campo, durante as férias no interior. O que seriam cenas cotidianas representam, na verdade, o atribulado momento em que escolhas precisam ser feitas, em que se alternam medo e coragem, dúvida e decisão.
Editados com apuro (trazem o formato de pequenos cadernos costurados, como se fossem diários), os livros de Noll ganham em delicadeza com as ilustrações de Alexandre Matos - aparentemente inacabados, seus traços, na verdade, traduzem com perfeição a incompletude existencial sofrida por qualquer adolescente. Sobre o assunto, João Gilberto Noll respondeu, por e-mail, as seguintes perguntas do Estado.
Sua preocupação com os dramas vividos na passagem para a vida adulta não é novidade em sua obra - o conto Alguma Coisa Urgentemente já trata desse tema. Mas ainda é um universo literariamente pouco conhecido para você?
A adolescência já era um assunto dramático para mim na minha própria adolescência, lá nos idos dos anos 60. Com os meus 16, 17 anos, não queria mais ir ao colégio. Para que a família não descobrisse a minha ausência do colégio, eu saía de casa de manhã cedinho, fingindo que ia para as aulas. Saía a caminhar sem destino. Essa minha contemplação do andarilho em vários dos meus livros com certeza vem daí, dessa errância incontida de ocupar as horas em peregrinação pelas calçadas, para que não descobrissem a vaga que eu não estava conseguindo preencher no colégio. Esses meus dois livros para o público juvenil também trazem o motivo da locomoção poética, presente em outros livros meus. Eles são regidos por uma mobilidade perpétua. Eles têm muito de avulsos. São desfamiliarizados. O trajeto para a emancipação é feito num certo retiro, na fuga das coerções de âmbito moral. Principalmente talvez em O Nervo da Noite, onde um garoto empreende sozinho uma caminhada a esmo para enfim descobrir, numa casa em ruínas, um certo frenesi voltado para a iluminação. Em Sou Eu!, essa caminhada se faz com dois meninos, para encontrarem o poder da água de um rio. Nesse episódio, há uma celebração da água em euforia! A água aqui é um pouco o símbolo materno, creio eu. É talvez o líquido amniótico, que fará os meninos recuperarem algo como o nirvana placentário.
O problema da identidade continua essencial para os jovens?
Acho que sim. Mas o sentimento do jovem não se encontra apenas naqueles que estão em curso nos chamados anos de juventude. Quando escrevi Alguma Coisa Urgentemente, para fazer parte do livro de contos O Cego e a Dançarina, expus uma situação-limite entre um adolescente e seu pai. O garoto quer saber a verdade vinda do pai, mas este não quer ou não pode lhe confessar qualquer chave para o significado pretendido pelo rapaz. O pai aqui é como Deus. Alguém opaco. Pois é, mas o que quero dizer é que escrevi esse conto me identificando com o garoto e não com o pai. Na época já deveria ter uns 33 anos. Não escrevo ficções com o pendor para a crônica. Jamais escreveria para expor uma cor local, algo de costumes sobre o jovem brasileiro de hoje. Quando escrevo sobre essa faixa etária, tenho em mente as coisas que fazem do humano o que ele é, independentemente da idade. Procuro fugir do anedótico do adolescente. A situação existencial de um cara de 15 anos já esboça com nitidez o que ele será na vida adulta. Me inspira profundamente a instabilidade da passagem do reino juvenil para a cristalização adulta. Mas quando para de ser assim?
Narrativas juvenis são, habitualmente, marcadas pela ação. Seus livros, porém, apostam na introspecção. Por que essa opção?
Porque eu não sei fazer de outro modo. Todos os outros livros meus também tratam da forma contemplativa de perceber a existência. Sou um amante dos escritores que penetram o cotidiano pelo veio da interioridade. Mesmo nos meus livros juvenis, há uma tendência para o que eu chamaria aqui de "esquizo". Ou seja, o lado de dentro da criatura, seja adolescente ou não, é mais dilatado do que o lado de fora. Não para se cair no psicologismo, mas para se adentrar na esfera metafísica, que é, cada vez mais para mim, o que realmente conta. Em ambos os meus livros novos, predomina a voz insubstituível do que se chama de eu. Em ambos eles se afastam do reino do lar para conseguirem mais do que conseguiram até aqui. É a típica evasão de quem é solitário como método.
A solidão é inevitável na percepção da passagem para a vida adulta?
Essa passagem pede com frequência dos indivíduos, para o bem e para o mal, que eles se singularizem para irem conhecendo o poder da autenticidade. Principalmente em sociedades competitivas, o usual artigo de troca é sua marca pessoal.
Você se inspirou, de alguma forma, nos romances de formação, os chamados bildungsroman?
Eu diria que eu me inspirei sobretudo naquilo que deveria ser dito e que eu mesmo não sabia. Sou um escritor de linguagem e não de tramas. Se sou um escritor de linguagem devo estar atilado para deixar meu inconsciente passar. Por isso não parto de ideias preconcebidas para os enredos, mas vou deixando que a palavra me guie, mesmo que no início o texto não faça muito sentido. É no decorrer da escrita que eu vou encontrando o tom da narrativa, o poder do protagonista etc. Assim, não fico pensando que eu gostaria, por exemplo, de fazer um texto conforme a literatura alemã de certo período. Tenho de dar conta primeiro do tônus pulsional. E esse tônus deverá desaguar na vida do protagonista presente em toda a minha ficção, um protagonista sem nome, com amnésia, com tendência à evasão de um cotidiano opressor. Os meus personagens juvenis são este homem na juventude. Enfim, o que escrevo é a saga de um homem só. E os dois livros mostram esse sujeito em suas origens, às portas da juventude.
Por que os livros têm formato de caderno, como se fossem diários de adolescentes?
Eu acho bacana, pois o diário é uma forma de você ir preenchendo o cotidiano com a sublimação da linguagem, na medida em que aí você revive os fatos do dia a dia, com um certo filtro dos sentimentos. Esse caderno é uma ótima escolha, sim.
Você prepara outro livro para adolescentes, Anjo das Ondas, a ser publicado em junho, certo?
A única coisa de adolescente nesse livro é a idade dos personagens centrais. A linguagem é a mesma de meus outros livros. É a história de um jovem à procura de seu caminho, que, estando no Rio, encontra o seu duplo, na figura de um surfista (daí o título) que foi seu colega no colégio, alguns anos antes. A solidão do personagem central o leva a ver no amigo redescoberto um pedaço de si mesmo, um anexo, talvez. A narrativa aborda a descoberta sexual, num misto de gozo e recuo.
Sou Eu!
Um rapaz de barba recentíssima, que ainda não sabia vislumbrar a cara que teria no futuro próximo, quando enfrentasse enfim mais o dia como adulto.
Por isso agora ele estava ali, na frente do espelho. Passava o aparelho de barbear do pai pelos dois lados da face. E se sentia ainda incapaz para o novo rosto que custaria a brotar.
Por isso estava ali, tentando raspar o buço, para que, como uma planta que renasce mais forte pela poda, a barba pudesse se instalar definitivamente e em seu semblante revelar um homem já completo. Ele era simplesmente assim.
E olhava-se no espelho como a pedir ao rosto que lhe mirava um socorro em surdina, até um empurrão quem sabe, pois ele, sem ajuda, era lento em demasia em extrair de si um futuro razoável, com barba, músculos, um beijo em certa mulher que ele conhecia desde sempre, um beijo na borda dos olhos, de onde as lágrimas lentas escorriam provavelmente de uma dor que só aos dois falava.
o Nervo Da Noite
Passou por uma ponte, por outra, e percebeu que já estava na hora de entrar em alguma coisa toda dele, uma casa em que o garoto fosse o único habitante, alguma coisa como um lar, sim, ainda improvisado, não importa, mas que lhe permitisse habitar as entranhas de um vazio, sem qualquer vício do passado, um zero, uma casa abandonada, quem sabe, com apenas alguns fantasmas, prontos para a companhia desse menino aqui, caminhando a esmo à procura de si. Ele agora de fato olhara uma casa toda abandonada, cada em que ele ia entrando pé ante pé, os passos sem fazer barulho, veludo levemente trêmulo, receoso de encontrar outra alma que tivesse razões para enfrentá-lo, deixando ao garoto o papel de grileiro a avançar por aquele espaço inóspito, para domesticá-lo e ali dormir e sonhar. O jovem via inscrições contorcidas nas paredes, palavras que não queriam dizer nada, qual a evocação de um tempo extraviado, já sem manancial para a memória.
Reportagem por Ubiratan Brasil
FONTE: Estadão online, 02/01/2010
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