"O sistema de nomeação dos bispos faz com que o despotismo seja
sua patologia mais comum",
analisa Juan José Tamayo, teólogo espanhol,
e autor do livro Nuevo paradigma teológico (Trotta, Madrid, 2010),
comentando as fortes reações à nomeação do novo bispo de
San Sebastián, na Espanha,
em artigo publicado no jornal El País, 07-01-2010.
A tradução é de Vanessa Alves.
Eis o artigo.
“Que não se imponha ao povo um bispo que o povo não deseje". "Aquele que deve presidir a todos deve ser eleito por todos". "Não se deve ordenar bispo a ninguém contra o desejo dos cristãos, e sim consultar-lhes expressamente a respeito".
Certo que não poucos leitores pensarão que estas três afirmações estão tomadas de algum documento dos movimentos cristãos de base ou de coletivos de teólogas e teólogos contrários ao atual sistema de nomeação de bispos. Pois não. São textos dos séculos III e V. O primeiro pertence a São Cipriano (princípios do século III-258), bispo de Cartago, que considerava "de origem divina" o direito do povo a eleger seus pastores. Sua própria eleição episcopal foi muito discutida.
Os dois seguintes correspondem a Leão Magno, papa de 440 a 461, o mais importante do século V, que conteve o ataque de Átila a Roma. E não são exceção na literatura teológica da época, nem se limitam a refletir um ideal a buscar. Os cito como uma brevíssima antologia que poderia ampliar com outras muitas testemunhas na mesma direção. A eleição dos bispos pelo povo foi uma prática habitual na história da Igreja durante o primeiro milênio, como demonstra o prestigioso teólogo holandês recentemente falecido Edward Schillebeeckx em seu livro El ministerio eclesial. Agostinho(354- 430) e Ambrósio (340-397) se viram obrigados a aceitar sua eleição como bispos de Hipona e de Milão, respectivamente, inclusive contra sua vontade, porque foram aclamados pela comunidade cristã. Também Paulino de Nola (355-431), amigo de Agostinho, Ambrósio e Jerônimo, foi eleito bispo pela aclamação popular, sendo sacerdote casado.
O concílio de Calcedônia (ano 451) se opôs à ordem daqueles candidatos que não estiveram vinculados a uma comunidade, até o ponto de declarar inválida essa ordem. O bispo ou sacerdote que deixava de presidir uma comunidade, voltava ao estado laical.
Às vezes, a eleição era muito disputada, e se produziam discussões se não se respeitava a vontade do povo. Algo parecido acontece hoje, mas não porque a comunidade cristã participa da eleição dos bispos, e sim porque esta é feita à sua margem, inclusive contra seus desejos. A oposição da maioria do clero de Guipúzcoa à nomeação de José Ignacio Munilla como bispo da diocese não é um fenômeno isolado na história recente da Igreja. Um caso similar foi produzido por motivo da ordenação episcopal de Alfonso López Trujillo como bispo auxiliar de Bogotá (Colômbia) em 1971. Então não foi só o clero que se opôs, e sim uma parte importante do povo, que mostrou sua desconformidade através do lançamento de santinhos durante a cerimônia da ordenação episcopal.
Sacerdotes de Barcelona fizeram um protesto no pátio do palácio episcopal desconformes com a maneira de dirigir a diocese de D. Marcelo González, vindo de Astorga. Há uns anos, foram produzidas reações de protesto similares pela nomeação de Jaume Pujol, membro do Opus Dei, como arcebispo de Tarragona. Frequentes são também as campanhas de sacerdotes e de grupos cristãos quando surge o rumor da nomeação de um bispo que não consideram idôneo para sua diocese. Muitas vezes saem com a sua e conseguem que não se nomeie o candidato in péctore.
A propósito do conflito provocado pela nomeação de D. Munilla, se pôde ler estes dias que o que está em jogo são dois modelos de Igreja: o de Uriarte, mais democrático, e o de Munilla, mais autoritário. Acredito que este projeto é teologicamente incorreto e, na prática, enganoso. Os dois devem obediência ao Papa, que é quem os nomeou. Os dois se caracterizaram por práticas autoritárias, cada um em sua diocese. Uriarte vetou vários professores da Escola de Teologia, vinculada à Universidade de Deusto. Munilla impôs o traslado do seminário de Palência a Madri contra a opinião de um setor importante do clero palentino. O despotismo é a patologia episcopal mais comum.
O problema se consolida, em minha opinião, no sistema de nomeação dos bispos. Daí são derivados dois modelos de Igreja: o hierárquico-patriarcal, que se apoia na eleição dos bispos pelo Papa sem intervenção do povo cristão, e o democrático-igualitário, que se baseia na eleição dos dirigentes religiosos conforme o princípio "um cristão, uma cristã, um voto". Uma prática conforme a tradição da Igreja, que tem seu fundamento teológico na dimensão comunitária do cristianismo e que está em sintonia com os processos eleitorais das sociedades democráticas. Fará-me objeção que a Igreja é de instituição divina. Ainda nessa hipótese, que é muito pressupor, não entendo por que a democracia tenha que ser contrária à vontade divina nem por que o Papa e os bispos a defendem na sociedade e não a praticam na Igreja. Como Deus pode querer a eleição democrática dos governantes a nível político e se opor a ela na comunidade cristã?
FONTE: IHU/Unisinos online, 08/01/2010
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