sábado, 9 de janeiro de 2010

Uma traição necessária


O autor adverte: “Este livro é escrito em cubano”. A afirmação pode assustar muitos tradutores diante de um romance tão complexo como Três tristes tigres, de Guillermo Cabrera Infante. A narrativa, cheia de armadilhas de linguagem, parece confirmar a tese de que traduzir é trair.
Depois de mais de duas décadas fora de catálogo no Brasil, o livro mais conhecido do escritor cubano ganha nova tradução assinada pelo jornalista Luís Carlos Cabral, que relata o desafio nesta entrevista.

Como foi traduzir “um dos mais ousados, do ponto de vista da invenção, livros já escritos”, segundo suas próprias palavras na 'Nota do Tradutor'?
Já traduzi mais de 50 livros e este foi, sem dúvida, o mais difícil. É que se trata de um livro cheio de brincadeiras de linguagem, palíndromos, aliterações. Há personagens que falam errado e o autor reproduz sua maneira de falar. Quem falava errado em espanhol na versão original passou a falar errado em português na tradução. Fui obrigado a fazer adaptações. Mas estas foram apenas algumas das dificuldades.

Qual a maior dificuldade?
Foram tantas que é quase impossível nomear uma delas. Um exemplo: havia mais de 160 termos de arquitetura e decoração, a maioria dos quais não assinalados nos dicionários gerais. Mas acabamos resolvendo e chegando a palavras como tríglifos, métopas, sofito e por aí vai. Na verdade, trata-se de uma brincadeira do Cabrera Infante com o grande escritor cubano Alejo Carpentier, o rei das descrições minuciosas.

Quanto tempo levou para concluir a tradução?
Precisei de cerca de seis meses para fazer a primeira versão, aquela que encaminhei à editora. E depois, na reta final, cerca de dois meses para fechar o texto que foi publicado. Na última leitura, ainda fiz mais de 80 observações. E estaria mentindo se dissesse que não há mais nada a corrigir. O autor repete, com razão, a velha frase de que traduzir é trair. Mas é uma traição necessária, pois se não existissem os tradutores o conhecimento não circularia. A literatura ficaria restrita àqueles que têm a língua em que os livros foram escritos como língua mãe. Ou seja, os brasileiros não conheceriam Cervantes, os franceses não conheceriam Joyce, os alemães não conheceriam Guimarães Rosa e assim por diante.

Pode citar trechos, expressões ou palavras que mais lhe deram trabalho e que solução foi encontrada em português do Brasil?
Quase todos os palíndromos, aquelas palavras ou frases inteiras que podem ser lidas indiferentemente da direita para a esquerda ou da esquerda para a direita, tiveram de ser adaptados para permanecerem palíndromos também em português. Como em dábale arroz a la zorra el abad (na tradução literal “o abade dava sopa à raposa”) que transformei em “morram após a sopa marrom”. Mas, às vezes, quando a tradução era óbvia, deixei no original mesmo. Foi o caso de Anilina y oro son no Soroya ni Lina. E os trava-línguas. Como em cacarajícara hay uma jícara que el que la desencacarijicare buen desencacarijador de jícara em Cacarijícara será que virou “em Cacaraxícara há uma xícara e aquele que a desencacaraxicar bom desencacaraxicador de xícaras em Cacaraxícara será”. Outro exemplo: há uma Cantata do Café, uma cantiga infantil com cinco estrofes, cada uma correspondente a uma vogal e por essa dominada. Uma delas, a da vogal “e”, diz em espanhol: Ye te deré/Ye te deré neñe hermese/Te deré ene kese/Ene kese ke ye sele se/KEFE. Ela ficou assim em português: Ee te deré/Te deré menene benete/Te deré eme keise/Eme kese ke se ee se. Na verdade, traduzindo para o “adultês” seria: “Eu te darei/Te darei menino bonito/Te darei uma coisa/Uma coisa que é/CAFÉ”. Ou as palavras lidas através do espelho. No original era assim: Mano/onam; Azar/raza; Aluda/adula; Otro/orto; Risa/asir. E ficou assim: “Rara/arar; Sala/alas; Roma/amor; Acata/ataca; Marrom/morram; Arado/odara; Raiva/aviar. Ou encontrar o significado de Guan-Habana, que traduzi para “Guan-Havana”: assim foi apelidada a parte da cidade frequentada pelos americanos que a chamavam de Havana One. Guan é uma brincadeira com a palavra inglesa one, ouvida e reproduzida como guan pelos cubanos. Esta fez parte do trabalho braçal que é traduzir: pesquisar infinitamente para chegar ao significado exato das palavras.

Cabrera Infante afirma, na 'Advertência', que o “livro é escrito em cubano”. O que significa?
É o espanhol falado pelos cubanos, mas muitos personagens falam em havanês, numa gíria particular dos personagens da noite de Havana. Mas esta não foi a principal dificuldade, pois tanto o cubano como o havanês têm muita semelhança com o espanhol. E, quanto à gíria, sempre que tive dificuldade, sempre que não foi possível recorrer aos dicionários com os quais trabalho, pedi a ajuda de amigos latino-americanos ou espanhóis. Traduzir não é nunca um trabalho individual, solitário. Nós, tradutores, costumamos incomodar muita gente, muitos especialistas na matéria objeto dos livros que traduzimos, para incomodar o menos possível os leitores.

Reportagem de Taynée Mendes, Jornal do Brasil
FONTE: Jornal do Brasil online, 09/01/2010

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