O livro de areia (1975) é o último livro de contos de Jorge Luis Borges. O que poderia esperar o leitor do escritor que, aos 76 anos, já atravessara o século e estava absolutamente consagrado como criador literário? Certamente não a novidade, pois, como propagara o autor ao longo de sua trajetória, interessava-lhe mais ler do que escrever, e ainda mais reler do que ler.
Exageros retóricos à parte, é na repetição que se pode encontrar a chave para este último Borges contista, inegável inflexão na trajetória do autor que acostumara seu leitor ao assombro.
Assim, desde os anos 20, veem-se reiteradas experiências literárias em que a novidade era a marca, como seus primeiros versos vanguardistas e sua defesa do idioma dos argentinos (que encontra no Brasil um paralelo na gramatiquinha de Mário de Andrade); o embaralhamento do ensaio e do conto fantástico em seu revolucionário “Pierre Menard, autor do Quixote” (1939); a inversão da tradição literária em “Kafka e seus precursores” (1952), artigo em que está prefigurada e melhor realizada toda a Angústia da influência, com a qual ficaria famoso o crítico norte-americano Harold Bloom, na década de 70.
Ao chegar ao final da sua trajetória como contista, a surpresa de Borges é voltar-se sobre seus próprios passos, sobre suas influências e relê-las a partir da velhice, tornando o que poderia ser mera reiteração do mesmo, instigante produção narrativa.
O conto que abre o livro, “O outro”, revisita o tema do duplo; trata-se do velho escritor Jorge Luis Borges que tem um encontro imprevisto, numa praça de Cambridge ou Genebra, com o jovem Borges, meio século mais jovem. No saboroso diálogo, o velho escritor ironiza os gostos literários que um dia foram os seus próprios – a crença incondicional na honestidade literária de Whithman, a qualidade narrativa de Dostoiévski – e ainda exercita seus dotes de analista internacional, criticando a conjuntura política e a história contemporânea.
Já o relato “There are more things”, variação tardia sobre o tema fantástico da casa mal-assombrada, é dedicado à memória de H.P. Lovecraft. A casa, no entanto, mais que mal-assombrada, poderia ser qualificada como sinistra, pois é a aprazível e familiar Casa Colorada do tio recentemente morto do narrador – uma lembrança da infância – que é vendida como espólio a um judeu obscuro, Max Pretoorius.
Como convém ao fantástico do século 20, não há qualquer aparição horrenda, e é à imaginação do narrador e dos relatos lacunares dos que se encontraram com Pretoorius que se deve conferir o medo. Até que finalmente, ao invadir a casa perto da meia-noite, o narrador se depara com a “forma insensata” da mobília, e se põe a imaginar a natureza dos atuais moradores. E assim Borges realiza a experiência do medo num mundo sem monstros.
Outra página memorável é o conto “O livro de areia”, realização de algo prefigurado na nota de rodapé que encerrava a obra-prima “A biblioteca de Babel” (1941), o conhecido conto da biblioteca infinita. Na nota, sugeria-se a inutilidade de tal biblioteca, que poderia ser substituída por um livro que contivesse “um número infinito de folhas infinitamente delgadas”.
Em “O livro de areia”, nos é contada a descoberta fascinante deste livro mágico. Trinta anos depois, passou-se do infinitamente grande ao infinitamente pequeno, à maneira de Pascal.
Ao avançar na leitura do livro, o leitor vai percebendo que a repetição referida e realizada é efeito de outra característica onipresente na obra: a velhice. O desenfado e o cansaço digno de um Eclesiastes, do tempo passado que se derruba sobre seu próprio peso. Sequer a posse do objeto mágico pode libertar: o livro de areia é infinito, perturbador e, por isso mesmo inútil, pois não pode ser lido e ainda faz o homem perder o juízo.
O último Borges exercita sua ironia de velho, magnifica a velhice, repete-a à exaustão em cada relato. E se 40 anos antes Borges reclamava o direito dos argentinos à tradição cultural do universo (em “O escritor argentino e a tradição” de 1932), tradição que ele releu ao longo de sua carreira, em suas últimas páginas, ele se dá o direito de rir de toda ela em seu demolidor “Utopia do homem que está cansado”: “Ninguém consegue ler 2 mil livros. Nos quatro séculos que vivo não terei passado de meia dúzia. Além disso, não é importante ler, mas reler. A imprensa, agora abolida, foi um dos piores males do homem, já que tendeu a multiplicar até a vertigem textos desnecessários”.
Não pense o leitor, no entanto, que se trata de ironia gratuita e iconoclasta. Nada mais distante disso. O cansaço borgiano não é o spleen de quem já não pode com a vida, mas o desencanto de quem mais de uma vez topou com a máquina do mundo e então, no fim da trajetória, sabe que ela não é para si. Abandona-a, e ri.
Postado por Wilson Alves-Bezerrra
FONTE: Jornal do Brasil online, 09/01/2010
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