sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

A morte do Pássaro Encantado...

Rubem Alves*


O Pássaro Encantado já estava velho. Em sua vida longa voara por todas as partes do mundo. Voava para sentir saudade porque sabia que é na saudade que o amor cresce. Mas voltava sempre para contar estórias para uma Menina que ficara à sua espera.

Agora estava cansado. Suas asas já não eram as asas da mocidade.

Lembrou-se de quando era criança. Lembrou-se do seu deslumbramento vendo céu cheio de estrelas. Diziam que era entre as estrelas que moravam os deuses. Abriu suas asas e voou para chegar à morada dos deuses. Ele queria chegar aos deuses para pedir-lhes que descessem a terra para enxugar as lágrimas dos que sofriam. Mas chegando lá nada encontrou; apenas o vazio. Os deuses haviam emigrado abandonando-nos órfãos.

Lembrou-se então dos seus vôos em busca dos heróis que haveriam de transformar o mundo. Mas quando os conheceu achou-os pequenos, mesquinhos e cheios de ódio. Não amavam nem de música e nem de poesia. Só falavam sobre lanças e espadas.

Lembrou-se de sua passagem pela casa da ciência, morada dos homens da verdade. Mas percebeu que ali os homens não tinham asas. Andavam cuidadosos olhando para o chão, com medo de tropeçar e cair. E os diplomas que distribuíam eram fetos mortos fechados em tubos de ensaio.

Lembrou-se então do seu encontro com a poesia e as crianças. Foi aí que encontrou a alegria. Foi aí que ele começou a contar estórias. Para as crianças. Porque elas são leves, sabem rir e sabem chorar.

Aconteceu, então, que uma Menina se apaixonou pelo Pássaro e lhe disse que viveria com ele até o fim de sua vida. O Pássaro também a amou e disse que viveria com ela até o fim de sua vida.

E, como nas Mil e Uma Noites, contou-lhe muitas estórias. Contou-lhe sobre um mercado onde namorados se encontravam e andavam de mãos dadas. Contou-lhe outra sobre trens que levavam a lugares de ternura. E estórias sobre gargantas cortadas nas rochas de montanhas sob a chuva que caia, de pontes cobertas com tristes finais de amor, de bosques de árvores brancas, de serras tão altas que encostavam nas estrelas, de geleiras frias de gelos brancos e azuis, de lagos límpidos onde sereias nadavam nuas, de cachoeiras encantadas onde moravam elfos e gnomos, de lobos e falcões que se amavam sem poder se tocar, de uma pedra encantada à beira da cascata onde os namorados se amavam.

A Menina se sentia iluminada pelo canto do pássaro e ela lhe cantarolava sorridente: “You are my sunshine...” Sim, o Pássaro Encantado iluminava o rosto da Menina como o sol. E o rosto da Menina iluminava o rosto do Pássaro como a lua.

E assim foi, por muito tempo. O Pássaro voava. A Menina sentia saudades. Ele voltava e eles se amavam.

Aconteceu, entretanto, que ao voltar de uma viagem (o Pássaro lhe trouxera um presente de amor) o Pássaro notou que algo acontecera com a Menina. Ela o recebeu com um rosto sério e lhe disse:

“Alguma coisa aconteceu dentro de mim. Meu coração mudou.

Preciso partir porque suas asas duras não podem me levar aos lugares suaves onde quero estar...”

Foi só então que o Pássaro notou que diáfanas asas de borboleta haviam crescido nas costas da Menina.

Ela se preparava para partir.

A Menina partiu. O Pássaro ficou.

O Pássaro sentiu então um grande cansaço. Quando o amor parte o cansaço vem.

Olhou para a Montanha Encantada que se erguia longe, no horizonte. Na Montanha Encantada crescia a árvore do fruto mágico vermelho que incendiava aqueles que o comiam. Era o fruto do amor. Amor incendeia.

Diziam que a Fênix o comia para incendiar-se, transformar-se em cinzas para renascer cem anos depois.

Sentiu que a Montanha Encantada o chamava. Abriu então as suas asas e voou sem parar e sem se cansar até que chegou. O fruto mágico, vermelho como fogo, pendia de um galho.

Tudo correu mansamente. O Pássaro comeu o fruto vermelho do amor e o seu corpo se incendiou.

Suas penas se desprenderam do seu corpo e voaram para longe levadas pelo vento. Em cada uma de suas penas estava escrita uma das estórias que ele contara para a Menina. E elas voaram por todo o mundo.

Lembra-se do filme Forrest Gump? Uma pequena pluma flutuava ao ar. Nela estava escrita a estória que você acabou de ler...

Mas o Pássaro Encantado, como a Fênix, ressuscitará das cinzas.

*Rubem Alves é educador, escritor e teólogo
FONTE: Correio Popular online, crônica editada em 30/12/2007

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