Sérgio Maggio
Cuidado com as armadilhas de Satanás! Quem avisa é irmã Sofia, negra vistosa de voz suingada, que balança o YouTube com vídeo visto por meio milhão de pessoas. De Angola, a cantora evangélica, dentro de discurso simplista, pede ao “povo de Deus” para se livrar das tentações do mundo. A mulher de minissaia e o homem de brinco, por exemplo, seriam arapucas do mais ardiloso inimigo do Senhor. Com uma mensagem ultraconservadora, irmã Sofia acaba por reafirmar a identidade de Satã: a revolução dos costumes. Cria ainda a incompatibilidade em ser fiel ao seu Deus e ao mesmo tempo pertencer a este mundo do aqui e agora.
Ao longo da história, coube ao diabo o papel de desviar, enganar, dissimular e iludir o homem. De Eva (que colocou a mulher secularmente numa posição de inferioridade e humilhação ao lhe imputar a culpa pelo pecado original) ao mito de Fausto (personagem de lenda alemã que, desiludido com a ciência e o conhecimento, vende a alma a Mefistófeles), o ser humano segue transferindo a esse arquétipo o enfrentamento dos próprios demônios.
Por vezes, sem que a gente perceba, quantos “demônios” deixamos de enfrentar por conta da nossa incapacidade de caminhar com os acontecimentos? De tempos em tempos, quando a sociedade conservadora se dá conta da mudança comportamental, reage como irmã Sofia e pede a todos que se recolham na redoma para não se contaminar. Lembro-me de um amigo mineiro que levou a avó dele para passear em Salvador. Ao chegar à capital baiana, ela entrou em pânico ao ver casais multirraciais de mãos dadas e aos beijos.
— Isso é coisa do demônio, dizia a velha senhora, que não se acostumou a ver como normal a união entre homens e mulheres de “cores” diferentes.
Uma qualidade desse “satanás” atende por nome de preconceito, que fere, derruba e mata. É um acerto, por exemplo, a atual campanha do Ministério da Saúde sobre o vírus HIV. Diz o slogan: “É possível viver com Aids; com preconceito, não”. Vale lembrar que, assim que eclodiu no mundo, a Aids era uma “armadilha de Satanás”. E muita gente boa virou as costas para os pacientes contaminados — por vezes, amigos e parentes. Milhares morreram tragados por essa “peste da culpa”, enquanto alguns dançavam festivamente o canto da irmã Sofia.
FONTE: Correio Braziliense online, 12/01/2010
Nenhum comentário:
Postar um comentário