Claúdio Moreno
Já que estou em plena campanha para tirar o ponto-e-vírgula do ostracismo em que se encontra, volto a exaltar suas virtudes, na esperança de revigorar seus aficionados e, quem sabe, conquistar novos adeptos. Ora, sendo esta uma coluna dedicada, como diz seu nome, ao prazer de falar sobre linguagem, acho que não caberiam aqui recomendações detalhadas sobre o emprego deste sinal – que virão bem explicadas no Guia Prático do Português Correto – Pontuação, a ser lançado em breve pela L&PM. Em vez disso, resolvi apresentar algumas situações em que o ponto-e-vírgula mostra, com galhardia, o que veio fazer neste mundo.
Para começar, ele é indispensável para deixar clara uma frase que enumera uma série de elementos que já contenham vírgulas: “A ordem do cortejo era uma verdadeira aula de sociologia: o rei, isolado e autoritário, vinha na frente; o clero e a nobreza, na direita; os indecisos, alguns burgueses e alguns mercadores, no centro; os camponeses, trabalhadores e pobres, na esquerda”. Qualquer que seja sua ideologia pontuacional, o prezado amigo vai ter de concordar que este trecho ficaria um verdadeiro labirinto se trocássemos os ponto-e-vírgulas por vírgulas; os sinais, em vez de orientar o leitor, exigiriam dele um trabalho extra de interpretação, perdendo assim a sua única razão de existir. Se os trocássemos por pontos, o efeito seria igualmente danoso: além de destruirmos a enumeração anunciada pelo dois-pontos, teríamos criado uma frase ridícula e desagradável, vazada naquele horrendo estilo saltitante, de passinho curto, que eu costumo chamar de “estilo tico-tico”.
O ponto-e-vírgula também serve para avisar o leitor de que a sequência vai continuar, o que ressalta a ligação entre as partes e estabelece uma relação semântica entre elas. Num conto de Machado, a personagem principal, Dona Benedita, convida para jantar um jovem oficial da Marinha que, sem que ela saiba, está enamorado de sua filha Eulália: “Olhe, disse D. Benedita, vá amanhã. Mascarenhas foi, e foi mais cedo. D. Benedita falou-lhe da vida do mar; ele pediu-lhe a filha em casamento”. Como fica fácil de ver, o ponto-e-vírgula não separa as partes de uma frase; bem pelo contrário: ao usá-lo, Machado encontrou uma maneira genial de reunir duas ideias que, a rigor, não poderiam ser ligadas pelas fórmulas costumeiras de coordenação ou subordinação.
Outras vezes, é graças a este sinal que o leitor pode enxergar o tronco e os ramos da argumentação: “Os americanos viam o escravo negro como um ser inferior, a meio caminho entre o homem e o animal; muitos anos se passaram, depois da abolição, até que a lei tolerasse os primeiros casamentos interraciais nos EUA. Os portugueses já traziam sangue africano nas veias, herança de muitos séculos da presença árabe na Península; entre nós, que descendemos deles, a miscigenação nunca foi proibida ou hostilizada”. Aqui, é o ponto-e-vírgula que sustenta a arquitetura do contraste entre os EUA e o Brasil. Se nós o substituíssemos pelo ponto, teríamos quatro frases estanques, enfiadas como as contas de um rosário, que caberia ao leitor ligar à sua maneira: “Os americanos viam o escravo negro como um ser inferior, a meio caminho entre o homem e o animal. Muitos anos se passaram, depois da abolição, até que a lei tolerasse os primeiros casamentos interraciais nos EUA. Os portugueses já traziam sangue africano nas veias, herança de muitos séculos da presença árabe na Península. Entre nós, que descendemos deles, a miscigenação nunca foi proibida ou hostilizada”.
De qualquer forma, é um sinal que desperta paixões violentas, seja a seu favor, seja contra. Escritores como Proust e Machado não podiam viver sem ele; os franceses usam-no com naturalidade e elegância; George Orwell tentou abandoná-lo, mas acabou tendo uma recaída; Hemingway, como a maior parte dos americanos modernos, evitou-o deliberadamente em toda sua obra. O ataque mais violento veio de Kurt Vonnegut, escritor americano que já foi importante; não sei que planta ele andou mastigando (talvez o cacto amargo do ressentimento) para dizer, numa famosa conferência sobre a arte de escrever: “Regra nº 1: não use ponto-e-vírgulas. Eles são hermafroditas travestidos que não representam coisíssima nenhuma. Só servem para mostrar que você fez faculdade”. Que não se use, nada mais natural: a pontuação, afinal, admite uma série de escolhas pessoais; que não se entenda a razão dele existir, é aceitável – principalmente vindo de quem não tem muita leitura; que se combata o ponto-e-vírgula, no entanto, é, como diria o velho Camilo, coisa de maluco sem intervalos.
FONTE: ZH online, 02/01/2010
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