terça-feira, 14 de setembro de 2010

A criança, pergunta que habita em nós


"O ser humano é um enigma, o ser humano é uma pergunta"

"O que devo fazer?" Esta é a pergunta que inquietava Santo Inácio de Loyola ao retornar da Terra Santa. Pergunta provocativa, instigante, que o impulsionava a “buscar e a encontrar a vontade divina”. Pergunta que não se encerrava numa resposta ou no encontro daquilo que buscava, mas, pergunta que se tornou “hábito do coração”.
Para o pensamento inaciano, o questionamento não apenas abre para o futuro, mas, também, é a essência do próprio tempo. Não há tempo sem pergunta. O ser humano se constrói instante a instante no tempo construído pela pergunta. O que devo fazer? é a pulsão, a pulsação que procura e impulsiona para o novo.
Perguntar e responder são atributos do ser humano. O ser pensante define-se mais pelo perguntar do que pelo responder. Perguntar é buscar, buscar sentido. Quem pergunta procura descobrir a verdade. O perguntar é ousado; perguntar contém desafio, provocação; leva dose de irreverência. Perguntar é interpelar; colocar dúvida nas certezas; perguntar é processo que desenfumaça a verdade. “Perguntar é mergulhar no abismo” (Saint Exupèry). Então mergulhemos no abismo, já que não perguntar é se condenar a jamais se encontrar.
Tudo o que acontece emerge da pergunta, desse abismo aberto pela pergunta “O que?” O ser humano é uma pergunta, mas não é um problema de ignorância. A pergunta é movimento. E só quando pergunta é que ele emerge da cotidianidade e percebe quão inacabada é sua existência e o quanto ainda precisa realizar e construir.
Há um ensinamento que fala de uma pessoa que empreendeu longa viagem para ver o rabino que admirava. Fazia tempo que alimentava uma dúvida. Lá chegando, fez a pergunta que o levara até ali e foi imediatamente expulso do recinto. Choroso, encontrou um discípulo do rabino que lhe explicou:
- É prá você aprender a não trocar uma pergunta importante por uma resposta qualquer.
Era tão importante a pergunta, que o rabino recusou-se a banalizá-la com sua resposta. A viagem do perguntador pode muito bem levá-lo à resposta se ele tiver a paciência de suportar a ansiedade despertada pela pergunta. A resposta correta remete, por sua própria formulação, à pergunta que a atravessa, que a anima: resposta viva.
“Ter paciência com tudo que há para resolver em seu coração e procurar amar as próprias perguntas como quartos fechados ou livros escritos num idioma muito estrangeiro. Não busque (...) respostas que não lhe podem ser dadas, porque não as poderia viver. Pois, trata-se precisamente de viver tudo. Viva por enquanto as perguntas. Talvez depois, aos poucos, sem que perceba, num dia longínquo, consiga viver a resposta” (Rilke).
A “criança-pergunta” que nos habita situa-se em uma relação com o mundo que não consiste mais em receber uma resposta feita, admitida passivamente, mas numa atitude de questionamento.
Lemos o mundo como um texto, ao mesmo tempo luminoso e numinoso, fonte de revelação e de mistério, visível e invisível, aberto ao infinito das leituras e interpretações. Com as perguntas fazemos história, e a história é abertura para a aventura...
Encontramos em Êxodo 16, a passagem bíblica que nos ajuda a formular a articulação entre o tempo e a pergunta. Trata-se do episódio do maná. A palavra maná não designa o “pão do céu”, mas, a atitude interrogativa diante desse objeto extraordinário. Maná significa, etimologicamente, o que é?
Durante 40 anos, os hebreus comeram “o que é?” no deserto, local intermediário entre a escravidão do Egito e a terra prometida. Experiência fundadora e fundante nesse espaço entre as duas terras onde se forjou o aprendizado da liberdade.
Verificamos nesse episódio um acontecimento raro na história, uma espécie de paciência, uma não-pressa em encerrar o objeto desconhecido numa palavra ou numa categoria que faria calar a sua estranha manifestação. O maná como pergunta é surgimento da novidade absoluta. O maná é um objeto do mundo que permanece em “estado de pergunta”, oposto ao “estado de prisão” imposto por um pensamento que se apodera do mundo com um golpe, não deixando nenhuma chance para o livre desabrochar das coisas por si mesmas.
O “maná”, a “pergunta” não se conserva. O espanto e o assombro diante do mundo não podem ser adquiridos de uma vez por todas. Uma pergunta que se tornou pergunta habitual não é mais questionadora e provocativa. Fecha o horizonte, corta o movimento da vida...
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Exercício Espirituais
Fonte: Centro Loyola de Espiritualidade .Jornal Online Edição 1109 - 14 a 19 de Setembro de 2010.

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