A todos/as que acessaram o blog.
segunda-feira, 31 de dezembro de 2012
domingo, 30 de dezembro de 2012
A morte na ordem certa
Rubem Alves*
“Viveu outrora um imperador, pai de muitos filhos, avô de muitos
netos, a quem amava de todo coração. Infelizmente, entretanto, ele
sofria sem cessar com o medo de que a Morte pudesse levar um deles. Essa
ideia lhe tirava toda a alegria de viver. De dia era atormentado pela
ansiedade. De noite era afligido pela insônia. Seus pensamentos não
paravam de procurar meios de burlar a Morte.
Seu palácio estava cheio de médicos, laboratórios e remédios, que combatiam a Morte no front das enfermidades. Havia também guardas por todos os lados, encarregados de combater a Morte no front dos acidentes.
Mas ele sabia que tais cuidados não bastavam. A morte é muito astuta. Ela ataca no momento em que não se espera. Por isso, o imperador mandou vir, dos lugares mais distantes do seu reino, todos os sacerdotes, profetas, videntes, mágicos, feiticeiros, sábios, gurus, com o pedido de que não só realizassem os rituais mágicos apropriados, como também escrevessem, nas páginas do livro sagrado, feito especialmente para esse fim, com papiros recolhidos em noites de lua cheia nos lugares onde moravam os deuses, as bênçãos que garantiriam aos seus filhos e netos vida longa e felicidade.
Ouvindo a convocação do imperador veio de uma longínqua província um velho sábio, que todos ignoravam. Ele morava num lugar distante, nas montanhas. O caminho a ser trilhado era longo e as suas pernas eram velhas e cansadas. Chegou atrasado, depois que todos haviam partido.
O imperador se alegrou ao ser informado da chegada do homem santo e ordenou que um de seus conselheiros lhe mostrasse o livro sagrado. O velho sábio leu cuidadosamente os desejos que ali haviam sido escritos.
Após ler tudo o que fora escrito, o velho sábio tomou de uma pena e gravou nas páginas do livro sagrado estas palavras:
“Os avós morrem.
Os pais morrem.
Os filhos morrem.
Os netos morrem.”
E assinou o seu nome.
Seu palácio estava cheio de médicos, laboratórios e remédios, que combatiam a Morte no front das enfermidades. Havia também guardas por todos os lados, encarregados de combater a Morte no front dos acidentes.
Mas ele sabia que tais cuidados não bastavam. A morte é muito astuta. Ela ataca no momento em que não se espera. Por isso, o imperador mandou vir, dos lugares mais distantes do seu reino, todos os sacerdotes, profetas, videntes, mágicos, feiticeiros, sábios, gurus, com o pedido de que não só realizassem os rituais mágicos apropriados, como também escrevessem, nas páginas do livro sagrado, feito especialmente para esse fim, com papiros recolhidos em noites de lua cheia nos lugares onde moravam os deuses, as bênçãos que garantiriam aos seus filhos e netos vida longa e felicidade.
Ouvindo a convocação do imperador veio de uma longínqua província um velho sábio, que todos ignoravam. Ele morava num lugar distante, nas montanhas. O caminho a ser trilhado era longo e as suas pernas eram velhas e cansadas. Chegou atrasado, depois que todos haviam partido.
O imperador se alegrou ao ser informado da chegada do homem santo e ordenou que um de seus conselheiros lhe mostrasse o livro sagrado. O velho sábio leu cuidadosamente os desejos que ali haviam sido escritos.
Após ler tudo o que fora escrito, o velho sábio tomou de uma pena e gravou nas páginas do livro sagrado estas palavras:
“Os avós morrem.
Os pais morrem.
Os filhos morrem.
Os netos morrem.”
E assinou o seu nome.
O imperador, ao ler tais palavras enfureceu-se, julgando-as fórmulas de maldição e exigiu que o sábio se explicasse, sob pena de ser mandado para a prisão pelo resto dos seus dias.
“Majestade”, disse o sábio. “Não sei receitas para impedir a chegada da Morte. Ela virá de qualquer forma. Sou apenas um velho poeta. Minhas palavras não têm o poder de exorcizá-la. O que eu posso desejar é que ela venha na ordem certa.”
“A ordem certa?”
“O que é que mais deseja um avô? Ele deseja morrer vendo seus filhos e netos cheios de vida e de alegria.
O que é que mais deseja um pai? Ele deseja morrer vendo seus filhos saudáveis e felizes.
Não tenho palavras mágicas para impedir que a Morte venha. Mas lhe ofereço meus desejos de que ela venha na ordem certa. Por isso invoquei a Morte, na ordem da felicidade:
‘Os avós morrem. Os pais morrem. Os filhos morrem.’”
O imperador sorriu, tomou nas suas as mãos do velho sábio e as beijou.
----------
* Educador. Escritor.
Fonte: http://correio.rac.com.br/_conteudo/2012/12/colunistas/rubem_alves/20152-a-morte-na-ordem-certa.html
Imagem da Internet
O fim e o começo
Martha Medeiros*
Como era de se esperar, não teve fim de mundo. Mas 2012
não foi um ano qualquer. Muitas pessoas a minha volta sentiram algo
parecido com o que senti: que este foi um ano de intensidade única, com
uma energia capaz de encerrar etapas. Um ano de despedidas, algumas
concretas, outras mais sutis. Houve quem tenha terminado casos mal
resolvidos, quem tenha se conscientizado de um problema que não queria
ver, quem se deu conta da fragilidade de uma situação, quem tenha
aceitado um desafio que exigiu coragem, quem tenha enfrentado uma
situação transformadora, quem tenha se jogado num estilo de vida
diferente. Olho para os lados e vejo que 2012 não passou em branco para
quase ninguém. Pelo menos não para mim, nem para pessoas próximas.
Meu microcosmo não revela o universo inteiro, lógico. Você talvez não tenha percebido nada de incomum no ano que passou, mas ainda assim seria interessante promover um fim categórico, encerrar o ano colocando uma pedra em algo que não lhe convém mais. Geralmente chegamos ao final de dezembro focados apenas no recomeço, na renovação, nos planos, sem nos darmos conta de que, para que nossas resoluções sejam cumpridas mais adiante, não basta pular sete ondas, comer lentilhas e outras mandingas. É preciso que haja, sim, o fim do mundo. O fim de um mundo seu, particular.
Qual o mundo que você precisa exterminar da sua vida?
Sugestão: o mundo do bullying cibernético. Ninguém é autêntico por esculhambar o trabalho dos outros, sendo agressivo e mal-educado só porque tem a seu favor o anonimato na internet. Perder horas na frente do computador demonstra sua total incapacidade de convívio. Bum! Fim desse mundo estreito.
O mundo da prepotência, aquele que faz você pensar que todos lhe estenderão um tapete vermelho sem você precisar dar nada em troca. Qualquer um pode ser profético quanto a seu futuro: passará o resto da vida achando que ninguém lhe dá o devido valor, isolado em sua torre de marfim.
O mundo obcecado do amor doentio, aquele amor que só persiste pelo medo da solidão, e que de frustração em frustração vai minando sua possibilidade de ser feliz de outro modo.
O mundo das coisas sem importância. Quanta dedicação ao sobrenome do fulano, à conta bancária do sicrano, à vida amorosa da beltrana, o quanto ela pagou, o quanto ele deveu, quem reatou. Por cinco minutos, vá lá. Os neurônios precisam descansar. Mas esse trelelé o dia inteiro, socorro.
O mundo do imobilismo. Do aguardar sem se mover. Da espera passiva pelo momento certo que nunca chega.
2012 prenunciou um cataclismo, só que não era global, e sim individual. Impôs que cada um desse um fim à vida como era antes e que promovesse uma mudança interna, profunda e renovadora. Feito?
Então que venha um 2013 do outro mundo para todos nós.
Meu microcosmo não revela o universo inteiro, lógico. Você talvez não tenha percebido nada de incomum no ano que passou, mas ainda assim seria interessante promover um fim categórico, encerrar o ano colocando uma pedra em algo que não lhe convém mais. Geralmente chegamos ao final de dezembro focados apenas no recomeço, na renovação, nos planos, sem nos darmos conta de que, para que nossas resoluções sejam cumpridas mais adiante, não basta pular sete ondas, comer lentilhas e outras mandingas. É preciso que haja, sim, o fim do mundo. O fim de um mundo seu, particular.
Qual o mundo que você precisa exterminar da sua vida?
Sugestão: o mundo do bullying cibernético. Ninguém é autêntico por esculhambar o trabalho dos outros, sendo agressivo e mal-educado só porque tem a seu favor o anonimato na internet. Perder horas na frente do computador demonstra sua total incapacidade de convívio. Bum! Fim desse mundo estreito.
O mundo da prepotência, aquele que faz você pensar que todos lhe estenderão um tapete vermelho sem você precisar dar nada em troca. Qualquer um pode ser profético quanto a seu futuro: passará o resto da vida achando que ninguém lhe dá o devido valor, isolado em sua torre de marfim.
O mundo obcecado do amor doentio, aquele amor que só persiste pelo medo da solidão, e que de frustração em frustração vai minando sua possibilidade de ser feliz de outro modo.
O mundo das coisas sem importância. Quanta dedicação ao sobrenome do fulano, à conta bancária do sicrano, à vida amorosa da beltrana, o quanto ela pagou, o quanto ele deveu, quem reatou. Por cinco minutos, vá lá. Os neurônios precisam descansar. Mas esse trelelé o dia inteiro, socorro.
O mundo do imobilismo. Do aguardar sem se mover. Da espera passiva pelo momento certo que nunca chega.
2012 prenunciou um cataclismo, só que não era global, e sim individual. Impôs que cada um desse um fim à vida como era antes e que promovesse uma mudança interna, profunda e renovadora. Feito?
Então que venha um 2013 do outro mundo para todos nós.
----------
* Escritora.
Imagem da Internet
Fonte: http://www.clicrbs.com.br/zerohora/30/12/2012
Herói do ano
Flávio Tavares*
Nunca foi tão fácil ser feliz no fim de ano quanto agora. O prêmio da
Mega Sena está aí, ao alcance da mão, tornando hipermilionários em
poucos minutos alguns milhões de brasileiros. Sim, pois nada acende
tanta certeza no futuro quanto a oferta fácil de milhões em dinheiro
vivo, que irá ao nosso bolso sem suor ou neurônios gastos, apenas com
seis marquinhas num cartão. Na espera da fila do sorteio da “virada”, a
esperança vira certeza de fé. Cada qual é um milionário por antecipação e
planeja o que fazer com tanto dinheiro. Entre o momento da aposta e o
instante do sorteio, nos sentimos ganhadores e usufruímos da fortuna, no
paroxismo da felicidade, como se os milhões já estivessem no bolso.
Diz-se que o prêmio de agora superará os R$ 200 milhões, menos do que os subornos do mensalão para alugar partidos, mas bela soma, enfim. Quem não saiba o que seja agarrar tanto dinheiro assim, pergunte à Rosemary Noronha. A protegida do ex-presidente Lula da Silva intermediou negócios por cifras 10 ou 20 vezes maiores quando chefiou o gabinete da Presidência da República em São Paulo. Estas coisas se perguntam a quem sabe. Nunca, por exemplo, a uma professora no Rio Grande do Sul, que (com R$ 900 ao mês) não conseguiria sequer 0,1% disto se vivesse pela eternidade absoluta dos séculos, desde o Big Bang da Criação até o fim do mundo.
Até porque destruímos a natureza de forma tão abrupta, que os descendentes dos maias, no México e na Guatemala, já recalculam (para valer) que a data do fim do mundo vai se abreviar.
Fim de ano é tempo de pensar. Todo pensamento é uma indagação, ou dúvida, e só indagando e duvidando chegamos à verdade. Nietzsche advertia que “devemos idolatrar a dúvida” e assim é! Só um sistema de contrapesos, que vá do “sim” ao “não”, nos leva à realidade. Se nos contentamos com as aparências, fugimos do real e optamos por algo postiço. Pela ilusão! Nosso Lupicínio Rodrigues já perguntava numa canção dos idos 1950: “O pensamento parece uma coisa à toa, mas como é que a gente voa quando começa a pensar?”.
O que fizemos ou desfizemos no ano? O que nos negamos a fazer? Fomos solidários? Onde ficou a bondade, esta coisa que a competição da sociedade de consumo tornou “fora de moda”, cafona e piegas? Até onde fomos cúmplices do crime e, na prática, optamos por ele, fingindo que pedíamos justiça sem nada fazer pelo justo? Até onde nos deixamos subornar ou subornamos? Ou mentimos em nome da verdade, inventando situações ou cifras? Até onde?
Talvez os brasileiros festejem 2012 como “o ano do fim da impunidade” e as condenações do processo do “mensalão” levam, até, a pensar assim. Mas não será ilusão? Bastou o Supremo concluir o julgamento, ditar as penas e declarar cassados os mandatos dos três deputados condenados naquele vendaval de corrupção, para que o presidente da Câmara Federal, Marco Maia, protestasse, defendendo os colegas em nome “da dignidade do Parlamento”. O que é indigno? O envolvimento na corrupção ou a condenação dos corruptos?
Como se manejasse o esmeril ou o torno elétrico dos tempos de metalúrgico em Canoas, Marco Maia lembrou que os ministros do Supremo “têm o nome aprovado” pelo Parlamento, que até pode julgá-los por seus atos. Essa linguagem ameaçadora significará que os parlamentares estão acima da Justiça? Os réus tiveram ampla defesa, tudo foi público, nada iníquo ou em surdina. Por que, então, a reação do presidente da Câmara dos Deputados em defesa dos três condenados, comprovadamente envolvidos na trama corrupta?
Por tudo isto, o herói do ano, no fim, é o povo, que aguenta tudo, vive ilusões e festeja a fortuna da Mega Sena.
Diz-se que o prêmio de agora superará os R$ 200 milhões, menos do que os subornos do mensalão para alugar partidos, mas bela soma, enfim. Quem não saiba o que seja agarrar tanto dinheiro assim, pergunte à Rosemary Noronha. A protegida do ex-presidente Lula da Silva intermediou negócios por cifras 10 ou 20 vezes maiores quando chefiou o gabinete da Presidência da República em São Paulo. Estas coisas se perguntam a quem sabe. Nunca, por exemplo, a uma professora no Rio Grande do Sul, que (com R$ 900 ao mês) não conseguiria sequer 0,1% disto se vivesse pela eternidade absoluta dos séculos, desde o Big Bang da Criação até o fim do mundo.
Até porque destruímos a natureza de forma tão abrupta, que os descendentes dos maias, no México e na Guatemala, já recalculam (para valer) que a data do fim do mundo vai se abreviar.
Fim de ano é tempo de pensar. Todo pensamento é uma indagação, ou dúvida, e só indagando e duvidando chegamos à verdade. Nietzsche advertia que “devemos idolatrar a dúvida” e assim é! Só um sistema de contrapesos, que vá do “sim” ao “não”, nos leva à realidade. Se nos contentamos com as aparências, fugimos do real e optamos por algo postiço. Pela ilusão! Nosso Lupicínio Rodrigues já perguntava numa canção dos idos 1950: “O pensamento parece uma coisa à toa, mas como é que a gente voa quando começa a pensar?”.
O que fizemos ou desfizemos no ano? O que nos negamos a fazer? Fomos solidários? Onde ficou a bondade, esta coisa que a competição da sociedade de consumo tornou “fora de moda”, cafona e piegas? Até onde fomos cúmplices do crime e, na prática, optamos por ele, fingindo que pedíamos justiça sem nada fazer pelo justo? Até onde nos deixamos subornar ou subornamos? Ou mentimos em nome da verdade, inventando situações ou cifras? Até onde?
Talvez os brasileiros festejem 2012 como “o ano do fim da impunidade” e as condenações do processo do “mensalão” levam, até, a pensar assim. Mas não será ilusão? Bastou o Supremo concluir o julgamento, ditar as penas e declarar cassados os mandatos dos três deputados condenados naquele vendaval de corrupção, para que o presidente da Câmara Federal, Marco Maia, protestasse, defendendo os colegas em nome “da dignidade do Parlamento”. O que é indigno? O envolvimento na corrupção ou a condenação dos corruptos?
Como se manejasse o esmeril ou o torno elétrico dos tempos de metalúrgico em Canoas, Marco Maia lembrou que os ministros do Supremo “têm o nome aprovado” pelo Parlamento, que até pode julgá-los por seus atos. Essa linguagem ameaçadora significará que os parlamentares estão acima da Justiça? Os réus tiveram ampla defesa, tudo foi público, nada iníquo ou em surdina. Por que, então, a reação do presidente da Câmara dos Deputados em defesa dos três condenados, comprovadamente envolvidos na trama corrupta?
Por tudo isto, o herói do ano, no fim, é o povo, que aguenta tudo, vive ilusões e festeja a fortuna da Mega Sena.
--------------------
*Jornalista e escritor
Fonte: http://www.clicrbs.com.br/zerohora/jsp/default2.jsp?uf=1&local=1&source=a3996180.xml&template=3898.dwt&edition=21096§ion=1012
Imagem da Internet
Phone home!
Diana Lichtenstein Corso*
Para entender as crianças, pense como você se sente em viagem a um
país novo, uma cultura exótica, diferente, onde cada minuto é
desconcertante. Ao final de um único dia, parece que transcorreu uma
semana e só o que você quer é um banho e o quarto de hotel, sua casa
nesse planeta distante. Quanto menores, mais estrangeiras ao nosso mundo
elas são. Os pais terão que ser guias pacientes, saber a hora de
recolher seus turistas confusos e estressados à bem-vinda rotina
familiar.
Conviver com os pequenos exige atenção, sensibilidade de funcionar dentro de um ritmo que eles possam acompanhar, algo que poucos adultos e pais estão dispostos a fazer. É preciso manter-se falando com eles, diagnosticar seu desconforto. Crianças demandam tradução. Tudo lhes soa incompreensível, cansam fácil, precisam refugiar-se em seu mundo lúdico privado, em geral na hora em que o adulto gostaria de continuar na festa. São de tiro curto e, se forem forçadas a ir além de suas forças, vão acabar criando algum tipo de birra, litígio ou bagunça.
Crescemos, mas seguimos para sempre alienígenas às novidades do destino. Pelo resto da vida, as mudanças fascinam e assustam. Ao chegar, juventude, adultez e velhice sempre nos encontram contrariados, recalcitrantes e confusos. Somos como um computador superado, ficamos sobrecarregados e damos tilt a cada desafio. Nossa visão de mundo é como um sistema operacional condenado à defasagem.
Um bom exemplo disso está no filme E.T., de Spielberg, que completou três décadas neste ano que finda. Nessa história, só as crianças entendem o desamparo e o desterro do simpático extraterrestre, embora esse seja um sentimento universal. Todos temos nossa criança interior, essa que nos assombra para sempre. Ela também se confunde com o desconhecido e quer ligar para casa, precisa contato com a nave-mãe.
Ano novo é como lugar novo. A sensação de caderno virgem é a expressão otimista dos balanços de fim de ano. Prometemos que desta vez não haverá folhas incompletas, amassadas, em branco! Fazemos listas de boas intenções, votos depositários da insaciável cobiça de perfeição. Graças a isso, o primeiro dia do ano marca o início de uma jornada fadada à frustração. Meus cadernos continuam caóticos, em sentido figurado, mas, como todo mundo, tenho fé na renovação, ela abre a porta da esperança. Reincidentes, voltamos a acreditar na aposta em que “desta vez vou fazer tudo certo”, mas e se não? A cada recomeço reencontro a criança acuada que nunca me deixou. “Phone home, phone home!”, pedia o E.T.
Para o ano que entra e tantos outros, lembre-se de que dependemos de encontrar um equilíbrio instável entre o conhecido e o estranho. Precisamos seguir em frente, mas de tanto em tanto, repousar em território conhecido, mesmo que ele pareça um caderno rabiscado, com orelhas. Seja um adulto compreensivo consigo mesmo. Ao longo do trajeto, se agache, olhe sua criança interior nos olhos e a conforte. Seja um bom pai para você mesmo e feliz ano novo!
--------------------------
dianamcorso@gmail.com
*PsicanalistaConviver com os pequenos exige atenção, sensibilidade de funcionar dentro de um ritmo que eles possam acompanhar, algo que poucos adultos e pais estão dispostos a fazer. É preciso manter-se falando com eles, diagnosticar seu desconforto. Crianças demandam tradução. Tudo lhes soa incompreensível, cansam fácil, precisam refugiar-se em seu mundo lúdico privado, em geral na hora em que o adulto gostaria de continuar na festa. São de tiro curto e, se forem forçadas a ir além de suas forças, vão acabar criando algum tipo de birra, litígio ou bagunça.
Crescemos, mas seguimos para sempre alienígenas às novidades do destino. Pelo resto da vida, as mudanças fascinam e assustam. Ao chegar, juventude, adultez e velhice sempre nos encontram contrariados, recalcitrantes e confusos. Somos como um computador superado, ficamos sobrecarregados e damos tilt a cada desafio. Nossa visão de mundo é como um sistema operacional condenado à defasagem.
Um bom exemplo disso está no filme E.T., de Spielberg, que completou três décadas neste ano que finda. Nessa história, só as crianças entendem o desamparo e o desterro do simpático extraterrestre, embora esse seja um sentimento universal. Todos temos nossa criança interior, essa que nos assombra para sempre. Ela também se confunde com o desconhecido e quer ligar para casa, precisa contato com a nave-mãe.
Ano novo é como lugar novo. A sensação de caderno virgem é a expressão otimista dos balanços de fim de ano. Prometemos que desta vez não haverá folhas incompletas, amassadas, em branco! Fazemos listas de boas intenções, votos depositários da insaciável cobiça de perfeição. Graças a isso, o primeiro dia do ano marca o início de uma jornada fadada à frustração. Meus cadernos continuam caóticos, em sentido figurado, mas, como todo mundo, tenho fé na renovação, ela abre a porta da esperança. Reincidentes, voltamos a acreditar na aposta em que “desta vez vou fazer tudo certo”, mas e se não? A cada recomeço reencontro a criança acuada que nunca me deixou. “Phone home, phone home!”, pedia o E.T.
Para o ano que entra e tantos outros, lembre-se de que dependemos de encontrar um equilíbrio instável entre o conhecido e o estranho. Precisamos seguir em frente, mas de tanto em tanto, repousar em território conhecido, mesmo que ele pareça um caderno rabiscado, com orelhas. Seja um adulto compreensivo consigo mesmo. Ao longo do trajeto, se agache, olhe sua criança interior nos olhos e a conforte. Seja um bom pai para você mesmo e feliz ano novo!
--------------------------
dianamcorso@gmail.com
Imagem: Cristian Girotto com sua série L'Enfant Exterieur (A Criança Exterior).
Fonte: http://www.clicrbs.com.br/zerohora/30/12/2012
sábado, 29 de dezembro de 2012
O apocalipse em banho-maria
Os ingleses são decididamente diferentes. Assim é que na
véspera da passagem do ano, quando todos tentam se embalar com champanhe
e esperanças, o “Economist”, seu mais importante semanário e um dos
mais lidos em todo o mundo, circula com uma capa mefistofélica. O “Breve
Guia para o Inferno” é uma engraçada e elaborada charge onde diabinhos,
diabos e asquerosas criaturas exibem os pecados capitais interpretados
pelos players da cena mundial.
Ninguém escapa: a Luxúria é representada pelo general Petraeus e Berlusconi, banqueiros são engolidos pelo monstro da Cobiça, Satanás, diabo-mor, maneja um painel denominado “mudanças climáticas” enquanto segura a própria capa da revista. O único risonho, Barack Obama, não obstante ostentar o pecado do Orgulho parece inebriado pela autoestima, sem reparar no abismo fiscal. Ao fundo, atolado no lodaçal, um camburão designado como “jornalismo inglês’. A auto-flagelação faz sentido: os editores preferiram poupar o premiê britânico a brigar com o governo. Ninguém é de ferro.
A virada da ampulheta na próxima segunda, 31, será iluminada pelos fogos de artifício, artificiosos e enganosos, pois o Dia Seguinte já se prenuncia comprometido. Como numa tela do nosso conhecido Caravaggio, o claro-escuro está mais escuro do que claro. O apocalipse esquenta em banho-maria - devagar, infalível.
A crise econômica deixou de ser notícia de jornal, é realidade palpável, concreta, brutal. Uma generalizada sensação de década perdida está tirando dos jovens o gosto de começar e, dos velhos, o prazer de contemplar.
O mundo enrolou — evaporaram-se edens e eldorados, sumiram as doutrinas messiânicas, as utopias estão aposentadas, emergentes e submergentes empacaram. A democracia está em crise, a prova é o tremendo aumento das manifestações de rua.
O capitalismo está em crise, a prova é a sua incapacidade para medicar-se, o socialismo está em crise, a prova é a sua canibalização pelo corporativismo, o liberalismo está enfezado, a prova é a submetralhadora debaixo do braço, a religião está em crise, a prova é o seu apego ao poder temporal.
Isso é grave: os escritores avisam que vão parar de escrever porque nada mais merece ser contado. Mais grave ainda é o embaçamento do espelho da crise — a mídia — desconectada pelo excesso de conexões.
A Europa, mostruário da paz, derrubou fronteiras e agora está às voltas com secessões na Bélgica e Espanha (a fome espanta qualquer disposição para a fraternidade). Venezuela, Argentina e Paraguai estão matando a pauladas o Mercosul sonhado por Bolívar.
Brics não são exceção: o estupro de uma jovem na Índia e as gigantescas manifestações de protesto exibem a enorme distância entre crescimento e real desenvolvimento. O terror político entranhado na Rússia é um remake tenebroso e gelado do fascismo mediterrâneo. Agarrados à doida locomotiva chinesa voamos em direção de monumental incógnita que chinês algum é capaz de deslindar.
E nós, privilegiados brasilianos, entre apagões e ilusões, mas sempre abençoados pelos deuses, vamos enfim desfrutar o gosto de viver sob o manto da lei. Sensação nova, estranha, complicada, penosa, com um travo do ceticismo no tocante a crimes e castigos. Sem alternativas.
--------------------------
* Documentarista, argumentista, jornalista e escritor. adines@uol.com.br
Fonte: http://correio.rac.com.br/_conteudo/2012/12/
Imagem da Internet
O que espero e o que desejo a cada um no ano que vai nascer
(*) Ucho Haddad
Cresci
ouvindo, nas inúmeras viradas de ano, “adeus ano velho, feliz ano
novo”. Não gosto de despedida, pois sempre fica um risco de tristeza no
coração. Isso me incomoda até mesmo quando me despeço de alguém que não
merece a minha preocupação. Assim, mais uma vez deixarei de dizer “adeus
ano velho” na estreia de 2013, pois aprendi a ser resiliente. Direi,
sim, feliz ano novo!
Há quem queira esquecer rapidamente 2012, mas quero guardá-lo em
lugar visível para que possa consultar, vez por outra, tudo o que me
chateou, incomodou, atrapalhou, me entristeceu. Quem sabe consigo
driblar os tropeços e não repetir os mesmos erros. Se em 2012 não
tivesse acontecido tudo o que aconteceu, por certo não teria crescido
mais um pouco. Aprende-se nos erros, nos equívocos, nos enganos, nas
apostas erradas, nos negócios mal feitos, nos projetos inacabados, nos
amores que falham.
Aquele que erra ao menos uma vez na vida aumenta a chance de acertar.
É o que busco todos os dias, acertar, mas isso às vezes escapa do
desejo. Errar, afinal, é humano. Como sempre digo e repito, sou o melhor
produto dos meus próprios erros. Erra quem tenta acertar. Errei por
este motivo: acertar. O acerto ocorre quando as chances de erro dão uma
trégua, uma volta no quarteirão, quando tiram um cochilo inesperado,
quando saem de cena, quando se cansam de atentar.
Também não direi “que tudo se realize no ano que vai nascer”.
Primeiro porque, homem de fé que sou, continuo acreditando que o Senhor
sempre me coloca sempre no melhor caminho, por mais incômoda que seja a
paisagem. Conformismo? Não, pois se assim fosse não teria escolhido o
ofício de jornalista. Conformismo não encontra espaço no meu pensamento,
no meu dicionário.
Assim, tudo o que tiver de acontecer “no ano que vai nascer”
acontecerá. Prefiro apostar na sequência da vida e fazer a minha parte,
como faço todos os dias, todos os instantes.
Muito dinheiro no bolso muitas vezes nos leva a errar. Quero dinheiro
suficiente para acertar, o maior número de vezes possível. Sem ser para
dar e vender, saúde quero, sim, para continuar na luta diária que
abracei desde cedo. Defender o Brasil e os brasileiros. E para isso é
preciso saúde, até mesmo, fosse possível, recebida e comprada.
Aos solteiros, aos casados, aos indecisos, aos que ainda não sabem,
aos que têm certeza, aos enrolados, aos enamorados, aos apaixonados…
Sorte no amor, muita sorte no amor. É no amor que teimosamente acredito.
Que no ano novo você acerte errando o menos possível. Se errar,
paciência, não desista de acertar. Que queira o possível, por mais
impossível que possa parecer, pois assim tudo há de se realizar no ano
que vai nascer.
Que no ano novo você tenha dinheiro para acertar, não para errar. Que
lute por seus ideais, esforce-se para fazer dos sonhos realidades
viáveis. Que você tenha saúde para acertar, que acerte ao máximo para
ter saúde.
Solteiro, casado, indeciso, sem saber, com certeza, enrolado, enamorado, apaixonado… Ame, ame sempre!
Ame para acelerar sua existência, para sentir sem sentido. Ame para
levar o perfume que se foi, para conhecer o lado possível do impossível.
Ame para descobrir a ilógica da razão, para querer sem querer. Ame
para ter a visão múltipla de um ponto único, para fazer a leitura
dinâmica de uma só palavra.
Ame para radiografar o abstrato, para ouvir o ruído do silêncio. Ame porque amar é deixar a realidade invadir o sonho.
Ame para acertar, mesmo que você erre. Ame para não errar. Ame, porque amar é o tudo que se realiza, agora e sempre.
Ame com ou sem dinheiro no bolso, porque amar não tem preço. Ame, porque amar é fazer o coração ter saúde pra dar e vender.
Ame por amar. Ame para ser feliz em 2013, ame para ser feliz sempre, em dois mil e sempre.
Ame, simplesmente ame, pois amar é a melhor receita de vida.
-------------
* Jornalista.
Fonte: http://ucho.info/o-que-espero-e-o-que-desejo-a-cada-um-no-ano-que-vai-nascer
Imagem da Internet
Fim de ano feliz
Drauzio Varella*
A complexidade da vida adulta desvia nossa atenção e nos impede de reconhecer a felicidade que está perto
Feliz Natal e próspero Ano-Novo, dizem as mensagens de fim de ano.
Recebi mais de 50 com dizeres semelhantes, algumas carregadas de
reflexões filosófico-literárias; outras, insuportavelmente poéticas.
Como a palavra próspero é sem graça e de significado incerto -por sorte
empregada apenas nesta época do ano-, vou me concentrar nos desejos
mútuos de felicidade natalina que pontuam as relações sociais a partir
da segunda quinzena de dezembro.
A felicidade não é um estado de espírito ao alcance da mão, é ave de voo
ágil que nos visita quando bem entende. É arrebatadora, porém
voluntariosa e fugidia. À menor distração, ao admirar-lhe a beleza da
plumagem, bate asas para sítios distantes, deixando a nostalgia em seu
lugar.
Felicidade que chega com tudo, disposta a passar dias inteiros em nossa
companhia, é privilégio exclusivo da infância. Só nessa fase da vida
conseguimos acordar e ir para cama tomados por uma alegria sem fim.
Anos atrás, escrevi um livro infantil sobre esse tema: "De Braços para o
Alto". Nele, descrevi as férias numa fazenda, aos sete anos, em
companhia de oito primos quase da mesma idade.
Nascido num bairro cinzento, em que as sirenes das fábricas ditavam a
rotina das ruas, de um dia para outro fui transportado para o mundo dos
campos a perder de vista, dos passarinhos, cavalos, florestas, rios e
cachoeiras, gado no pasto e futebol no gramado em frente à sede da
fazenda, todo fim de tarde.
Acordávamos com os primeiros raios de sol, já excitados para planejar as
atividades do dia, enquanto as tias serviam o café da manhã.
Depois, encilhávamos os cavalos, montávamos e saíamos enfileirados como
nos filmes de faroeste. Pelados, mergulhávamos nos rios, nadávamos na
lagoa e sentíamos o impacto da água fria que despencava entre as
samambaias da cachoeira, na sombra da mata. À noite, sob a luz do
lampião, líamos gibis e escutávamos a conversa dos adultos em volta do
fogão à lenha e as histórias de terror que o tio José contava.
Dormíamos num quarto enorme, com colchões espalhados pelo chão. Quando
todos se calavam, eu resistia ao sono, para pensar nas aventuras que me
aguardavam no dia seguinte. Em minha lembrança, foi a primeira vez que
convivi com a felicidade plena, persistente e duradoura, substituída por
uma tristeza dolorida que me fez chorar quando as férias terminaram.
Na vida adulta, a felicidade é caprichosa como a mulher mais desejada.
Inútil aguardar que venha a nós, é preciso persegui-la com afinco e
estar atento para não deixá-la passar despercebida no meio das
atribulações cotidianas, porque o menor descuido é capaz de afugentá-la
por tempo indeterminado. Ela é inimiga dos afoitos que a cortejam com
intenções imediatas; para entregar-se, exige dedicação extrema,
sabedoria, desprendimento, perspicácia e, sobretudo, paciência.
A diferença fundamental entre a felicidade da criança e aquela do adulto
não está na intensidade da sensação de prazer que toma conta da alma,
exalta as cores do mundo e faz a vida pulsar forte, exuberante, mas na
duração desse estado. Os momentos felizes dos adultos duram menos porque
são interrompidos pelas preocupações com a lida diária, por pensamentos
negativos resultantes dos desencontros das relações humanas e pelo medo
causado por experiências traumáticas.
A complexidade da vida adulta desvia nossa atenção e nos impede de
reconhecer a felicidade que está por perto, limitação que a transforma
em bem transcendental, sempre distante, dependente de acontecimentos
grandiosos e improváveis que sequer conseguimos definir quais seriam.
É essa incapacidade de lidar com o presente que nos faz colocá-la num
ponto futuro ou relegá-la ao passado remoto. Costumo duvidar das
recordações de momentos idílicos vividos anteriormente; na maioria das
vezes, não passam de armadilhas da memória, faculdade da mente
especializada em editar fatos passados para retirar deles o conteúdo
nefasto.
Passar a vida a lamentar a felicidade perdida é apanágio de velhos chatos, fadados a terminar seus dias na solidão.
Depois dessas considerações tão filosófico-literárias quanto os postais
de boas-festas mais bregas que recebi, caríssimo leitor, só me resta
agradecer a atenção e desejar-lhe feliz Ano-Novo.
-----------------
* Médico oncologista. Escritor.
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrada/86098-fim-de-ano-feliz.shtml
Imagem da Internet
O que os olhos não podem ver
J.J. Camargo*
Jose Saramago, no seu Ensaio sobre a Cegueira, observou que ela
afasta a pessoa das coisas, mas que a surdez é pior, porque afasta-a das
outras pessoas.
Lembrei disso quando a Iraci entrou tateando no consultório, acompanhada de uma família amorosa que não escondia afeto e preocupação com a ansiedade dela.
Aos 84 anos, com uma cabeça rápida e bem- humorada, tivera o diagnóstico de um pequeno tumor pulmonar havia seis meses, e relutara durante este tempo contra uma indicação cirúrgica que ela rechaçava com um argumento simplista: como não sentia nada, a agressividade do tratamento proposto não se justificava.
Pressionada pela revelação de que a lesão crescera numa nova tomografia, ela foi trazida, transbordante de medo, para ouvir uma segunda opinião.
Revisados os exames, rimos um pouco com a informação de que jamais tragara durante mais de 40 anos de fumo ininterrupto. Quando a repreendi dizendo do absurdo de fumegar durante tantos anos e nunca aproveitar o bom de fumar, ela deu uma risada espontânea que, tive a impressão fugaz, colocou um brilho pálido nos olhos azulados e mortos.
A justificativa da ausência de sintomas pelo pequeno tamanho da lesão, e que era exatamente por isso considerada tão boa candidata ao tratamento cirúrgico, pareceu remover uma tonelada de dúvidas e, na medida em que a consulta avançou, as mãos pareceram mais soltas, pararam de alisar nervosamente o vestido, e entraram na conversa como bengalas das palavras.
Quando ela espontaneamente anunciou que estava pronta para ser operada, nos despedimos, e abraçados, ela me disse: “Gostei tanto do Sr.! Que pena que não pude lhe ver!”
E eu respondi, provocativo: “Pois eu pude, e gostei do que vi!”
Ainda abraçados, ela completou: “Então vamos nos querer do meu jeito. E nunca subestime o que percebem aqueles que não podem ver!”
Quando ela saiu, os passos pareciam mais firmes e seguros. Havia a leveza de quem descarregara o peso da indecisão. No caminho de volta para casa haveria mais luz. Daquele tipo que, inalcançável aos olhos, só se acende com plenitude nos coração dos cegos.
-------------
* J.J. Camargo é cirurgião torácico e chefe do Setor de Transplantes da Santa Casa de Misericórdia
Lembrei disso quando a Iraci entrou tateando no consultório, acompanhada de uma família amorosa que não escondia afeto e preocupação com a ansiedade dela.
Aos 84 anos, com uma cabeça rápida e bem- humorada, tivera o diagnóstico de um pequeno tumor pulmonar havia seis meses, e relutara durante este tempo contra uma indicação cirúrgica que ela rechaçava com um argumento simplista: como não sentia nada, a agressividade do tratamento proposto não se justificava.
Pressionada pela revelação de que a lesão crescera numa nova tomografia, ela foi trazida, transbordante de medo, para ouvir uma segunda opinião.
Revisados os exames, rimos um pouco com a informação de que jamais tragara durante mais de 40 anos de fumo ininterrupto. Quando a repreendi dizendo do absurdo de fumegar durante tantos anos e nunca aproveitar o bom de fumar, ela deu uma risada espontânea que, tive a impressão fugaz, colocou um brilho pálido nos olhos azulados e mortos.
A justificativa da ausência de sintomas pelo pequeno tamanho da lesão, e que era exatamente por isso considerada tão boa candidata ao tratamento cirúrgico, pareceu remover uma tonelada de dúvidas e, na medida em que a consulta avançou, as mãos pareceram mais soltas, pararam de alisar nervosamente o vestido, e entraram na conversa como bengalas das palavras.
Quando ela espontaneamente anunciou que estava pronta para ser operada, nos despedimos, e abraçados, ela me disse: “Gostei tanto do Sr.! Que pena que não pude lhe ver!”
E eu respondi, provocativo: “Pois eu pude, e gostei do que vi!”
Ainda abraçados, ela completou: “Então vamos nos querer do meu jeito. E nunca subestime o que percebem aqueles que não podem ver!”
Quando ela saiu, os passos pareciam mais firmes e seguros. Havia a leveza de quem descarregara o peso da indecisão. No caminho de volta para casa haveria mais luz. Daquele tipo que, inalcançável aos olhos, só se acende com plenitude nos coração dos cegos.
-------------
* J.J. Camargo é cirurgião torácico e chefe do Setor de Transplantes da Santa Casa de Misericórdia
Fonte: http://www.clicrbs.com.br/zerohora/jsp/default2.jsp?uf=1&local=1&source=a3995387.xml&template=3916.dwt&edition=21095§ion=1028
Imagem da Internet
O ano que não terminou
MARIO CORSO *
A
temática apocalíptica aciona um temor de raízes místicas que opera fora
da lógica da razão. A questão é: por que discursos assim têm tanta
ressonância?
E o fim do mundo não aconteceu. Confesso uma ponta de decepção, o fim, ou ao menos uma catástrofe, engrandeceria o homem, nos restituiria a condição de protagonistas num universo indiferente ao nosso destino. O cosmos foi mais uma vez indiferente aos rogos dos humanos e às suas previsões, o universo e o planeta continuam na sua imperturbável mecânica celeste, independente e ignorantes das nossas malfadadas conjecturas.
Diga-se, em favor dos Maias, os pretensos profetas do apocalipse em questão, que isso não foi uma ideia deles, e sim uma leitura apressada nossa, a partir de informações incompletas sobre sua cultura e calendário. Se não foi dessa vez, não se preocupe, cedo ou tarde vão anunciar outro fim, e de novo vamos vacilar se acreditamos ou não. A temática apocalíptica é uma velha conhecida e parece que não sai de cartaz. Não faz muitos anos, em 2000, era o mesmo temor, o mundo iria acabar, e cá estamos nós, lampeiros como sempre.
Inútil reclamar da imbecilidade, invocar racionalidades de todos os matizes, acusar os crentes apocalípticos de passar atestado de ignorância científica. Até procede, mas a questão é outra: esse temor tem raízes míticas, e esse sistema de crenças e medos não funciona com a lógica da razão. Quando se opera com o sistema mítico, a ciência e o bom senso não têm entrada. Qualquer sistema mitológico clássico, quando conseguimos captá-lo em sua forma mais articulada e completa, pensa o cosmos com os mesmos termos: o nascimento (ou renascimento), um período de auge glorioso, um declínio sofrido e, finalmente, a destruição com o retorno ao caos. Portanto, o apocalipse faz parte desse esquema, dessa visão do mundo. Quando se raciocina miticamente, mais dia menos dia, desemboca-se nesse vórtice.
A questão que muitos se colocam é: por que discursos assim, tão disparatados, ainda têm pregnância? Por que, contra todas as evidências possíveis, ainda há quem acredite nisso? Creio que a questão está mal posta, poderíamos pensar o contrário, por que não seria assim? Goste-se disso ou não, o tempo do mito não acabou. O avanço da ciência e seu método, se por um lado combate a religião, a superstição, a magia, deixa muitas questões sem respostas e é onde se abre a brecha para o retorno do pensamento mítico. Os homens podem viver com pouco, mas raramente abrem mão de um sentido para o mundo e para sua vida. Qual a razão da existência? Para onde vamos? De onde viemos? Se o futuro promete tanto, por que me tocou viver esta época tão menor? Que diferença fiz, farei, nada mudaria se eu jamais tivesse nascido?
A ciência explica o mundo, mas quanto aos anseios de sentido de que padecemos, fornece mais dúvidas do que certezas. São poucos que aguentam a vida segurando-se no pouco que ela nos dá e encaram o sem sentido da existência. Já o pensamento mítico é um gerador de sentidos, ele capta o horror humano ao vazio e o preenche de qualquer maneira, com o que estiver mais à mão. Melhor um universo de conto de fadas, com entidades benignas ou malignas nos controlando, que o nada. Nosso narcisismo não suporta que não haja transcendência, que sejamos um acaso na imensidão cósmica, um mero macaco melhorado.
O erro mais banal, mais primário, em que nosso pensamento cai, e como cai, é o de confundir-se com o objeto a ser examinado. Se alguém acredita que estamos no fim dos tempos, é possível que ele tenha razão, algum fim se aproxima, mas é mais provável que seja o fim dele, ou o fim de um mundo que reconhece como seu. Todos constatamos a velocidade com que a história anda e atropela tudo: costumes, formas de pensar, de viver. São tantas as novidades que perdemos as referências. A revolução da semana passada está velha, a tecnologia de ontem virou sucata.
A sensação é que o ritmo vem se acelerando. O fato é que nos sentimos ultrapassados a cada dia e, se não estamos em constante adaptação, corremos o risco de não entender o mundo em que vivemos. Nesse constante recriar-se para o novo, alguns se cansam e se perdem pelo caminho, ou ainda, simplesmente desistem. São esses os que vivem o fim do seu mundo, afinal, os valores que lhe ensinaram na infância já não servem, a paisagem não é a mesma, os anseios são outros. Não fica claro que o mundo está acabando? Quando chega a notícia do fim dos tempos, apenas confirma algo que já sentimos.
Sinceramente não desgosto de ondas apocalípticas, me sinto mais humano, mais completo, reencontro minhas desativadas ramificações religiosas que por momentos entram em alerta. Uso para fazer um exercício, que sugiro a todos: perguntar-se qual parte nossa está morrendo? Qual dos horizontes em vias de desaparecimento vamos sentir falta?
O homem não tem uma inclinação nostálgica por vocação mórbida, nossa substância é fornecida pelo tempo em que vivermos, que nos fez ser o que nos tornamos, isso é tudo de que dispomos. É duro pensar que tantos seguirão sem nós, por um tempo indefinido. Parece injusto, jamais saberemos da história que está por vir. Pensar que seríamos o último capítulo nos deixaria no admirável papel de ponto final, protagonistas essenciais, o que infelizmente não somos. Uma velha e saudosa senhora que conheci sempre dizia: “O cemitério está lotado de insubstituíveis”. Somos todos datados. A questão é quando expira o prazo. Viveremos um apocalipse privado, está é a única certeza.
------------------
* Psicanalista
E o fim do mundo não aconteceu. Confesso uma ponta de decepção, o fim, ou ao menos uma catástrofe, engrandeceria o homem, nos restituiria a condição de protagonistas num universo indiferente ao nosso destino. O cosmos foi mais uma vez indiferente aos rogos dos humanos e às suas previsões, o universo e o planeta continuam na sua imperturbável mecânica celeste, independente e ignorantes das nossas malfadadas conjecturas.
Diga-se, em favor dos Maias, os pretensos profetas do apocalipse em questão, que isso não foi uma ideia deles, e sim uma leitura apressada nossa, a partir de informações incompletas sobre sua cultura e calendário. Se não foi dessa vez, não se preocupe, cedo ou tarde vão anunciar outro fim, e de novo vamos vacilar se acreditamos ou não. A temática apocalíptica é uma velha conhecida e parece que não sai de cartaz. Não faz muitos anos, em 2000, era o mesmo temor, o mundo iria acabar, e cá estamos nós, lampeiros como sempre.
Inútil reclamar da imbecilidade, invocar racionalidades de todos os matizes, acusar os crentes apocalípticos de passar atestado de ignorância científica. Até procede, mas a questão é outra: esse temor tem raízes míticas, e esse sistema de crenças e medos não funciona com a lógica da razão. Quando se opera com o sistema mítico, a ciência e o bom senso não têm entrada. Qualquer sistema mitológico clássico, quando conseguimos captá-lo em sua forma mais articulada e completa, pensa o cosmos com os mesmos termos: o nascimento (ou renascimento), um período de auge glorioso, um declínio sofrido e, finalmente, a destruição com o retorno ao caos. Portanto, o apocalipse faz parte desse esquema, dessa visão do mundo. Quando se raciocina miticamente, mais dia menos dia, desemboca-se nesse vórtice.
A questão que muitos se colocam é: por que discursos assim, tão disparatados, ainda têm pregnância? Por que, contra todas as evidências possíveis, ainda há quem acredite nisso? Creio que a questão está mal posta, poderíamos pensar o contrário, por que não seria assim? Goste-se disso ou não, o tempo do mito não acabou. O avanço da ciência e seu método, se por um lado combate a religião, a superstição, a magia, deixa muitas questões sem respostas e é onde se abre a brecha para o retorno do pensamento mítico. Os homens podem viver com pouco, mas raramente abrem mão de um sentido para o mundo e para sua vida. Qual a razão da existência? Para onde vamos? De onde viemos? Se o futuro promete tanto, por que me tocou viver esta época tão menor? Que diferença fiz, farei, nada mudaria se eu jamais tivesse nascido?
A ciência explica o mundo, mas quanto aos anseios de sentido de que padecemos, fornece mais dúvidas do que certezas. São poucos que aguentam a vida segurando-se no pouco que ela nos dá e encaram o sem sentido da existência. Já o pensamento mítico é um gerador de sentidos, ele capta o horror humano ao vazio e o preenche de qualquer maneira, com o que estiver mais à mão. Melhor um universo de conto de fadas, com entidades benignas ou malignas nos controlando, que o nada. Nosso narcisismo não suporta que não haja transcendência, que sejamos um acaso na imensidão cósmica, um mero macaco melhorado.
O erro mais banal, mais primário, em que nosso pensamento cai, e como cai, é o de confundir-se com o objeto a ser examinado. Se alguém acredita que estamos no fim dos tempos, é possível que ele tenha razão, algum fim se aproxima, mas é mais provável que seja o fim dele, ou o fim de um mundo que reconhece como seu. Todos constatamos a velocidade com que a história anda e atropela tudo: costumes, formas de pensar, de viver. São tantas as novidades que perdemos as referências. A revolução da semana passada está velha, a tecnologia de ontem virou sucata.
A sensação é que o ritmo vem se acelerando. O fato é que nos sentimos ultrapassados a cada dia e, se não estamos em constante adaptação, corremos o risco de não entender o mundo em que vivemos. Nesse constante recriar-se para o novo, alguns se cansam e se perdem pelo caminho, ou ainda, simplesmente desistem. São esses os que vivem o fim do seu mundo, afinal, os valores que lhe ensinaram na infância já não servem, a paisagem não é a mesma, os anseios são outros. Não fica claro que o mundo está acabando? Quando chega a notícia do fim dos tempos, apenas confirma algo que já sentimos.
Sinceramente não desgosto de ondas apocalípticas, me sinto mais humano, mais completo, reencontro minhas desativadas ramificações religiosas que por momentos entram em alerta. Uso para fazer um exercício, que sugiro a todos: perguntar-se qual parte nossa está morrendo? Qual dos horizontes em vias de desaparecimento vamos sentir falta?
O homem não tem uma inclinação nostálgica por vocação mórbida, nossa substância é fornecida pelo tempo em que vivermos, que nos fez ser o que nos tornamos, isso é tudo de que dispomos. É duro pensar que tantos seguirão sem nós, por um tempo indefinido. Parece injusto, jamais saberemos da história que está por vir. Pensar que seríamos o último capítulo nos deixaria no admirável papel de ponto final, protagonistas essenciais, o que infelizmente não somos. Uma velha e saudosa senhora que conheci sempre dizia: “O cemitério está lotado de insubstituíveis”. Somos todos datados. A questão é quando expira o prazo. Viveremos um apocalipse privado, está é a única certeza.
------------------
* Psicanalista
Fonte: http://www.clicrbs.com.br/zerohora/jsp/default2.jsp?uf=1&local=1&source=a3995431.xml&template=3916.dwt&edition=21095§ion=1029
Os Compadres Corcundas*
Conto 2
Os Compadres Corcundas
Era
uma vez dois corcundas, compadres, um rico e outro pobre. O povo do
lugar vivia mangando do corcunda pobre e não reparava no rico. O pobre
andava triste e de mais a mais o tempo estava cruel e ele era caçador.
Numa
feita, esperando uns veados, já tardinha, adormeceu no girau e acordou
noite alta. Ficou sem querer voltar para casa. Ia se acomodando para
pegar no sono de novo quando ouviu uma cantiga ao longe, como se muita
gente cantasse ao mesmo tempo.
- Deve ser alguma desmancha de farinha aqui por perto. Vou ajudar!
Desceu
da árvore e botou-se no caminho, andando, andando, no rumo da cantiga
que não descontinuava. Andou, andou, até que, chegando perto de um
serrote, onde havia uma lage limpa, muito grande e branca, viu uma roda
de gente esquisita, vestida de diamantes que espelhavam ao luar. Velhos,
rapazes e meninos, todos cantavam e dançavam de mãos dadas, o mesmo
verso sem mudar:
Segunda, terça-feira,
Vai, vem!
Segunda, terça-feira,
Segunda, terça-feira,
Vai, vem!
O
caçador ficou tremendo de medo. As pernas nem deixavam ele andar.
Escondeu-se numa moita de mofundos e assistiu sem querer aquela cantoria
que era sempre a mesma, horas e horas.
Com
o tempo foi se animando, ficando mais calmo e, sendo metido a
improvisador e batedor de viola, cantou na toada que o povo esquisito
estava rodando:
Segunda, terça-feira,
Vai, vem!
E quarta e quinta-feira,
E quarta e quinta-feira,
Meu bem!
Boca
para que disseste! Calou-se tudo imediatamente e aquele povo todo
espalhou-se como ribaçã procurando, procurando. Acharam o corcunda e o
levaram para o meio da lage como formiga carrega barata morta. Largaram
ele e um velhão, brilhando como um sacrário, perguntou, com uma voz
delicada:
- Foi você quem cantou o verso novo da cantiga?
O caçador cobrou coragem e respondeu:
- Fui eu, sim senhor!
O velhão disse:
- Quer vender o verso?
- Quero sim, senhor. Não vendo, mas dou o verso de presente, por que gostei do baile animado.
O velho achou graça e todo aquele povo esquisito riu também.
- Pois bem - disse o velhão - uma mão lava a outra. Em troca do verso eu te tiro essa corcunda e esse povo te dá um bisaco novo!
Passou
a mão nas costas do caçador e este tornou-se esbelto como um rapaz, sem
corcunda nem nada. Trouxeram um bisaco novo e recomendaram que só
abrisse quando o sol nascesse.
O
caçador meteu-se na estrada, andando, andando e assim que o sol nasceu
abriu o bisaco e o encontrou cheio de pedras preciosas e moedas de ouro.
Só faltou morrer de contente.
No
outro dia comprou uma casa, com todos os preparos, mobília, vestiu
roupa bonita e foi para a missa porque era domingo. Lá na igreja
encontrou o compadre rico, também corcunda. Este quase cai de costas,
assombrado com a mudança. Perguntou muito e mais espantado ficou
reparando no traje do compadre, e ao saber que ele agora tinha casa e
cavalo gordo e se considerava rico.
O
pobre contou tudo; e, como a medida do ter nunca se enche, o rico
resolveu arranjar ainda mais dinheiro e livrar-se da corcunda nas
costas.
Esperou
uns dias pensando no que ia fazer e largou-se para o mato no dia azado.
Tanto fez que ouviu a cantiga e botou-se na direção da toada. Achou o
povo esquisito dançando de roda e cantando:
Segunda, terça-feira,
Vai, vem!
E quarta e quinta-feira,
E quarta e quinta-feira,
Meu bem!
O rico não se conteve. Abriu o par de queixos e foi logo berrando:
Sexta, sábado e domingo
Também!
Calou-se
tudo rapidamente. O povo esquisito voou para cima do atrevido e o
levaram para a laje onde estava o velhão. Esse gritou, furioso:
-
Quem lhe mandou meter-se onde não é chamado, seu corcunda besta? Você
não sabe que gente encantada não quer saber de sexta-feira, dia em que
morreu o Filho do Alto; sábado, dia em que morreu o Filho do Pecado, e
domingo, dia em que ressuscitou quem nunca morre? Não sabia? Pois fique
sabendo! E para que não se esqueça da lição, leve a corcunda que
deixaram aqui e suma-se da minha vista senão acabo com seu couro!
E
enquanto falava os outros iam dando empurrão, tapona e beliscão no
rico. O velhão passou a mão no peito do corcunda e deixou ali a outra,
aquela de que o compadre pobre se livrara.
Depois deram uma carreira no homem, deixando-o longe, e todo arranhado, machucado, roxo de bofetadas e pontapés.
E assim viveu o resto de sua vida, rico, mas com duas corcundas, uma adiante e outra atrás, para não ser ambicioso.
-------------------
Da obra "Contos Tradicionais do Brasil", de Luís da Câmara Cascudo
Fonte: http://luzecalor.blogspot.fr/
sexta-feira, 28 de dezembro de 2012
Os guerreiros da maldade
GAUDÊNCIO TORQUATO* |
Ao visitar a sagrada montanha de Taishan, Confúcio, o sábio
chinês, deparou-se com uma mulher cujos parentes haviam sido devorados
por tigres. Indagou: “Por que não se muda daqui?” Ouviu como resposta o
lamento: “Porque os governantes são mais ferozes que os tigres”. A
historinha é um libelo contra os políticos. A desilusão com os governos
tem atravessado ciclos históricos, ganhando referências e pontuações que
marcam o caráter predador de mandatários que se valem da política como
escada para a ascensão pessoal. Saint-Just, um dos jacobinos da
Revolução Francesa, executado após a queda de Robespierre, costumava
dizer: “Todas as artes produziram maravilhas, exceto a arte de governar,
que só produziu monstros”.
Nessa mesma linha, registra-se uma lapidar frase de John Adams, o segundo presidente dos Estados Unidos: “Todas as ciências progrediram, menos a de governar, que não avançou, sendo hoje exercida apenas um pouquinho melhor do que há quatro mil anos”. Concorde-se ou não com a moldura expressiva, o fato é que, aqui e alhures, multiplicam-se exemplos da devastação que governantes e políticos provocam nas mais diferentes roças da ‘rés pública’. Apesar dos avanços da democracia nos palcos contemporâneos, os atores políticos extrapolam seus papéis.
Fixemos os olhos ao nosso redor. A par da bateria de denúncias que atingem os costados da administração federal, feitos de governantes municipais derrotados no último pleito têm chamado a atenção. Inconformados por não terem sido reeleitos ou pela derrota de seu candidato, os guerreiros da maldade espalhados pela Federação abrem um vasto arsenal de armas para atirar contra a população.
A vingança se dá por meio de um leque de atos pérfidos: suspensão de serviços básicos (saúde, transporte, limpeza pública, por exemplo), demissões irregulares de funcionários, calote na folha de pagamentos, nomeações de última hora, realização improvisada de concursos públicos, desprezo pela lei de responsabilidade fiscal etc. Em algumas localidades, a situação caótica ganhou intensidade com o fechamento de postos médicos, suspensão do transporte escolar e até dos serviços de abastecimento de água. Apesar da iniciativa saneadora do Ministério Público e dos Tribunais de Contas, prefeitos conseguem driblar medidas impostas como Termos de Ajustamento de Conduta (TAC), ações cautelares e preparatórias de ações civis públicas.
Quem não se lembra do folclórico ex-presidente da Câmara dos Deputados, Severino Cavalcanti, hoje prefeito de João Alfredo, em Pernambuco? Foi obrigado a se submeter a um TAC para regularizar o pagamento de servidores e restabelecer serviços públicos. E a prefeita de Fortaleza, hein? Luizianne Lins suspendeu o “Réveillon da Paz” por não sentir “legitimada para conduzir uma festa que transcorrerá em meio a uma mudança de gestão”. Que cara de pau.
O que explica a vingança contra o eleitorado? Reação ao exercício do voto consciente. Avançamos em matéria de cidadania ativa. Como se recorda, John Stuart Mill, em suas Considerações sobre o Governo Representativo, divide os cidadãos em ativos e passivos, arrematando que os primeiros fazem bem à democracia, enquanto os segundos são os preferidos dos governantes.
O eleitorado racional se expande, sendo esse um dos fatores a explicar o estreitamento de currais eleitorais. Alarga-se a participação do eleitor no processo político, cujos efeitos se fazem ver na renovação dos quadros municipais. Essa nova realidade explica a ação vingativa de prefeitos que receberam o cartão vermelho nas urnas.
O jus sperneandi dos derrotados é uma tentativa de puxar para a atualidade traços do ciclo coronelista que Victor Nunes Leal tão bem descreveu em Coronelismo, Enxada e Voto, cujo lema era: “para os amigos, pão; para os inimigos, pau.” Negar pão e água ao adversário e favorecer os amigos, máximas da República Velha, ainda inspiram a banda jurássica de nossa política.
O fato é que os avanços do presente, por mais que se multipliquem, não apagaram as marcas do passado. Nos mais diversos campos, da política aos costumes, o Brasil dual se faz ver por meio de uma banda asséptica ao lado de uma banda suja. De um lado, o cabo de guerra é puxado pelas forças da moral e da ética, sob a bandeira de valores republicanos como o compromisso, a prevalência da coletividade sobre a individualidade, a transparência, a verdade e a justiça; de outro, as forças do atraso se esforçam para ganhar a peleja, usando, para tanto, as armas da emboscada e as curvas dos desvios e ilícitos. Mas há motivos para comemorar.
O Supremo Tribunal Federal chega ao final de um julgamento que, há cinco meses, parecia algo inalcançável. Enxergamos as instituições, malgrado vaidades e querelas entre grupos, funcionarem a contento. Em um território afamado por impor barreiras quase intransponíveis ao acesso à justiça e onde se edificou gigantesco apartheid social, verificar que os poderosos também podem ingressar no xilindró constitui agradável sensação de que águas cristalinas voltam a banhar o corpo pátrio. Todos são iguais perante a lei. Essa é a luz que joga claridade sobre instituições e pessoas, pobres e ricos.
Não podemos perder de vista os enclaves do atraso, as teias de maracutaias, as máfias que se incrustam nas malhas da administração nas instâncias federativas. Urge eliminar os focos de corrupção que conectam a burocracia à esfera dos negócios privados. Holofotes devem ser abertos sobre quadros venais, alguns habitando os mais altos Tribunais, que agem sob suspeita camada de interesses escusos. É bem verdade que os mecanismos de investigação aguçam a percepção e aperfeiçoam as ferramentas de controle. Mas os donos do poder invisível multiplicam garras e escudos de proteção com inimaginável sofisticação. São trânsfugas morais. Sabem expressar o discurso da honestidade para confundir os incautos. Fazem da hipocrisia a arte de amordaçar a dignidade. Que o Natal ilumine a consciência de todos!
Nessa mesma linha, registra-se uma lapidar frase de John Adams, o segundo presidente dos Estados Unidos: “Todas as ciências progrediram, menos a de governar, que não avançou, sendo hoje exercida apenas um pouquinho melhor do que há quatro mil anos”. Concorde-se ou não com a moldura expressiva, o fato é que, aqui e alhures, multiplicam-se exemplos da devastação que governantes e políticos provocam nas mais diferentes roças da ‘rés pública’. Apesar dos avanços da democracia nos palcos contemporâneos, os atores políticos extrapolam seus papéis.
Fixemos os olhos ao nosso redor. A par da bateria de denúncias que atingem os costados da administração federal, feitos de governantes municipais derrotados no último pleito têm chamado a atenção. Inconformados por não terem sido reeleitos ou pela derrota de seu candidato, os guerreiros da maldade espalhados pela Federação abrem um vasto arsenal de armas para atirar contra a população.
A vingança se dá por meio de um leque de atos pérfidos: suspensão de serviços básicos (saúde, transporte, limpeza pública, por exemplo), demissões irregulares de funcionários, calote na folha de pagamentos, nomeações de última hora, realização improvisada de concursos públicos, desprezo pela lei de responsabilidade fiscal etc. Em algumas localidades, a situação caótica ganhou intensidade com o fechamento de postos médicos, suspensão do transporte escolar e até dos serviços de abastecimento de água. Apesar da iniciativa saneadora do Ministério Público e dos Tribunais de Contas, prefeitos conseguem driblar medidas impostas como Termos de Ajustamento de Conduta (TAC), ações cautelares e preparatórias de ações civis públicas.
Quem não se lembra do folclórico ex-presidente da Câmara dos Deputados, Severino Cavalcanti, hoje prefeito de João Alfredo, em Pernambuco? Foi obrigado a se submeter a um TAC para regularizar o pagamento de servidores e restabelecer serviços públicos. E a prefeita de Fortaleza, hein? Luizianne Lins suspendeu o “Réveillon da Paz” por não sentir “legitimada para conduzir uma festa que transcorrerá em meio a uma mudança de gestão”. Que cara de pau.
O que explica a vingança contra o eleitorado? Reação ao exercício do voto consciente. Avançamos em matéria de cidadania ativa. Como se recorda, John Stuart Mill, em suas Considerações sobre o Governo Representativo, divide os cidadãos em ativos e passivos, arrematando que os primeiros fazem bem à democracia, enquanto os segundos são os preferidos dos governantes.
O eleitorado racional se expande, sendo esse um dos fatores a explicar o estreitamento de currais eleitorais. Alarga-se a participação do eleitor no processo político, cujos efeitos se fazem ver na renovação dos quadros municipais. Essa nova realidade explica a ação vingativa de prefeitos que receberam o cartão vermelho nas urnas.
O jus sperneandi dos derrotados é uma tentativa de puxar para a atualidade traços do ciclo coronelista que Victor Nunes Leal tão bem descreveu em Coronelismo, Enxada e Voto, cujo lema era: “para os amigos, pão; para os inimigos, pau.” Negar pão e água ao adversário e favorecer os amigos, máximas da República Velha, ainda inspiram a banda jurássica de nossa política.
O fato é que os avanços do presente, por mais que se multipliquem, não apagaram as marcas do passado. Nos mais diversos campos, da política aos costumes, o Brasil dual se faz ver por meio de uma banda asséptica ao lado de uma banda suja. De um lado, o cabo de guerra é puxado pelas forças da moral e da ética, sob a bandeira de valores republicanos como o compromisso, a prevalência da coletividade sobre a individualidade, a transparência, a verdade e a justiça; de outro, as forças do atraso se esforçam para ganhar a peleja, usando, para tanto, as armas da emboscada e as curvas dos desvios e ilícitos. Mas há motivos para comemorar.
O Supremo Tribunal Federal chega ao final de um julgamento que, há cinco meses, parecia algo inalcançável. Enxergamos as instituições, malgrado vaidades e querelas entre grupos, funcionarem a contento. Em um território afamado por impor barreiras quase intransponíveis ao acesso à justiça e onde se edificou gigantesco apartheid social, verificar que os poderosos também podem ingressar no xilindró constitui agradável sensação de que águas cristalinas voltam a banhar o corpo pátrio. Todos são iguais perante a lei. Essa é a luz que joga claridade sobre instituições e pessoas, pobres e ricos.
Não podemos perder de vista os enclaves do atraso, as teias de maracutaias, as máfias que se incrustam nas malhas da administração nas instâncias federativas. Urge eliminar os focos de corrupção que conectam a burocracia à esfera dos negócios privados. Holofotes devem ser abertos sobre quadros venais, alguns habitando os mais altos Tribunais, que agem sob suspeita camada de interesses escusos. É bem verdade que os mecanismos de investigação aguçam a percepção e aperfeiçoam as ferramentas de controle. Mas os donos do poder invisível multiplicam garras e escudos de proteção com inimaginável sofisticação. São trânsfugas morais. Sabem expressar o discurso da honestidade para confundir os incautos. Fazem da hipocrisia a arte de amordaçar a dignidade. Que o Natal ilumine a consciência de todos!
-----------------
* Colunista do Correio Popular
Fonte: http://correio.rac.com.br/_conteudo/2012/12/colunistas/torquato/19850-os-guerreiros-da-maldade.html
Imagem da Internet
2013 e um passo atrás
CECÍLIO ELIAS NETTO*
Não haverá quem possa me chamar de pessimista. Nem de otimista. Carrego,
dentro de mim, algo que me parece da sabedoria de Gramsci: esperança no
coração, ceticismo na razão. Isso me leva a acreditar, cada vez mais,
no eterno retorno. Que não é retrocesso, mas retomada do que foi
perdido. Não há outra saída quando se está diante da derrocada e da
decadência: retornar ao princípio esquecido. Ou propositalmente
escondido.
Já há alguns anos, não costumo mais desejar — nem a filhos, amigos, irmãos — felicidade e paz para cada ano que surge. Apenas lhes digo que cada um tenha aquilo que merece. Desejo-o, também, a mim mesmo. Se mal semeei, mal colherei. Se bem espalhei, bem receberei. Para a vida, também vale a terceira lei de Newton, da ação e reação: “Toda ação provoca uma reação igual mas em sentido contrário.” Isso, com sabedoria espiritual — que é a mais verdadeira — já havia sido entendido por Francisco de Assis: “É dando que se recebe.” E, finalmente, sabido e conhecido do e pelo povo: “Quem semeia ventos colhe tempestades.”
No Renascimento — um dos mais belos momentos da humanidade — houve a consciência de o único caminho de renovação radical da vida pessoal e social do ser humano estar no retorno aos princípios. E estes, na realidade, nada mais são do que raízes. Observemos as árvores: com raízes fortemente fincadas no chão, elas resistem a todos os temporais. Vergam, mas não caem. Raízes frágeis, porém, a nada sustentam, como se apenas servissem para revelar a superfície, a epiderme — que podem ser até belas, mas frágeis.
Neste final de ano, não quero desejar a ninguém nem mesmo que cada qual tenha o que merece. Pois tenho medo de estar desejando o pior. Pois, se refletirmos com seriedade e honesta convicção, concluiremos que nada nos irá esperar senão a mesma perplexidade, as mesmas angústias, medos e inseguranças vividos até aqui. Estamos vivendo para quê, por quê? Esse estouro da manada humana tem-nos levado a quais satisfações realmente dignas do dom da vida? É uma guerra para sobreviver e não a luta decente pelo direito de viver. Viver é participar do concerto universal, com seus ritmos, plenitudes, deslumbramentos, descobertas, sustos, alegrias, dores e conhecimento. Viver é ser. Ter é, apenas, parte disso.
No século 19, um dos mais brilhantes estadistas do mundo — o primeiro ministro Benjamin Disraeli — deixou-nos um pensamento-síntese: “A vida é muito curta para ser pequena.” Reduzir a vida a esse consumismo desenfreado, a apegos desvairados a bens materiais — muitos deles quase sempre inúteis — é não ter consciência da finitude de nós mesmos. E, portanto, apequenar a bem-aventurança de viver. Cabe, pois, a cada um descobrir, por si mesmo, qual sentido tem dado ao milagre da vida.
Neste início de século, tem prevalecido a razão científica, o poder da ciência. Ela se dedica — e de maneira verdadeiramente espetacular — aos “comos” da vida: como isso funciona, como aquilo começou, como se pode fazer? Mas há outros caminhos: o das artes, da filosofia, da religião. Estes são ainda mais instigantes, mais inquietantes, pois buscam os “porquês”. Ora, convenhamos: vivemos um tempo de conhecer muitos “comos” e de não mais nos preocuparmos com os “porquês”. E são estes que dão o verdadeiro sentido da vida: a reflexão, a espiritualidade, a verdadeira dimensão humana, os princípios humanísticos de convivência, fraternidade, agradecimento, compaixão.
Há um símbolo que me acompanha permanentemente e sobre o qual sempre reflito: a encruzilhada. É um espaço ao mesmo tempo misterioso, decisivo e de perigos. Numa encruzilhada, o homem fica em sua mais completa solidão. Para onde ir: em frente, à direita, à esquerda, retornar? É um cruzamento de caminhos que exige, do caminhante, a reflexão e, em seguida, a capacidade de decidir. De sua escolha, dependerá o destino a que chegará.
Nas admiráveis conquistas do mundo atual, as transformações deixam poeira e ruínas. Estamos numa transição que, na realidade, é uma encruzilhada. Os “comos” da vida, já os estamos conhecendo e realizando. Os “porquês”, no entanto, são cada vez mais angustiantes. Nessa encruzilhada, eu me nego a ir para frente. E me recuso a escapar por atalhos, à direita ou à esquerda. Sinto, dentro de mim, a necessidade imperiosa e imperativa de dar um passo atrás, de fazer um retorno. Em busca, pelo menos, da lembrança de render graças pela explosão de belezas da vida. Nesse retorno, sou esperançoso de reencontrar a humanização esquecida. Com um passo atrás, sei que 2013 será antecipadamente visto e esperado com outros olhos. Os da alegria. Por que não tentar?
Já há alguns anos, não costumo mais desejar — nem a filhos, amigos, irmãos — felicidade e paz para cada ano que surge. Apenas lhes digo que cada um tenha aquilo que merece. Desejo-o, também, a mim mesmo. Se mal semeei, mal colherei. Se bem espalhei, bem receberei. Para a vida, também vale a terceira lei de Newton, da ação e reação: “Toda ação provoca uma reação igual mas em sentido contrário.” Isso, com sabedoria espiritual — que é a mais verdadeira — já havia sido entendido por Francisco de Assis: “É dando que se recebe.” E, finalmente, sabido e conhecido do e pelo povo: “Quem semeia ventos colhe tempestades.”
No Renascimento — um dos mais belos momentos da humanidade — houve a consciência de o único caminho de renovação radical da vida pessoal e social do ser humano estar no retorno aos princípios. E estes, na realidade, nada mais são do que raízes. Observemos as árvores: com raízes fortemente fincadas no chão, elas resistem a todos os temporais. Vergam, mas não caem. Raízes frágeis, porém, a nada sustentam, como se apenas servissem para revelar a superfície, a epiderme — que podem ser até belas, mas frágeis.
Neste final de ano, não quero desejar a ninguém nem mesmo que cada qual tenha o que merece. Pois tenho medo de estar desejando o pior. Pois, se refletirmos com seriedade e honesta convicção, concluiremos que nada nos irá esperar senão a mesma perplexidade, as mesmas angústias, medos e inseguranças vividos até aqui. Estamos vivendo para quê, por quê? Esse estouro da manada humana tem-nos levado a quais satisfações realmente dignas do dom da vida? É uma guerra para sobreviver e não a luta decente pelo direito de viver. Viver é participar do concerto universal, com seus ritmos, plenitudes, deslumbramentos, descobertas, sustos, alegrias, dores e conhecimento. Viver é ser. Ter é, apenas, parte disso.
No século 19, um dos mais brilhantes estadistas do mundo — o primeiro ministro Benjamin Disraeli — deixou-nos um pensamento-síntese: “A vida é muito curta para ser pequena.” Reduzir a vida a esse consumismo desenfreado, a apegos desvairados a bens materiais — muitos deles quase sempre inúteis — é não ter consciência da finitude de nós mesmos. E, portanto, apequenar a bem-aventurança de viver. Cabe, pois, a cada um descobrir, por si mesmo, qual sentido tem dado ao milagre da vida.
Neste início de século, tem prevalecido a razão científica, o poder da ciência. Ela se dedica — e de maneira verdadeiramente espetacular — aos “comos” da vida: como isso funciona, como aquilo começou, como se pode fazer? Mas há outros caminhos: o das artes, da filosofia, da religião. Estes são ainda mais instigantes, mais inquietantes, pois buscam os “porquês”. Ora, convenhamos: vivemos um tempo de conhecer muitos “comos” e de não mais nos preocuparmos com os “porquês”. E são estes que dão o verdadeiro sentido da vida: a reflexão, a espiritualidade, a verdadeira dimensão humana, os princípios humanísticos de convivência, fraternidade, agradecimento, compaixão.
Há um símbolo que me acompanha permanentemente e sobre o qual sempre reflito: a encruzilhada. É um espaço ao mesmo tempo misterioso, decisivo e de perigos. Numa encruzilhada, o homem fica em sua mais completa solidão. Para onde ir: em frente, à direita, à esquerda, retornar? É um cruzamento de caminhos que exige, do caminhante, a reflexão e, em seguida, a capacidade de decidir. De sua escolha, dependerá o destino a que chegará.
Nas admiráveis conquistas do mundo atual, as transformações deixam poeira e ruínas. Estamos numa transição que, na realidade, é uma encruzilhada. Os “comos” da vida, já os estamos conhecendo e realizando. Os “porquês”, no entanto, são cada vez mais angustiantes. Nessa encruzilhada, eu me nego a ir para frente. E me recuso a escapar por atalhos, à direita ou à esquerda. Sinto, dentro de mim, a necessidade imperiosa e imperativa de dar um passo atrás, de fazer um retorno. Em busca, pelo menos, da lembrança de render graças pela explosão de belezas da vida. Nesse retorno, sou esperançoso de reencontrar a humanização esquecida. Com um passo atrás, sei que 2013 será antecipadamente visto e esperado com outros olhos. Os da alegria. Por que não tentar?
--------------
* Colunista do Correio Popular
Fonte: http://correio.rac.com.br/_conteudo/2012/12/colunistas/cecilio/
Imagem da Internet
À TVCOM, Tarso diz que no mensalão o PT repetiu retóricas políticas tradicionais
Na entrevista ao Conversas Cruzadas, Tarso (foto tirada em 6/12, em Frederico Westphalen)
criticou o ministro Joaquim Barbosa
Foto:
Ricardo Duarte / Agencia RBS
Governador do Rio Grande do Sul afirma que o partido precisa tirar "serveras lições" da Ação Penal 470
Em entrevista ao programa Conversas Cruzadas, da TVCOM, o governador Tarso Genro afirmou, na noite de quinta-feira, que o julgamento do mensalão
deve servir para motivar uma reflexão e uma reestruturação do seu
partido, o PT. Tarso também admitiu que a pressão da mídia aos políticos
faz parte do processo democrático e criticou a atuação do relator da Ação Penal 470 no Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Joaquim Barbosa.
A cobertura da mídia
"A mídia faz uma pressão política e um debate político sobre todos os
fatos: a Ação Penal 470 e outros fatos também. Isso faz parte do jogo
democrático, assim como o próprio PT responder a essa utilização política da ação penal. É natural num processo democrático."
As lições que ficam para o PT
"Em relação aos fatos que geraram a Ação Penal 470, o PT tem de fazer
uma profunda reflexão e tem de aproveitar essas lições.
Independentemente de as pessoas terem sido condenadas ou não, os fatos
que ocorreram naquele período repetiram retóricas políticas tradicionais
do país, que o PT não deveria ter repetido: um processo de composição
de maioria no Congresso Nacional que, no mínimo, não correspondia a uma
aliança programática. Isso, para nós, basta para fazer uma reflexão. Se
daí derivaram delitos — por exemplo, o Delúbio [Soares]
é confesso. Ele disse: 'olha, eu fiz caixa dois', e do caixa dois
decorrem outros delitos —, aí já é uma questão que tem de ser tratada no
âmbito do Poder Judiciário e do debate jurídico. Agora, do ponto de
vista político, nós temos de tirar severas lições. Eu sou autor de uma
tese dentro do partido que diz que nós temos de fazer uma reflexão e
reestruturar, renovar o nosso projeto partidário."
A atuação de Joaquim Barbosa
"Eu acho que o ministro Joaquim Barbosa passou da sua condição de
ministro, julgando juridicamente um caso. Ele se transformou numa
espécie de estrela política do debate, tanto que já foi colocado agora
como candidato a presidente nas pesquisas que estão sendo feitas. Aí tu
me perguntas se isso é antidemocrático ou perverso. Não. [Mas] é errado, do ponto de vista das funções que tem o Supremo."
Os efeitos do julgamento do mensalão
"A Ação Penal 470 tem um grande bem, que é o seguinte: é possível
levar a juízo pessoas de alto escalão de qualquer governo. Tomara que
continuem agora em relação ao PSDB. Mas também tem um
efeito negativo: esse processo cria a ilusão de que nós podemos resolver
drasticamente a corrupção no país sem fazer uma reforma política, como
se as soluções fossem só pelo Poder Judiciário, que se transformou,
nesse julgamento, num órgão político. Então, nós temos de tirar lições
desse evento para os dois lados: para a democracia brasileira e para o
nosso próprio partido."
-------------
Fonte: http://zerohora.clicrbs.com.br/rs/politica/noticia/2012/12/
O que você deseja?
IVAN MARTINS*
Uma pergunta difícil antes que 2013 comece
Adoro finais de ano. Presentes, planos, festas, tudo me cai bem. Mesmo a
correria e as aglomerações que incomodam tanta gente, a mim agradam.
Fico com a sensação de estar vivendo um período extraordinário. É como
se o ano todo se condensasse em meia dúzia de dias, carregados de
urgência e de expectativa. Uma parte de mim volta a viver sentimentos de
criança. Talvez seja isso, na verdade, que explique o meu
contentamento: ele deve ser uma manifestação secreta de nostalgia.
Ao lado desse sentimento familiar, tem aparecido, nos últimos finais de
ano, uma sensação inteiramente nova – a de que é preciso fazer planos.
Com a corrida final para o Ano Novo, começo a ser invadido pelo
sentimento de que é imperativo, de alguma forma, planejar o ano
seguinte, mesmo que seja em linhas gerais. Uma pergunta complexa – o que
eu quero para mim? – se esgueira sob a porta nesses dias e se instala
no meio da minha sala. Exige que eu lide com ela.
Até recentemente eu não sentia isso. Sempre tive a sensação de que a
vida era um grande improviso e que planejar era uma forma de trapaça.
Não gostava, e ainda tendo a não gostar, de artificialidades, e o
planejamento me parecia uma delas. Meu lema no amor e na vida era que as
coisas tinham de acontecer com naturalidade. Olhava com uma ponta de
desdém para as pessoas minuciosas que se obstinavam em arquitetar a
conquista de coisas, posições e pessoas. Sentia que elas não tinham
entendido a essência espontânea da vida, que eu já captara.
Como eu disse, essa sensação mudou.
Embora eu continue acreditando que as coisas que nos dizem respeito acontecem com naturalidade – não por uma questão de destino, mas sim por afinidade e talento – fui obrigado a admitir que a vida às vezes requer um empurrãozinho. Mesmo as coisas que nos cabem requerem esforço e planejamento.
Embora eu continue acreditando que as coisas que nos dizem respeito acontecem com naturalidade – não por uma questão de destino, mas sim por afinidade e talento – fui obrigado a admitir que a vida às vezes requer um empurrãozinho. Mesmo as coisas que nos cabem requerem esforço e planejamento.
Antes de fazer planos, porém, é preciso responder àquela pergunta
difícil: o que eu desejo para mim? Quando a gente tem 20 anos não sente
que precisa respondê-la. Há tanta coisa acontecendo, são tantas as
novidades que escolher parece quase uma estupidez. A gente quer tudo e
pronto. Aos 40 anos não é mais assim. Aos 50, escolher torna-se
inevitável, mas, ainda então, muitos não conseguiram responder à
pergunta essencial: o que eu desejo para mim?
Outro dia eu fui ver um show de fado, o primeiro da minha vida. A
cantora era uma jovem portuguesa chamada Carminho. Ela era linda,
cantava com tamanha intensidade, eu me emocionei como não acontecia há
muito tempo. Fiquei lá, sentado no escuro, cheio de sentimentos
exaltados, enquanto ela falava de saudades, lágrimas, amor. Saí do
espetáculo amolecido e feliz. Por alguns momentos, enquanto eu guiava de
volta para casa, tive a sensação de que quase tudo estava em seu lugar –
e que eu sabia, perfeitamente, o que era necessário mudar, e como
fazê-lo.
Com essa historieta pessoal, tento dizer que as emoções fazem parte do nosso processo de escolha. Descobrir o que fazer da vida, ou o que se deseja dela, não é o mesmo que resolver um problema matemático. Precisamos da luz dos nossos sentimentos para nos guiar. Vendo e ouvindo a cantora de fado eu consegui, por momentos fugazes, mas essenciais, refazer a ligação com o adolescente que eu era. Ele decidiu quem o homem adulto seria. Essa trilha de emoção que voltou para trás é a mesma que levará para frente. No meu caso, uma trilha essencial de identidade que tem a ver com personalidade, família, geração, classe, bairro... Para descobrir o que eu desejo, foi preciso me lembrar do que eu queria quando tudo começou. A cantora de fado me pôs no caminho.
Quando 2013 começar, portanto, pretendo estar pronto, ou quase. Com alguns planos, pelo menos. Sabendo mais ou menos em que direção eu quero ir. Feliz pela possibilidade de começar de novo. Contente com o fato de que o caminho à frente responde aos anseios do garoto que eu já fui. Disposto a fazer força e empurrar para que as coisas aconteçam. Sabendo que não é mais possível fazer tudo. Tendo a certeza, sobretudo, de que não adianta ficar parado, esperando. A vida não nos espera.
Com essa historieta pessoal, tento dizer que as emoções fazem parte do nosso processo de escolha. Descobrir o que fazer da vida, ou o que se deseja dela, não é o mesmo que resolver um problema matemático. Precisamos da luz dos nossos sentimentos para nos guiar. Vendo e ouvindo a cantora de fado eu consegui, por momentos fugazes, mas essenciais, refazer a ligação com o adolescente que eu era. Ele decidiu quem o homem adulto seria. Essa trilha de emoção que voltou para trás é a mesma que levará para frente. No meu caso, uma trilha essencial de identidade que tem a ver com personalidade, família, geração, classe, bairro... Para descobrir o que eu desejo, foi preciso me lembrar do que eu queria quando tudo começou. A cantora de fado me pôs no caminho.
Quando 2013 começar, portanto, pretendo estar pronto, ou quase. Com alguns planos, pelo menos. Sabendo mais ou menos em que direção eu quero ir. Feliz pela possibilidade de começar de novo. Contente com o fato de que o caminho à frente responde aos anseios do garoto que eu já fui. Disposto a fazer força e empurrar para que as coisas aconteçam. Sabendo que não é mais possível fazer tudo. Tendo a certeza, sobretudo, de que não adianta ficar parado, esperando. A vida não nos espera.
--------------------
* IVAN MARTINS É editor-executivo de ÉPOCA (Foto: ÉPOCA)
Fonte: http://revistaepoca.globo.com/Sociedade/ivan-martins/noticia/2012/12/o-que-voce-deseja.html
Imagem da Internet
Nosso lugar no conjunto dos seres
Leonardo Boff*
A ética da sociedade dominante no mundo é utilitarista e
antropocêntrica. Quer dizer: falsamente considera que o conjunto dos
seres da natureza somente possui razão de existir na medida em que serve
ao ser humano e que pode dispor deles a seu bel-prazer.
Continua acreditando que o ser humano, homem e mulher é o centro do universo e rei e rainha da criação.
Mal sabe que, nós humanos, fomos um dos últimos seres a entrar no
teatro da criação. Quando 99,98% de tudo já estava pronto, surgimos nós.
O universo, a Terra e os ecossistemas não precisaram de nós para se
organizarem e ordenarem sua majestática elegância e beleza.
Cada ser possui valor intrínseco, independente do uso que fazemos
dele. Ele representa uma emergência daquela Energia de fundo, como falam
os cosmólogos, ou daquele Abismo gerador de todos os seres. Tem algo a
revelar que só ele o pode fazer. E nós a escutar e a celebrar o que nos
disser.
Nós entramos no processo da evolução quando esta alcançou um patamar
altíssimo de complexidade. Então irrompeu a vida e como subcapítulo da
vida, a vida humana, consciente e livre. Por nós o universo chegou à
consciência de si mesmo. E isso ocorreu numa minúscula parte do universo
que é a Terra. Por isso nós somos aquela porção da Terra que sente,
ama, pensa, cuida e venera. Somos Terra que anda, como diz o poeta e
cantador indígena argentino Atauhalpa Yupanqui.
A nossa missão específica, nosso lugar no conjunto dos seres, é o de
sermos aqueles que podem ver a grandeur do universo, escutar as
mensagens que cada ser enuncia e celebrar a diversidade dos seres e da
vida.
E porque somos portadores de sensibilidade e de inteligência temos
uma missão ética: de cuidar da criação e sermos os guardiães dela para
que continue com vitalidade e integridade e com as condições de ainda
evoluir já que está evoluindo há 4,4 bilhões de anos.
Cumpre, portanto, reconhecer e respeitar a história de cada ser da
criação, vivo ou inerte. Existiram antes de nós e por milhões e milhões
de anos sem nós. Por esta razão devem ser respeitados como respeitamos
as pessoas mais idosas e as tratamos com respeito e amor. Eles também
tem direito ao presente e ao futuro junto conosco.
----------------------------
* Teólogo. Escritor. Ecologista.
Fonte: http://leonardoboff.wordpress.com/2012/12/28/nosso-lugar-no-conjunto-dos-seres/
Imagem da Internet
Crédito à cama
Nós nunca somos tão virtuosos como quando estamos doentes. Algum homem doente já foi tentado pela cobiça ou luxúria? Ele não é um escravo de suas paixões nem de suas ambições com a profissão; ele não se importa com a riqueza e se contenta com o pouco que tem, sabendo ainda que pode perdê-lo. É, então, que ele se lembra dos deuses e percebe que é mortal: ele não sente nenhuma inveja, admiração, nem desprezo de qualquer homem: nem mesmo uma conversa insultuosa pode prender a sua atenção ou dar-lhe estímulo para o pensamento, e seus sonhos são todos de banhos e primaveras amenas. Estes são sua única preocupação, o objeto de todas as suas orações, enquanto ele resolve que, se tiver a sorte de se recuperar, vai levar uma vida sóbria e simples no futuro, isto é, uma vida de inocência feliz.
Então, aqui para a nossa orientação, é a regra aquilo que os filósofos buscam expressar em palavras e textos intermináveis: na saúde, devemos continuar a ser os homens que prometemos nos tornar quando a doença levou as nossas palavras.
--------
Fonte: http://airblog-pg.blogspot.fr/
Cioran: aforismos sobre a Negação
E.M. Cioran*
O único argumento contra a imortalidade é o tédio. Daí procedem, de fato, todas as nossas negações. (Lacrimi şi Sfinţi)
§
Certos seres sentem uma inclinação para o crime apenas para saborear uma vida intensificada, de modo que a negação patológica da vida seja ao mesmo tempo sua homenagem. (Amurgul Gândurilor)
§
A vida, em seu aspecto positivo, é uma
categoria do possível, uma queda no futuro. Quanto mais abrimos portas
para este último, mais possível realizamos. O desespero, pelo contrário,
é a negação do possível, e, portanto, da vida. Mais do que isso: ele é a
intensidade absoluta perpendicular ao Nada. Uma coisa é positiva se
tiver uma relação interna ao futuro, se ela tender a ele. A vida se
realiza plenamente ganhando plenitude temporal. Na medida em
que o desespero se amplifica a si mesmo, sua intensidade é um possível
sem futuro, uma negatividade, um impasse em chamas. Mas, desde que se
abra uma janela para o desespero, então a vida – invadida por ela
mesma – parece uma graça desacorrentada, um turbilhão de sorrisos. (Amurgul Gândurilor)
§
O homem idealmente lúcido,
logo idealmente normal, não deve ter nenhum recurso além do nada que
está nele… Parece que o ouço: “Livre do fim, de todos os fins, de meus
desejos e de minhas amarguras só conservo as fórmulas. Tendo resistido à
tentação de concluir, venci o espírito, como venci a vida pelo horror, a
buscar-lhe uma solução.” O espetáculo do homem – que vomitivo! O amor –
um encontro de duas salivas… Todos os sentimentos extraem seu absoluto
da miséria das glândulas. Não há nobreza senão na negação da existência,
em um sorriso que domina paisagens aniquiladas. (“O Anti-Profeta”, in: Breviário de decomposição)
§
O ser entregue a si mesmo, sem nenhum preconceito de elegância, é um
monstro; só encontra em si zonas obscuras, onde rondam, iminentes, o
terror e a negação. Saber, com toda sua vitalidade, que se morre e não
poder ocultá-lo, é um ato de barbárie. Toda filosofia sincera renega os
títulos da civilização, cuja função consiste em velar nossos segredos e
disfarçá-los com efeitos rebuscados. Assim, a frivolidade é o antídoto
mais eficaz contra o mal de ser o que se é: graças a ela iludimos o
mundo e dissimulamos a inconveniência de nossas profundidades. Sem seus
artifícios, como não envergonhar-se por ter uma alma? Nossas solidões à
flor da pele, que inferno para os outros! Mas é sempre para eles, e às
vezes para nós mesmos, que inventamos nossas aparências… (“Civilização e
frivolidade”, in: Breviário de decomposição)
§
Quem não conhece o tédio encontra-se ainda na infância do mundo,
quando as idades esperavam para nascer; permanece fechado para este
tempo fatigado, que se sobrevive, que ri de suas dimensões e sucumbe no
limiar de seu próprio… porvir, arrastando com ele a matéria, subitamente
elevada a um lirismo de negação. O tédio é o eco em nós do tempo
que se dilacera… a revelação do vazio, o esgotamento desse delírio que
sustenta – ou inventa – a vida… (“Desarticulação do tempo”, in: Breviário de decomposição)
§
Também nós buscamos a “felicidade”, seja por frenesi, seja por
desdém: desprezá-la é ainda não esquecê-la, e repudiá-la pensando nela;
também nós buscamos a “salvação”, ainda que seja não a desejando. E se
somos os heróis negativos de uma Idade demasiado madura, por isso mesmo
somos seus contemporâneos: trair seu tempo ou ser fanático por
ele, exprime – sob uma contradição aparente – um mesmo ato de
participação. Os altos desfalecimentos, as sutis decrepitudes, a
aspiração a auréolas intemporais – tudo isso conduzindo à sabedoria –,
quem não os reconhece em si mesmo? Quem não sente o direito de
afirmar-se no vazio que o rodeia, antes que o mundo se desvaneça na
aurora de um absoluto ou de uma negação nova? Um deus ameaça sempre no
horizonte. Estamos à margem da filosofia, uma vez que consentimos em seu
ocaso. Façamos que o deus não se instale em nossos pensamentos,
guardemos ainda nossas dúvidas, as aparências de equilíbrio e a tentação
do destino imanente, pois qualquer aspiração arbitrária e fantástica é
preferível às verdades inflexíveis. Mudamos de remédios, ao não
encontrar nenhum eficaz nem válido, porque não temos fé nem no
apaziguamento que buscamos nem nos prazeres que perseguimos. Sábios
versáteis, somos os epicuristas e os estóicos das Romas modernas…
(“Pensadores crepusculares”, in: Breviário de decomposição)
§
Há uma vulgaridade que nos
faz admitir qualquer coisa deste mundo, mas que não é poderosa para nos
fazer admitir o mundo mesmo. Assim, podemos suportar os males da vida
repudiando a Vida, deixar-nos arrastar pelas efusões do desejo
rejeitando o Desejo. No assentimento à existência existe uma espécie de
baixeza, à qual escapamos graças a nossos orgulhos e a nossos pesares,
mas sobretudo graças à melancolia que nos preserva de um deslize para
uma afirmação final, arrancada de nossa covardia. Há coisa mais vil do
que dizer sim ao mundo? E, no entanto, multiplicamos sem cessar
esse consentimento, essa trivial repetição, esse juramento de fidelidade
à vida, negado somente por tudo o que em nós recusa a vulgaridade.
Podemos viver como os outros vivem e no entanto esconder um não maior que o mundo: é o infinito da melancolia…
(Só se pode amar os seres que não ultrapassam o mínimo de vulgaridade indispensável para viver. Contudo, seria difícil delimitar a quantidade desta vulgaridade, ainda mais por que nenhum ato poderia eximir-se dela. Todos os proscritos da vida provam que foram suficientemente sórdidos… Quem triunfa em um conflito com seu próximo surge de um muladar; e quem é vencido paga por uma pureza que não quis sujar. Em todo homem, nada é mais existente e verídico que sua própria vulgaridade, fonte de tudo o que é elementarmente vivo. Mas, por outro lado, quanto mais estabelecido se está na vida, mais desprezível se é. Quem não espalha à sua volta uma vaga irradiação fúnebre, e não deixa ao passar um rastro de melancolia vindo de mundos longínquos, esse pertence à subzoologia e, mais especificamente, à história humana.
A oposição entre a vulgaridade e a melancolia é tão irredutível que, comparada a ela, todas as outras parecem invenções do espírito, arbitrárias e ridículas; mesmo as mais categóricas antinomias embotam-se ante esta oposição em que se afrontam- seguindo uma dosagem predestinada – nossos bas-fonds e nosso fel pensativo.) (“Dualidade”, in: Breviário de decomposição)
Podemos viver como os outros vivem e no entanto esconder um não maior que o mundo: é o infinito da melancolia…
(Só se pode amar os seres que não ultrapassam o mínimo de vulgaridade indispensável para viver. Contudo, seria difícil delimitar a quantidade desta vulgaridade, ainda mais por que nenhum ato poderia eximir-se dela. Todos os proscritos da vida provam que foram suficientemente sórdidos… Quem triunfa em um conflito com seu próximo surge de um muladar; e quem é vencido paga por uma pureza que não quis sujar. Em todo homem, nada é mais existente e verídico que sua própria vulgaridade, fonte de tudo o que é elementarmente vivo. Mas, por outro lado, quanto mais estabelecido se está na vida, mais desprezível se é. Quem não espalha à sua volta uma vaga irradiação fúnebre, e não deixa ao passar um rastro de melancolia vindo de mundos longínquos, esse pertence à subzoologia e, mais especificamente, à história humana.
A oposição entre a vulgaridade e a melancolia é tão irredutível que, comparada a ela, todas as outras parecem invenções do espírito, arbitrárias e ridículas; mesmo as mais categóricas antinomias embotam-se ante esta oposição em que se afrontam- seguindo uma dosagem predestinada – nossos bas-fonds e nosso fel pensativo.) (“Dualidade”, in: Breviário de decomposição)
§
Cada desejo humilha a soma de
nossas verdades e obriga-nos a reconsiderar nossas negações. Sofremos
uma derrota na prática; no entanto, nossos princípios permanecem
inalteráveis… Esperávamos não ser mais filhos deste mundo e eis-nos aqui
submetidos aos apetites como ascetas equívocos, donos do tempo e
escravos das glândulas. Mas este jogo não tem limites: cada um de nossos
desejos recria o mundo e cada um de nossos pensamentos o aniquila…
Na vida de todos os dias alternam-se a cosmogonia e o apocalipse: criadores e demolidores cotidianos, praticamos a uma escala infinitesimal os mitos eternos; e cada um de nossos instantes reproduz e prefigura o destino de sêmen e de cinza reservado ao Infinito. (“Cosmogonia do desejo”, in: Breviário de decomposição)
Na vida de todos os dias alternam-se a cosmogonia e o apocalipse: criadores e demolidores cotidianos, praticamos a uma escala infinitesimal os mitos eternos; e cada um de nossos instantes reproduz e prefigura o destino de sêmen e de cinza reservado ao Infinito. (“Cosmogonia do desejo”, in: Breviário de decomposição)
§
Ninguém executaria o ato mais ínfimo sem o sentimento de que esse ato
é a única e exclusiva realidade. Esta cegueira é o fundamento absoluto,
o princípio indiscutível de tudo o que existe. Aquele que o discute prova somente que existe menos,
que a dúvida minou seu vigor… Mas, mesmo no meio de suas dúvidas, é
obrigado a sentir a importância de sua tendência para a negação. Saber
que nada vale a pena torna-se implicitamente uma crença, logo uma possibilidade de ato;
é que mesmo uma gota de existência pressupõe uma fé inconfessada; um
simples passo – ainda que fosse apenas na direção de uma aparência de
realidade – é uma apostasia comparado ao nada; a própria respiração
procede de um fanatismo em germe, como toda participação no movimento…
Desde sair para dar uma volta até o massacre, o homem só percorre a gama dos atos porque não percebe seu sem-sentido: tudo o que se faz sobre a terra emana de uma ilusão de plenitude no vazio, de um mistério do Nada…
Fora da criação e da Destruição do mundo, todas as empresas são igualmente nulas. (“Interpretação dos atos”: Breviário de decomposição)
Desde sair para dar uma volta até o massacre, o homem só percorre a gama dos atos porque não percebe seu sem-sentido: tudo o que se faz sobre a terra emana de uma ilusão de plenitude no vazio, de um mistério do Nada…
Fora da criação e da Destruição do mundo, todas as empresas são igualmente nulas. (“Interpretação dos atos”: Breviário de decomposição)
§
Com um pouco mais de ardor no niilismo, me seria possível — negando
tudo — sacudir minhas dúvidas e triunfar sobre elas. Mas só tenho o
gosto da negação, não seu dom. (Silogismos da amargura)
§
Não importa o que eu tente, será sempre apenas a manifestação de um
declínio, patente ou camuflado. Durante muito tempo fiz a teoria do
homem-fora-de-tudo. Este homem é o que me tornei, o que agora encarno.
Minhas dúvidas deram em algo, minhas negações tomaram corpo. Vivo o que
antes acreditava viver. Encontrei-me, enfim, um discípulo. (Le mauvais demiurge)
§
Minhas dúvidas não levaram a melhor sobre meus automatismos. Continuo
a fazer gestos aos quais me é impossível aderir. Superar o drama desta
insinceridade, isto seria me renegar e me anular. (Le mauvais demiurge)
§
A negação não parte nunca de um raciocínio, mas de um não-sei-que
obscuro e antigo. Os argumentos vêm depois, para justificá-la e
apoiá-la. Todo não surge do sangue. (De l’inconvenient d’être né)
§
A negação soluçante: única forma tolerável de negação. (De l’inconvenient d’être né)
§
Mal havia eu terminado uma série de reflexões um tanto lúgubres, fui
tomado por esse amor mórbido pela vida, punição ou recompensa daqueles
que estão condenados à negação. (Écartèlement)
§
Subitamente, necessidade de demonstrar agradecimento, não só aos
seres mas também aos objetos, a uma pedra porque é pedra… Tudo parece
então animar-se como se fosse para a eternidade. De golpe, inexistir
parece inconcebível. Que estes calafrios se produzam, que possam produzir-se, mostra que a última palavra talvez não esteja na Negação. (Écartèlement)
§
O que sempre me seduziu na negação é o dom de tomar o lugar de tudo e
de todos, de ser uma espécie de demiurgo, de dispor do mundo como se
tivesse colaborado na sua aparição e depois tivesse o direito, e mesmo o
dever, de precipitar a sua queda. A destruição, conseqüência imediata
do espírito de negação, corresponde a um instinto profundo, a um tipo de
inveja que cada um certamente sente no fundo de si mesmo com relação ao
primeiro dos seres, à sua posição e à idéia que representa e
simboliza.Embora frequentasse os místicos, no meu foro íntimo estive
sempre do lado do Demônio: não podendo me igualar a ele pela força,
tentei ser equivalente ao menos pela insolência, pela aspereza, pelo
arbitrário e pelo capricho (Exercícios de Admiração).
Tradução do francês: Rodrigo Menezes
---------------
* Filósofo romeno/francês (1911-1995).
Fonte: http://emcioranbr.wordpress.com/bio/
Assinar:
Postagens (Atom)