Roberto DaMatta*
A reta, como diria o Oscar Niemeyer, é o real. Mas o
ideal é a curva, o arredondado sedutor da montanha onde morre o Sol; ou o
suave declive da fonte que jorra por entre as suas frestas e mata a
nossa infindável sede como viram, cada qual a seu tempo e à sua maneira,
Ary Barroso e Schopenhauer.
Platão, inventor da oposição entre real e ideal, afirma que como tudo
neste mundo está sempre se fazendo, as coisas reais não conferem nenhum
conhecimento definitivo, pois são relativas e variáveis. Sujeitas, como
revela sem cessar o nosso frustrante dia a dia, a redefinições. O ideal
é único porque as ideias não morrem. O resto, como disseram Shakespeare
e Erico Verissimo, é silêncio...
Estou, como o mundo inteiro, chocado com esse novo massacre ocorrido
em Newtown, Estados Unidos. Penso nos pais forçados por um louco a
entrar nesse triste clube ao qual eu, infelizmente, pertenço: a
sociedade dos que perderam filhos. Empresto a todos eles a minha humilde
solidariedade. Aprendi como as palavras, que deixam ver, por um
instante, o todo no qual vivemos como inocentes, são importantes nesses
momentos.
Estive no Estado de Connecticut umas duas ou três vezes e fiz
palestras na sua universidade, no famoso Connecticut College (fundado em
1911 quando o Brasil fazia, como as máquinas, múltiplas revoluções) e
na sua admirável Universidade Yale (fundada em 1701 quando, para muitos,
o Brasil ainda não era Brasil), onde jaz um pedaço da alma do querido e
saudoso Richard Morse, o americano mais brasileiro que conheci em toda a
minha vida. Como explicar o massacre de crianças num lugar tão
"adiantado" e "rico" sem uma lógica bíblica ou messiânica - sem um
sistema de espoliação dos miseráveis e sem um Herodes agora armado, ele
próprio, de pistolas automáticas, perguntou-me um jovem jornalista?
Inocente, pois não tenho a menor ideia do meu futuro nem da minha
vida, a qual eu tento cuidar e honrar com o devido egoísmo por ela
determinado, só posso falar de uma importante contradição. Nós odiamos a
violência, mas a admitimos em certas circunstâncias. Na guerra, por
exemplo. Sobretudo, nas guerras santas que jamais saíram de moda. Ou na
luta ideológica contra a famosa "direita", hoje propositalmente
confundida no Brasil com o "direito": o ético, o meritório e o correto.
No caso dessa tragédia americana, há uma contradição trivial. O real
manda, no mínimo, discutir, como disse o presidente Obama, a venda de
armas. Mas o ideal que tende a virar tabu trata a aquisição de armas
como um direito.
No Brasil, criminalizamos o jogo, mas a Caixa Econômica Federal banca
pelos menos sete ou oito jogos de azar. Ademais, condenamos o jogo e
todo tipo de patifaria, mas compreendemos o canalha. Sobretudo quando
ele é amigo. "Esse não! Esse eu conheço! Com ele eu não admito, ouviu?
Não admito que sua reputação e sua figura à qual o país tanto deve sejam
postas em questão!!!"
Somos todos contra a jogatina, mas entendemos quando o primo faz uma
"fezinha na borboleta" ou no "burro" - esse totem de um Brasil que tenta
sem sucesso livrar-se das asnices de uma visão de mundo na qual a lei
teria a virtude de corrigir o mundo por reação e não por prevenção. "Mas
isso é crime capitulado no artigo tal da lei X! Não há mais o que
discutir." Exceto, é claro, se o capitulado for meu amigo!
O problema é o que fazer com os criminosos depois de devidamente
classificados como culpados. No nosso caso, a penalidade não é apenas
uma decorrência do crime, é uma ciência e eu até diria, com todo o
respeito, uma nobre arte. Afinal, como ouvi muitas vezes nesses meses
afora, "são vidas humanas em jogo".
Condenamos também a droga, mas tomamos o nosso vinhozinho, a nossa
cervejinha e a nossa cachacinha com os amigos sem problema. Aceitamos
até que um conhecido goste de uma "fileirinha", no seu caso, inocente,
porque: "Esse eu conheço e sei que é boa pessoa! Não é um indivíduo
qualquer a ser espancado pela polícia e depois exposto e escrachado na
mídia!!!"
Batemos de frente com as contradições entre o real e o ideal, a menos
que ela comprometa o patrão, o amigo e o correligionário a quem devemos
carreiras, favores e cargos. "Esse não! De modo algum! Esse eu
conheço!" Gritamos com obrigatória veemência.
Uma ética de condescendência - esse pouco discutido valor brasileiro
de muitos quilates - nos leva a relativizar o ideal. Como não é fácil
equilibrá-los, pois o concreto sempre desafia o ideal, personalizamos e,
com isso, impedir que X, Y ou Z sejam apreciados em suas faltas e
velhacarias. E como "roupa suja só se lava em casa", ferimos o ideal (e a
ética) dando um golpe personalista. "Esse não pode!", falamos, tirando
do âmbito do crime ou da patifaria o amigo dileto ou o personagem
poderoso.
Mas quem inventa os fatos?
Como esse bárbaro massacre ocorrido nos Estados Unidos; como esse
inacreditável mensalão; como os vínculos de terna intimidade entre o
ex-presidente e uma alta funcionária que representava a Presidência em
São Paulo e lá montou uma quadrilha? Quem inventou um partido como o PT,
que iria exterminar os ratos da corrupção nacional - como bolou o
publicitário do grupo, o sr. Duda Mendonça - e acabaram metidos no maior
escândalo da República? É o jornal que forma a quadrilha ou é a
quadrilha que faz o jornal?
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* Antropólogo. Escritor. Colunista do Estadão
Fonte: http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,esse-eu-conheco!-,975546,0.htm
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