Arnaldo Jabor*
‘Que estranho destino é esse da Humanidade se fechando como uma cobra mordendo o próprio rabo’
Eu já tive carnavais felizes, “sãos joões” felizes, mas não me lembro
de uma grande “noite feliz, noite de paz”... O Natal perdeu a
delicadeza antiga. Não temos mais chaminés nem ceias opulentas. Em vez
do saco de presentes, temos as calamidades coloridas dos shopping
centers. Hoje, no presépio de Belém, perto da manjedoura onde o menino
Jesus recebeu os Reis Magos, nos lugares sagrados de Jerusalém, explodem
os homens-bomba berrando “Feliz Natal, cães infiéis!”.
Que
estranho destino é esse da Humanidade se fechando como uma cobra
mordendo o próprio rabo, a morte no mesmo lugar no nascimento, o fim da
civilização no mesmo lugar onde começou, ali entre o Tigre e o Eufrates,
na Mesopotâmia.
Uma vez, Rubem Braga fez uma lista dos
lugares-comuns jornalísticos que justificariam demissões sumárias. O
sujeito que escrevesse que o “trem ficara reduzido a um monte de ferros
retorcidos” ou que o “incêndio era o ‘belo-horrível’” estava despedido.
Havia outras banalidades imperdoáveis, como: “Natal, Natal, bimbalham os
sinos!”...
Lembro que no Natal, enquanto os sinos “bimbalhavam”,
eu via as ceias do meu canto de menino: as ligações frágeis entre
parentes, entre tios e primos, as antipatias disfarçadas pelos abraços
frios e os votos de felicidades. Eu olhava as famílias viajando no tempo
como um cortejo trôpego, eu via a solidão de primos medíocres, das tias
malucas, dos avós já calados e ausentes, o eterno presunto caramelado, o
peru com apito. O destino das famílias ficava evidente no Natal. Os
pobres se conformando com o tosco prazer dos presentes baratos e os
ricos querendo provar que seriam felizes a qualquer preço — egoístas o
ano inteiro, esfalfavam-se para viver uma alegria compulsiva entre
gargalhadas, beijos molhados de vinho e uísque, terminando nas tristes
saídas na madrugada, com crianças chorando e presentes carregados com
tédio por pais de porre, aos berros de “Feliz Natal”. Papai Noel sempre
me intrigou. Quem era aquele sujeito que começava a aparecer no fim do
ano, nas lojas, no radio, na TV? Papai Noel tem muitas conotações desde
que foi inventado na Noruega, por causa de S. Nicolau, que ajudava as
pessoas carentes nos finais de ano. Soube que no final do Estado Novo,
lançaram uma campanha nacionalista para substituir o Papai Noel por um
outro símbolo: o “Vovô Índio” — um velho silvícola seminu, com peninha
na cabeça, que traria presentes para os “curumins” de verde e amarelo.
Foi um tremendo fracasso, claro, numa época em que o cinema americano já
mandava o Bing Crosby cantando “White Christmas” sem parar. Papai Noel
era invencível, se bem que eu nunca gostei dele. Papai Noel sempre foi
uma imagem de perdão e carinho.
Mas não para mim. Já contei isso
uma vez, aqui. E repito, porque nos natais e carnavais nada muda. Nada
mais parecido com um Natal do que outro.
Papai Noel me dava
presentes, sim, mas sempre acompanhados de uma carta (escrita à mão, em
tinta roxa) em que me fazia repreensões dolorosas: “Por que você
desobedeceu sua mãe e matou a aula de piano? Por que você bateu na sua
irmã com o espanador? Se fizer de novo... ano que vem tem castigo.” Para
mim, Papai Noel era assustador, por causa desse estratagema educativo
de meu pai, que usava o Natal para me dar lições de moral. Cada presente
aberto me dava um sentimento de culpa. Daí, a conclusão infantil: Papai
Noel gostava de todo mundo, menos de mim. Papai Noel foi meu superego
de barbas brancas. Talvez por isso, comecei a criticar o mundo desde
pequeno. Deu no que deu... Hoje sou esta pobre cabeça falante se
esgoelando no rádio e na TV. Eu fui o primeiro de minha turminha de
subúrbio a desconfiar que Papai Noel era uma fraude; comecei com ele e
hoje tenho os mensaleiros e pizzas de CPI, neste país farto de
mentirosos. “Papai Noel não existe!”, foi meu grito revolucionário.
“Existe, sim! Ele me deu um velocípede!”, bradavam os meninos obstinados
em sua fé. “Ah, é? Então, fica acordado para ver se não é teu pai
botando os presentes na árvore!” Mas meus amigos lutavam contra essa
desilusão, mais ou menos como velhos petistas que não desistem do
paraíso comunista. Recorri a meu avô, conselheiro e aliado, e ele apoiou
meu agnosticismo natalino: “Não existe, não. Você não é mais neném...”
Daí
para a frente, não parei mais. Entrei de sola na lenda da cegonha e do
bebê que “papai do céu mandou”. “Vocês pensam o quê? As mães de vocês
ficam nuas e o pai de vocês bota uma coisa dentro da barriga delas pelo
umbigo!” “A minha mãe, não!”, berravam os jovens édipos, partindo para a
porrada de rua comigo. Daí para descrer de Deus foi um pulo, para o
horror escandalizado dos colegas do colégio jesuíta.
“Deus é bom,
padre?” “Infinitamente bom...” “Ele sabe de tudo?” “Sim...”, respondiam
os padres já desconfiados. “Então, por que ele cria um cara que depois
vai para o inferno?” Até hoje ninguém me respondeu isso.
E assim
fui, até começar meu ódio ao “imperialismo norte-americano” dos anos
1960. Hoje, não tenho mais medo do Papai Noel; tenho até uma certa pena
dele... e de nós.
Hoje, Papai Noel vem com as renas canibais de um
Polo Norte que está derretendo pelo efeito estufa que os líderes
mundiais se recusam a combater. O Natal é uma saudade do Natal. E hoje,
com o futuro cada vez mais ralo, tenho saudades da precariedade de nossa
vida antiga, da ingenuidade dos comportamentos, de um mundo com menos
gente louca e má. “Ah! Você por acaso quer a volta do atraso?”, dirão
alguns. Não, mas sonho com uma vida delicada que sumiu, dos
lugares-comuns, dos chorinhos e chorões, de tudo que era baldio, dos
valores toscos da classe média. E quando chega o Natal, tenho nostalgia
das tristes ceias de minhas tias, sinto ainda o gosto dos panetones e
rabanadas transcendentais do passado.
------------------------------------------ * Cineasta. Escritor. Colunista do Estadão e do Globo.
Fonte: http://oglobo.globo.com/cultura/saudades-do-natal-7130322
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