ANDRÉ SANT'ANNA*
EU NÃO DISSE que ia voltar para o Juízo Final? Então cá estou,
homenzinhos! Sei até que aquilo foi uma maluquice que deu na minha
cabeça, quando comecei a falar em amor, em perdão, em um deus de amor e
de perdão, que é o Deus! O Deus único! O Deus pai! O Deus meu pai! O
Deus eu! Uma maluquice que me deu! Um amor imenso por todas as coisas
que há!
Aquela maluquice que me deu de insistir com aqueles primitivos dos
tempos em que eu, filho de Deus, passei pela Terra, que eles, os
primitivos que apedrejavam adúlteras, que torturavam e crucificavam
filhos de Deus com incrível naturalidade, não deveriam ficar, lá,
julgando os outros, apedrejando os outros, crucificando os outros,
fazendo de tudo para que todas as pessoas que há sejam sempre infelizes,
inclusive eles próprios, os primitivos apedrejadores de adúlteras!
Com tanta infelicidade em seus coraçõezinhos, tanto ressentimento
recalcado, os infelizes não só me torturaram muito, não só me botaram na
cruz, como também, logo a seguir, foram deturpando as minhas ideias,
até transformarem o Filho de Deus, o próprio Deus, eu, numa espécie de
inspetor de alunos, de bedel de colégio de padres, de freiras, essas
parada!
Sim! Os selvagens primitivos apedrejadores de adúlteras abandonaram o
amor! Abandonaram o perdão! Abandonaram o desapego material! Os
mendigos! Os leprosos! As adúlteras! Os lírios do campo! As criancinhas!
Sim! O Bem! Tudo! Deixaram tudo de lado: aquela maluquice toda, aquela
parada meio hippie, meio comunista, meio maluca, aquela parada de sermos
todos irmãos, iguais em importância! E o coitado do Deus, o pobre de
mim, Jesus, fui transformado em mero guardião da masturbação alheia, em
vil controlador do comprimento da saia das moças! O pobre maluco de mim,
Cristo, acabei pintado pelos detratores como um caretinha falso
moralista que proíbe tudo! Que proíbe inclusive o amor! Que proíbe
principalmente a felicidade!
Mas esse Jesus de vocês, ainda muito primitivos, selvagens, recalcados,
esse caretinha, bedel, controlador, inspetor, proibidor, não sou eu,
Jesus de verdade! Não sou eu, Jesus do amor! Esse Jesus caretinha, na
verdade, sim, meus amigos, é o próprio Capeta, o Deus do Dinheiro, o
Deus da Caretice! Por mil demônios!
Então, a brutalidade de vocês, selvagens primitivos caretas adoradores
do dinheiro, sem nenhum amor ao próximo, sem nenhuma capacidade de
perdoar, predominou sobre a Terra!
Ficou tudo invertido!
Os criadores do Jesus Capeta Careta, selvagens descendentes daqueles
primitivos que apedrejavam mulheres e torturavam filhos de Deus na cruz,
venceram e convenceram toda a humanidade, que é formada em sua
esmagadora maioria por indivíduos primários, violentos, possuídos por
toda espécie de recalques e ressentimentos profundos inconscientes, de
que o importante não é olhar os lírios do campo, que são cobertos de
beleza e glória mesmo não se preocupando em acumular riquezas, roupas
douradas, bens materiais, enfim! Não! Para os capetas caretas
acumuladores de ouro, o importante é justamente o contrário! Os brutos
convenceram os imbecis, vocês, de que o importante é ter muito dinheiro,
é dirigir aqueles automóveis com vidro preto para que os mendigos, os
leprosos, as adúlteras, os filhos de Deus, não possam olhar vocês nos
olhos, a cara bem barbeada de vocês, adoradores do Bezerro de Ouro!
Convenceram os energúmenos de que o importante, o respeitável, é usar gravatas! Sim! Gravatas!
Que contradição paradoxal insolúvel! O Homem de Bem, construído pelos
primitivos sem amor, esses que estão sempre usando o meu nome em vão, é
justamente aquele cara caretinha, com aquele cabelo arrumadinho e...
gravata! Enquanto que os considerados inimigos do bem e da
respeitabilidade são esses humanos meio esquisitos, malucos, meio mal
vestidos, meio cabeludões que não se preocupam muito com a própria
aparência, igual aos lírios do campo, sem carro, sem cartão de crédito!
Os considerados pecadores, desde a ressurreição do deus que ama e
perdoa, no caso eu, modéstia à parte, acabaram sendo exatamente esses
caras meio parecidos comigo, Jesus do amor, cabeludo meio hippie, meio
mendigo, meio comunista, com esta mania meio hippie, meio comunista,
meio maluca, de repartir o pão e compartilhar o amor!
Vocês, primitivos selvagens idiotas tapados, não têm mesmo salvação.
Vocês usaram muito mal o livre arbítrio que Deus, no caso eu, modéstia à
parte, lhes deu! Vocês optaram pela moral hipócrita, pela
autoimportância, pela perseguição cruel aos diferentes, os maluco! Vocês
realmente acham que são os favoritos de Deus, se acham melhores do que
um macaco, um cão, uma barata, um verme! Vaidade! Arrogância! Vocês vão
todos para o Inferno, canalhas!
Hoje, apenas uma meia-dúzia vai subir ao Reino dos Céus! Justamente
esses que foram perseguidos, humilhados, proibidos! Os diferentes! Os
mendigos! Os leprosos! As prostitutas! As criancinhas pobres
maltratadas! Os que não sabem dar o nó na gravata! Os que andam a pé!
Ah! Eu sou maluco! Viva os maluco!
Bye bye, baby, bye bye!
Bum.
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* Escritor. Músico.
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrissima/84084-o-juizo-final.shtml
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