José Maria Mayrink*
Reprodução
'Madona com o Menino Jesus', de Fra Angelico
'A Infância de Jesus' tem mais a marca do teólogo do que do papa
Foram quase dez anos de trabalho. O cardeal alemão
Joseph Ratzinger, então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé,
no Vaticano, ainda não era o papa Bento XVI, quando escreveu os dez
capítulos de Jesus de Nazaré, Do Batismo no Jordão à Transfiguração, primeira parte de uma obra que se completa agora com A Infância a de Jesus. Entre os dois títulos, saiu Jesus de Nazaré, Da Entrada em Jerusalém Até a Ressurreição.
A intenção do autor, conforme ele revela, não era produzir uma
trilogia, mas apresentar a vida pública de Jesus, com base na narração
dos Evangelhos. As histórias da infância, do anúncio do
nascimento à fuga para o Egito, seriam contadas num capítulo apenas.
Acabou merecendo um terceiro volume, que cronologicamente deveria ser o
primeiro. Sucesso editorial em mais de 50 países, os três livros foram
publicados no Brasil pela Planeta, que não é uma editora religiosa.
"Não preciso certamente dizer que este livro não é de modo algum um
ato de magistério, mas unicamente expressão de minha procura pessoal do
'rosto do Senhor' (cf. Salmo 27,8). Por isso, cada um está livre para me
contradizer", preveniu Ratzinger no prefácio de Jesus de Nazaré.
Ou seja: quem escreve não é o papa, infalível em matéria de fé, mas um
escritor e pesquisador cristão que pode se equivocar ao interpretar
dados históricos da trajetória do Filho de Deus. "É um livro mais para
ser meditado, rezado, do que estudado", observou a teóloga brasileira
Maria Clara Bingemer, da Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro (PUC-RJ), que participou do lançamento de A Infância de Jesus em Roma, a convite do Vaticano.
Bento XVI aproveitou o tempo livre, o espaço que lhe deixava a agenda
de compromissos pastorais e burocráticos, para fazer o que sempre
gostou de fazer: ler, pesquisar e escrever. Parecia preocupado com a
saúde, em abril de 2010, quando constatou, ao concluir o segundo volume,
que a obra não estava completa. "A minha vontade é tentar permanecer
fiel à minha promessa e apresentar mais um pequeno fascículo sobre tal
argumento (a infância de Jesus), se me for dada ainda força para isso."
Surpreendeu os assessores nas férias de verão deste ano, ao prolongar
por mais algumas semanas a permanência em Castelgandolfo. Não foi para
fugir do calor de Roma, mas para concluir a obra.
Na mesma linha dos dois volumes anteriores, não é bem o papa Bento
XVI, mas o teólogo Ratzinger quem se projeta numa erudita e piedosa
meditação sobre a vida de Jesus. Não escreve uma biografia, mas apoia-se
nos textos dos evangelistas Mateus e Lucas para rememorar os fatos
históricos. Ao tratar dos mistérios, e por isso mesmo coisas complicadas
e inadmissíveis para quem não tem fé, Ratzinger cita respeitáveis
exegetas, historiadores e biblistas, com os quais nem sempre concorda.
Católicos ou não. Por exemplo, o teólogo protestante Joachim Ringleben,
autor da "volumosa obra" Jesus (2008), a quem considera um "irmão" ecumênico.
Bento XVI rebate os autores que fazem derivar a narração do
nascimento virginal de Jesus da história das religiões, como a geração
divina dos faraós, por contato sexual dos deuses com as mães. Também
menciona a quarta écloga das poesias Bucólicas, de Virgílio,
texto escrito por volta de 40 anos antes de Cristo, sobre um menino
nascido de uma virgem que estabeleceria uma nova ordem no mundo. O papa
afirma que não se deve fazer paralelismo entre a mitologia egípcia ou a
poesia pastoral de Virgílio e o nascimento de Jesus, concebido por obra
do Espírito Santo. "O parto virginal e a ressurreição real do túmulo são
pedras de toque para a fé", ensina.
Jesus Cristo nasceu seis ou sete anos antes do que ensina a tradição,
com base em informação do monge Dionísio, falecido no ano 550, "que
evidentemente errou alguns anos nos seus cálculos", conforme observa e
admite Ratzinger. A explicação é que o recenseamento que levou Maria e
José a Belém ocorreu no tempo do rei Herodes, que morreu no ano 4 a.C. O
papa acrescenta que, de acordo com o historiador judeu Flávio Josefo,
contemporâneo de Jesus, o censo foi feito no ano 6 a.C., sob o
governador Quirino. Nesse caso, teria sido crucificado aos 39 ou 40 anos
de idade, e não aos 33 anos, como se costuma registrar.
Mesclando estudos de exegetas com dados históricos, Bento XVI traz
informações sobre o local do nascimento de Jesus em Belém, chegando à
conclusão de que pode ter sido mesmo numa gruta, pois os pastores
costumavam abrigar em grutas seus rebanhos. A estrela que guiou os
magos, que não eram reis, mas sábios vindos do Oriente, deve ter sido
não uma estrela, mas uma grande luz provocada pela junção dos planetas
Júpiter, Saturno e Marte. O papa dá sua opinião na primeira pessoa,
acatando argumentos de cientistas e astrônomos.
A Infância de Jesus é um livro que se pode ler isoladamente
com proveito, mas quem quiser meditar com Bento XVI sobre a história de
Jesus e o que significa a mensagem dos Evangelhos para o
cristão nos tempos de hoje deveria ler os três volumes de Jesus de
Nazaré, de preferência na ordem cronológica da narração. Concordando ou
não com o papa, já que ele admite divergência.
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* Jornalista.
Fonte: http://www.estadao.com.br/noticias/arteelazer,o-deus-menino-na-visao-de-bento-xvi,976642,0.htm
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