Rubem Alves*
“Os sinais eram inequívocos. Aquelas nuvens baixas,
escuras... O vento que soprava desde a véspera, arrancando das árvores
folhas amarelas e vermelhas. Não queriam partir... É, estava chegando o
Inverno. Deveria nevar. Viria então a tristeza, as árvores peladas, a
vida recolhida para funduras mais quentes, os pássaros já ausentes,
fugidos para outro clima, e aquele longo sono da natureza, bonito quando
cai a primeira nevada, triste com o passar do tempo... Resolvi passear,
para dizer adeus às plantas que se preparavam para dormir e fui, assim,
andando, encontrando-as silenciosas e conformadas frente ao inevitável,
o Inverno que se aproximava. Qualquer queixa seria inútil, E foi então
que eu me espantei ao ver um arbusto estranho. Se fosse um ser humano
certamente o internariam num hospício, pois lhe faltava o senso da
realidade, não sabia reconhecer os sinais do tempo. Lá estava ele,
ignorando tudo, cheio de botões, alguns deles já abrindo, como se a
primavera estivesse chegando. Não resisti, e me aproveitando de que não
houvesse ninguém por perto, comecei a conversar com ele, e lhe perguntei
se não percebia que o inverno estava chegando, que os seus botões
seriam queimados pela neve naquela mesma tarde. Argumentei sobre a
inutilidade daquilo tudo, um gesto tão fraco que não faria diferença
alguma. Dentro em breve tudo estaria morto... E ele me falou, naquela
linguagem que só as plantas entendem, que o inverno de fora não lhe
importava, o seu era um ritmo diferente, o ritmo das estações que havia
dentro. Se era inverno do lado de fora, era Primavera lá dentro dele, e
seus botões eram um testemunho da teimosia da vida que se compraz mesmo
em fazer o gesto inútil. As razões para isto? Puro prazer. Ah! Há tantas
canções inúteis, fracas para entortar o cano das armas, para
ressuscitar os mortos, para engravidar as virgens, mas não tem
importância, elas continuam a ser cantadas pela alegria que contém... E
há os gestos de amor, os nomes que se escrevem em troncos de árvores,
preces silenciosas que ninguém escuta, corpos que se abraçam, árvores
que se plantam para gerações futuras, lugares que ficam vazios, à espera
do retorno, poemas inúteis que se escrevem para ouvidos que não podem
mais ouvir — porque alguma coisa vai crescendo por dentro, um ritmo, uma
esperança, um botão —, pela pura alegria, um gozo de amor. E me lembrei
de um poster que tenho no meu escritório, palavras de Alberto Camus:
“No meio do Inverno eu finalmente aprendi que havia dentro de mim um
verão invencível.” Agradeci àquele arbusto silencioso o seu gesto
poético. Ah! Sim, quando os pássaros fugiam amedrontados eles levavam no
seu vôo as marcas do Inverno que se aproximava. Quando as árvores
pintavam suas folhas de amarelo e vermelho, como se fossem ipês ou
flamboaiãs, era o seu último grito, um protesto contra o adeus, aquilo
que de mais bonito tinham escondido lá dentro, para que todos chorassem
quando elas lhes fossem arrancadas. Sim, eles sabiam o que os aguardava.
E os seus gestos tinham aquele ar de tristeza inútil ante o inevitável.
Mas aquele arbusto teimoso vivia em um outro mundo, num outro tempo. E,
a despeito do inverno, ele saudava uma primavera que haveria de chegar e
que naquele momento só existia como um desejo louco. As outras plantas,
eu as encontrei como nós, realistas e precavidas, inteligentes e
cuidadosas. Já o arbusto tinha aquele ar de criança sonhadora, uma
pitada de loucura em cada botão, um poema em cada flor. As outras, se
fossem gente, construiriam casas que as protegessem do frio. Já o meu
arbusto faria liturgias que anunciam o retorno da vida. Porque liturgia é
isso: florescer pela manhã mesmo se for nevar pela tarde.
E aí a alucinação teológica tomou conta da minha cabeça e me lembrei da canção do profeta Habacuque:
“Muito embora não haja flores na figueira,
“Muito embora não haja flores na figueira,
e nem frutos se vejam nos ramos
da videira;
nada se encontre nos galhos da oliveira
e nos campos não
exista o que comer;
no aprisco não se vejam ovelhas
e nos currais
não haja gado:
todavia eu me alegro..”.
Nos brotos do arbusto, as palavras do profeta: um gesto a despeito de tudo. Me lembrei então de uma velha tradição de Natal, ligada à árvore. As famílias levavam arbusto para dentro de suas casas. E ali, neve por todas as partes, eles as faziam florescer, regando-as com água aquecida. Para que não se esquecessem de que, em meio ao Inverno, a Primavera continuava escondida em alguma parte.
Quando as plantas florescem na Primavera, ali os homens escrevem os seus nomes.
Mas quando as plantas florescem no Inverno, ali se escreve o nome do Grande Mistério...”
Nos brotos do arbusto, as palavras do profeta: um gesto a despeito de tudo. Me lembrei então de uma velha tradição de Natal, ligada à árvore. As famílias levavam arbusto para dentro de suas casas. E ali, neve por todas as partes, eles as faziam florescer, regando-as com água aquecida. Para que não se esquecessem de que, em meio ao Inverno, a Primavera continuava escondida em alguma parte.
Quando as plantas florescem na Primavera, ali os homens escrevem os seus nomes.
Mas quando as plantas florescem no Inverno, ali se escreve o nome do Grande Mistério...”
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* Teólogo. Educador. Escritor.
Fonte: http://correio.rac.com.br/_conteudo/2012/12/16
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