E.M. Cioran*
O único argumento contra a imortalidade é o tédio. Daí procedem, de fato, todas as nossas negações. (Lacrimi şi Sfinţi)
§
Certos seres sentem uma inclinação para o crime apenas para saborear uma vida intensificada, de modo que a negação patológica da vida seja ao mesmo tempo sua homenagem. (Amurgul Gândurilor)
§
A vida, em seu aspecto positivo, é uma
categoria do possível, uma queda no futuro. Quanto mais abrimos portas
para este último, mais possível realizamos. O desespero, pelo contrário,
é a negação do possível, e, portanto, da vida. Mais do que isso: ele é a
intensidade absoluta perpendicular ao Nada. Uma coisa é positiva se
tiver uma relação interna ao futuro, se ela tender a ele. A vida se
realiza plenamente ganhando plenitude temporal. Na medida em
que o desespero se amplifica a si mesmo, sua intensidade é um possível
sem futuro, uma negatividade, um impasse em chamas. Mas, desde que se
abra uma janela para o desespero, então a vida – invadida por ela
mesma – parece uma graça desacorrentada, um turbilhão de sorrisos. (Amurgul Gândurilor)
§
O homem idealmente lúcido,
logo idealmente normal, não deve ter nenhum recurso além do nada que
está nele… Parece que o ouço: “Livre do fim, de todos os fins, de meus
desejos e de minhas amarguras só conservo as fórmulas. Tendo resistido à
tentação de concluir, venci o espírito, como venci a vida pelo horror, a
buscar-lhe uma solução.” O espetáculo do homem – que vomitivo! O amor –
um encontro de duas salivas… Todos os sentimentos extraem seu absoluto
da miséria das glândulas. Não há nobreza senão na negação da existência,
em um sorriso que domina paisagens aniquiladas. (“O Anti-Profeta”, in: Breviário de decomposição)
§
O ser entregue a si mesmo, sem nenhum preconceito de elegância, é um
monstro; só encontra em si zonas obscuras, onde rondam, iminentes, o
terror e a negação. Saber, com toda sua vitalidade, que se morre e não
poder ocultá-lo, é um ato de barbárie. Toda filosofia sincera renega os
títulos da civilização, cuja função consiste em velar nossos segredos e
disfarçá-los com efeitos rebuscados. Assim, a frivolidade é o antídoto
mais eficaz contra o mal de ser o que se é: graças a ela iludimos o
mundo e dissimulamos a inconveniência de nossas profundidades. Sem seus
artifícios, como não envergonhar-se por ter uma alma? Nossas solidões à
flor da pele, que inferno para os outros! Mas é sempre para eles, e às
vezes para nós mesmos, que inventamos nossas aparências… (“Civilização e
frivolidade”, in: Breviário de decomposição)
§
Quem não conhece o tédio encontra-se ainda na infância do mundo,
quando as idades esperavam para nascer; permanece fechado para este
tempo fatigado, que se sobrevive, que ri de suas dimensões e sucumbe no
limiar de seu próprio… porvir, arrastando com ele a matéria, subitamente
elevada a um lirismo de negação. O tédio é o eco em nós do tempo
que se dilacera… a revelação do vazio, o esgotamento desse delírio que
sustenta – ou inventa – a vida… (“Desarticulação do tempo”, in: Breviário de decomposição)
§
Também nós buscamos a “felicidade”, seja por frenesi, seja por
desdém: desprezá-la é ainda não esquecê-la, e repudiá-la pensando nela;
também nós buscamos a “salvação”, ainda que seja não a desejando. E se
somos os heróis negativos de uma Idade demasiado madura, por isso mesmo
somos seus contemporâneos: trair seu tempo ou ser fanático por
ele, exprime – sob uma contradição aparente – um mesmo ato de
participação. Os altos desfalecimentos, as sutis decrepitudes, a
aspiração a auréolas intemporais – tudo isso conduzindo à sabedoria –,
quem não os reconhece em si mesmo? Quem não sente o direito de
afirmar-se no vazio que o rodeia, antes que o mundo se desvaneça na
aurora de um absoluto ou de uma negação nova? Um deus ameaça sempre no
horizonte. Estamos à margem da filosofia, uma vez que consentimos em seu
ocaso. Façamos que o deus não se instale em nossos pensamentos,
guardemos ainda nossas dúvidas, as aparências de equilíbrio e a tentação
do destino imanente, pois qualquer aspiração arbitrária e fantástica é
preferível às verdades inflexíveis. Mudamos de remédios, ao não
encontrar nenhum eficaz nem válido, porque não temos fé nem no
apaziguamento que buscamos nem nos prazeres que perseguimos. Sábios
versáteis, somos os epicuristas e os estóicos das Romas modernas…
(“Pensadores crepusculares”, in: Breviário de decomposição)
§
Há uma vulgaridade que nos
faz admitir qualquer coisa deste mundo, mas que não é poderosa para nos
fazer admitir o mundo mesmo. Assim, podemos suportar os males da vida
repudiando a Vida, deixar-nos arrastar pelas efusões do desejo
rejeitando o Desejo. No assentimento à existência existe uma espécie de
baixeza, à qual escapamos graças a nossos orgulhos e a nossos pesares,
mas sobretudo graças à melancolia que nos preserva de um deslize para
uma afirmação final, arrancada de nossa covardia. Há coisa mais vil do
que dizer sim ao mundo? E, no entanto, multiplicamos sem cessar
esse consentimento, essa trivial repetição, esse juramento de fidelidade
à vida, negado somente por tudo o que em nós recusa a vulgaridade.
Podemos viver como os outros vivem e no entanto esconder um não maior que o mundo: é o infinito da melancolia…
(Só se pode amar os seres que não ultrapassam o mínimo de vulgaridade indispensável para viver. Contudo, seria difícil delimitar a quantidade desta vulgaridade, ainda mais por que nenhum ato poderia eximir-se dela. Todos os proscritos da vida provam que foram suficientemente sórdidos… Quem triunfa em um conflito com seu próximo surge de um muladar; e quem é vencido paga por uma pureza que não quis sujar. Em todo homem, nada é mais existente e verídico que sua própria vulgaridade, fonte de tudo o que é elementarmente vivo. Mas, por outro lado, quanto mais estabelecido se está na vida, mais desprezível se é. Quem não espalha à sua volta uma vaga irradiação fúnebre, e não deixa ao passar um rastro de melancolia vindo de mundos longínquos, esse pertence à subzoologia e, mais especificamente, à história humana.
A oposição entre a vulgaridade e a melancolia é tão irredutível que, comparada a ela, todas as outras parecem invenções do espírito, arbitrárias e ridículas; mesmo as mais categóricas antinomias embotam-se ante esta oposição em que se afrontam- seguindo uma dosagem predestinada – nossos bas-fonds e nosso fel pensativo.) (“Dualidade”, in: Breviário de decomposição)
Podemos viver como os outros vivem e no entanto esconder um não maior que o mundo: é o infinito da melancolia…
(Só se pode amar os seres que não ultrapassam o mínimo de vulgaridade indispensável para viver. Contudo, seria difícil delimitar a quantidade desta vulgaridade, ainda mais por que nenhum ato poderia eximir-se dela. Todos os proscritos da vida provam que foram suficientemente sórdidos… Quem triunfa em um conflito com seu próximo surge de um muladar; e quem é vencido paga por uma pureza que não quis sujar. Em todo homem, nada é mais existente e verídico que sua própria vulgaridade, fonte de tudo o que é elementarmente vivo. Mas, por outro lado, quanto mais estabelecido se está na vida, mais desprezível se é. Quem não espalha à sua volta uma vaga irradiação fúnebre, e não deixa ao passar um rastro de melancolia vindo de mundos longínquos, esse pertence à subzoologia e, mais especificamente, à história humana.
A oposição entre a vulgaridade e a melancolia é tão irredutível que, comparada a ela, todas as outras parecem invenções do espírito, arbitrárias e ridículas; mesmo as mais categóricas antinomias embotam-se ante esta oposição em que se afrontam- seguindo uma dosagem predestinada – nossos bas-fonds e nosso fel pensativo.) (“Dualidade”, in: Breviário de decomposição)
§
Cada desejo humilha a soma de
nossas verdades e obriga-nos a reconsiderar nossas negações. Sofremos
uma derrota na prática; no entanto, nossos princípios permanecem
inalteráveis… Esperávamos não ser mais filhos deste mundo e eis-nos aqui
submetidos aos apetites como ascetas equívocos, donos do tempo e
escravos das glândulas. Mas este jogo não tem limites: cada um de nossos
desejos recria o mundo e cada um de nossos pensamentos o aniquila…
Na vida de todos os dias alternam-se a cosmogonia e o apocalipse: criadores e demolidores cotidianos, praticamos a uma escala infinitesimal os mitos eternos; e cada um de nossos instantes reproduz e prefigura o destino de sêmen e de cinza reservado ao Infinito. (“Cosmogonia do desejo”, in: Breviário de decomposição)
Na vida de todos os dias alternam-se a cosmogonia e o apocalipse: criadores e demolidores cotidianos, praticamos a uma escala infinitesimal os mitos eternos; e cada um de nossos instantes reproduz e prefigura o destino de sêmen e de cinza reservado ao Infinito. (“Cosmogonia do desejo”, in: Breviário de decomposição)
§
Ninguém executaria o ato mais ínfimo sem o sentimento de que esse ato
é a única e exclusiva realidade. Esta cegueira é o fundamento absoluto,
o princípio indiscutível de tudo o que existe. Aquele que o discute prova somente que existe menos,
que a dúvida minou seu vigor… Mas, mesmo no meio de suas dúvidas, é
obrigado a sentir a importância de sua tendência para a negação. Saber
que nada vale a pena torna-se implicitamente uma crença, logo uma possibilidade de ato;
é que mesmo uma gota de existência pressupõe uma fé inconfessada; um
simples passo – ainda que fosse apenas na direção de uma aparência de
realidade – é uma apostasia comparado ao nada; a própria respiração
procede de um fanatismo em germe, como toda participação no movimento…
Desde sair para dar uma volta até o massacre, o homem só percorre a gama dos atos porque não percebe seu sem-sentido: tudo o que se faz sobre a terra emana de uma ilusão de plenitude no vazio, de um mistério do Nada…
Fora da criação e da Destruição do mundo, todas as empresas são igualmente nulas. (“Interpretação dos atos”: Breviário de decomposição)
Desde sair para dar uma volta até o massacre, o homem só percorre a gama dos atos porque não percebe seu sem-sentido: tudo o que se faz sobre a terra emana de uma ilusão de plenitude no vazio, de um mistério do Nada…
Fora da criação e da Destruição do mundo, todas as empresas são igualmente nulas. (“Interpretação dos atos”: Breviário de decomposição)
§
Com um pouco mais de ardor no niilismo, me seria possível — negando
tudo — sacudir minhas dúvidas e triunfar sobre elas. Mas só tenho o
gosto da negação, não seu dom. (Silogismos da amargura)
§
Não importa o que eu tente, será sempre apenas a manifestação de um
declínio, patente ou camuflado. Durante muito tempo fiz a teoria do
homem-fora-de-tudo. Este homem é o que me tornei, o que agora encarno.
Minhas dúvidas deram em algo, minhas negações tomaram corpo. Vivo o que
antes acreditava viver. Encontrei-me, enfim, um discípulo. (Le mauvais demiurge)
§
Minhas dúvidas não levaram a melhor sobre meus automatismos. Continuo
a fazer gestos aos quais me é impossível aderir. Superar o drama desta
insinceridade, isto seria me renegar e me anular. (Le mauvais demiurge)
§
A negação não parte nunca de um raciocínio, mas de um não-sei-que
obscuro e antigo. Os argumentos vêm depois, para justificá-la e
apoiá-la. Todo não surge do sangue. (De l’inconvenient d’être né)
§
A negação soluçante: única forma tolerável de negação. (De l’inconvenient d’être né)
§
Mal havia eu terminado uma série de reflexões um tanto lúgubres, fui
tomado por esse amor mórbido pela vida, punição ou recompensa daqueles
que estão condenados à negação. (Écartèlement)
§
Subitamente, necessidade de demonstrar agradecimento, não só aos
seres mas também aos objetos, a uma pedra porque é pedra… Tudo parece
então animar-se como se fosse para a eternidade. De golpe, inexistir
parece inconcebível. Que estes calafrios se produzam, que possam produzir-se, mostra que a última palavra talvez não esteja na Negação. (Écartèlement)
§
O que sempre me seduziu na negação é o dom de tomar o lugar de tudo e
de todos, de ser uma espécie de demiurgo, de dispor do mundo como se
tivesse colaborado na sua aparição e depois tivesse o direito, e mesmo o
dever, de precipitar a sua queda. A destruição, conseqüência imediata
do espírito de negação, corresponde a um instinto profundo, a um tipo de
inveja que cada um certamente sente no fundo de si mesmo com relação ao
primeiro dos seres, à sua posição e à idéia que representa e
simboliza.Embora frequentasse os místicos, no meu foro íntimo estive
sempre do lado do Demônio: não podendo me igualar a ele pela força,
tentei ser equivalente ao menos pela insolência, pela aspereza, pelo
arbitrário e pelo capricho (Exercícios de Admiração).
Tradução do francês: Rodrigo Menezes
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* Filósofo romeno/francês (1911-1995).
Fonte: http://emcioranbr.wordpress.com/bio/
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