A
vida é um fenômeno que resulta de relações: “não existe vida no
isolamento”, ensina a professora e conferencista argentina Lia Diskin –
em entrevista realizada para o estudo Política Cidadã, produzido pelo
instituto Ideafix para o IDS (Instituto Democracia e Sustentabilidade).
Os valores que deveriam nos orientar são, portanto, interdependência,
empatia, solidariedade, cooperação, partilhamento: “a compreensão de que
estamos imersos em uma comunidade viva que nos sustenta”. Ao contrário,
a ideologia dominante em nossa cultura é a do individualismo. “Mas
nenhum de nós se fez sozinho, embora se tente fazer crer que a criação
desta obra ou daquela ideia seja exclusivamente de fulano ou beltrano”,
recorda ela.
Lia Diskin vive no Brasil desde 1972, quando fundou a Associação
Palas Athena – organização sem fins lucrativos que adota a gestão
compartilhada e atua nas áreas editorial, de educação, saúde, direitos
humanos, meio ambiente e promoção social. Passou o ano de 1986 estudando
budismo em Dharamsala, na Índia, terra dos exilados tibetanos, tendo o
Dalai Lama como um de seus professores. Desde então tornou-se uma
espécie de embaixadora do líder budista no Brasil, e organizou suas
visitas ao país em 1992, 1999, 2006 e 2011. É também coordenadora do
Comitê Paulista da Década da Cultura de Paz, da Unesco.
Especialista em técnicas de meditação, Lia observa que vivemos
olhando para fora, em busca de aprovação, deixando assim de perceber o
que se passa em nossa mente. “Estamos habitando uma casa da qual o único
que conhecemos é a janela, e da janela para fora. O que acontece dentro
da casa, quais são os outros integrantes desse espaço, qual é a
dinâmica que se estabelece dentro desse espaço, a gente simplesmente
ignora.” Mas a vida vai além disso, lembra.
Vivemos nos equilibrando sobre a crosta de um planeta que gira em
alta velocidade em torno do sol, na periferia de uma dentre bilhões de
galáxias do universo. Um planeta cuja estabilidade está sendo afetada
por nós, que estamos colocando em risco o fenômeno da vida. “Não somos o
centro da galáxia, dentro dela é tudo elíptico. O centro é o Sol, sem o
qual não há vida. Nosso sistema é periférico, não é central”, ela
lembra, nos devolvendo a humildade.
Admiradora de Gandhi, Lia observa que ainda não estudamos
adequadamente as estratégias político-pedagógicas que o líder pacifista
indiano colocou em marcha já em meados do século XX para, sem um único
tiro, derrotar o Império Britânico e libertar a Índia. “Gandhi foi um
dos primeiros a promover o poder local – do qual hoje falamos tanto.
Insistia constantemente em fortalecer, nutrir, empoderar as aldeias.”
Ao falar sobre a necessidade de redefinir nossas prioridades, ela
elege a educação como meio por excelência para o cultivo de outros
valores. E aponta a televisão, grande instrumento de lazer do povo
brasileiro, como o instigador da violência e do desrespeito ao humano.
“É o deboche, a ridicularização do outro, em que todo mundo ri da
desgraça alheia. Como achar graça de uma criança que está aprendendo a
caminhar e cai? Como isso pode ser motivo de chacota?”
Sobre a atividade política, Lia entende que – ao contrário do que
hoje se considera – talvez seja a mais elevada e mais nobre que podemos
ter. “Porque nos erguemos acima dos interesses pessoais e passamos a
contemplar o que atende às necessidades de uma parcela maior da
população.” Ela defende que os interesses nacionais e coletivos devem
estar acima de qualquer tipo de partidarismo. “Se a gente não entender
que político é aquilo que atende a todos nós, independente do partido em
que estamos engajados, vai ser muito difícil resgatar o princípio
fundante da vida comunitária, da vida pública”, explica, ressalvando que
apesar disso os partidos políticos devem ser fortalecidos, já que são
eles que mantêm a roda dos espaços institucionais em funcionamento. A
seguir, a entrevista. (I.C.)
Outras Palavras – Como você percebe a participação política do cidadão brasileiro?
Lia Diskin – Muito enfraquecida, pouco envolvida,
pouco comprometida. Apesar de haver uma informação crescente, talvez por
causa das redes sociais, numa perspectiva mais de longo prazo não vejo
uma capacidade aglutinante de fazer propostas locais, pontuais, nem de
uma macroestratégia de desenvolvimento do país.
Penso que isso se deve também à complexidade crescente da vida nas
grandes cidades, nas quais os deslocamentos de um lugar para outro se
tornam cada vez mais penosos e consomem mais tempo. Por outro lado, essa
exigência prepotente de estar informado sobre todas as coisas: qual é o
livro que acaba de ser lançado, qual é o filme que ganhou mais prêmios
no festival, qual é o restaurante que está tendo uma promoção mais
interessante, o último lançamento da moda? É tamanho o leque de
informações sobre as quais há que se dar conta, “para ter
respeitabilidade em diferentes meios da sociedade”, que isso
simplesmente termina consumindo toda a energia do cidadão. Penso que
perdemos o senso da prioridade e da essencialidade. Perdemos o senso do
que é importante na vida familiar, na vida privada e na vida pública.
OP – Nesse cenário, que temas mobilizariam a sociedade brasileira?
LD – Neste momento, acredito que é tudo aquilo que
esteja afeito ao universo financeiro, econômico, factível de tornar-se
consumo ou de tornar-se produto. É assustador o espaço que ocupam as
informações dessa esfera nas grandes mídias, Qual é o sentido de estar
todos os dias nos principais jornais da televisão brasileira a subida ou
a descida da bolsa da Nasdaq, de Frankfurt, de Hong Kong? Qual é o
sentido disso para o cidadão médio? Aquele que realmente tem necessidade
desse tipo de informação a obtém online a fim de fazer suas transações,
portanto não precisa delas nos jornais televisivos.
Na Gestalt se fala muito a respeito de “não vermos que não vemos”. Há
um ponto cego dentro de todos nós. Penso que o grande ponto cego da
sociedade contemporânea é justamente não perceber que determinadas
pautas são talvez interessantes ou indispensáveis para grupos muito
pequenos da população. Mas essas pautas terminam ocupando a maior
quantidade do tempo e do espaço nas mentes dos cidadãos.
OP – Você falou da energia gasta no consumo, falou em mídia e em valores essenciais. Poderia discorrer sobre isso?
LD – Infelizmente, na cultura dominante o consumo
tornou-se um objeto de reconhecimento social. Você vê isso já em
crianças pequenas, com o uso, por exemplo, de telefones celulares,
iPods, iPhones e companhia. Todos nós precisamos de reconhecimento, é
inerente à condição humana. Precisamos ser legitimados pelo outro.
Quando tal atitude transborda e se torna quase uma compulsão, e o fator
de inclusão são as questões de ordem material, de ordem objetiva, aquilo
que posso ostentar na presença dos outros – isso se torna extremamente
perigoso, porque a pessoa passa a colocar todo o seu capital de tempo e
criatividade a serviço do reconhecimento social, apenas. O cultivo, o
conhecimento de si mesmo, a possibilidade de acessar um potencial
latente para outras áreas fica totalmente obliterado, porque a pessoa
não tem mais energia.
Estamos habitando uma casa da qual o único que conhecemos é a janela,
e da janela para fora. O que acontece dentro da casa, quais são os
outros integrantes desse espaço, qual é a dinâmica que se estabelece
dentro desse espaço, a gente simplesmente ignora. Utilizamos as coisas
para obter reconhecimento dos outros, e esse reconhecimento parece
conferir a nós a sensação de termos direito, de sermos merecedores da
vida. E tudo fica encapsulado entre o teto de nossos cabelos e o chão de
nossos sapatos. Mas a vida é algo que vai além disso. A vida não
acontece apenas entre nossos cabelos e nossa planta do pé.
OP – Fale desses valores essenciais, daquilo que está dentro da casa e que a gente não conhece…
LD – Para que haja a vida – a gente hoje sabe muito
bem, porque temos trabalhos extraordinários no campo da biologia, da
neurociência – é preciso uma teia de relações. Não existe vida sem
relação. Não existe vida no isolamento. Ou seja, o individualismo, por
si só, é uma contradição da vida. A vida existe enquanto há uma dinâmica
constante de manutenção, sustentação das relações e promoção de novas
relações. Um ecossistema é tanto mais rico quanto mais variedade de vida
exista dentro dele e quanto maior conectividade possa existir entre
essas vidas.
Quando falamos num repertório de valores essenciais, estamos nos
referindo a um repertório de valores sustentados por essa teia, e que
por sua vez a sustentam. Quanto mais nos distanciamos disso, mais
repercussões dolorosas e ruídos no sistema irão acontecer. No humano, a
relação se manifesta não apenas pela vinculação imediata de afetos, mas
também pelos princípios de empatia, de solidariedade, de cooperação;
pelos princípios do partilhamento, da compreensão de estarmos imersos em
uma comunidade viva que nos sustenta.
Nenhum de nós se fez sozinho. A espécie humana, dentre os seres
vivos, é a que mais demora a adquirir autonomia e independência. Para
nos movermos no berço, precisamos de três ou quatro meses. Se não houver
alguém dando conta da nossa existência, sequer conseguimos nos virar no
berço. Para ficar em pé, quase um ano. Para ter minimamente um
discernimento do que posso e o que não posso ingerir – aquilo que põe em
perigo a minha vida e aquilo que sustenta a minha vida –, serão seis ou
sete anos. Para adquirir maturidade biológica, ou capacidade de
procriar, 11, 12, 13 anos. E para ter maturidade psicológica nos vão
minimamente 16, 17 anos, se é que alguma vez a atingimos. Muitas vezes a
gente vê criançonas de cabelos brancos, no sentido de não serem capazes
de se responsabilizar pelos efeitos dos próprios atos.
Então somos uma espécie que demora muito a aprender, simplesmente
porque não nascemos equipados para dar conta de nossa existência. Uma
tartaruga nasce e já consegue ser autossuficiente. Uma tartaruga marinha
sabe onde está o mar, e vai se dirigir para este mar. Ela já vem com um
repertório de saberes que lhe permite satisfazer as necessidades desta
vida que ela mesma constitui, que ela mesma é.
"A solidariedade e
a cooperação não podem ser uma excepcionalidade no humano, são
constituintes do humano. A excepcionalidade teria que ser justamente o
contrário: negar-se à solidariedade, negar-se à cooperação, negar-se ao
compartilhamento."
Não é o caso do humano. Damos conta de nossa vida aprendendo. E
aprendemos, obviamente, do meio que temos no entorno. Não podemos dizer
que somos 100% fruto do meio, porque senão todos seríamos iguais, mas
grande parte de nossas referências internas se constituiu a partir do
meio que nos nutriu, nos alimentou e nos deu parte da identidade que
afirmamos ser. Nesse sentido, quando se tem uma sociedade na qual os
valores que estão sendo promovidos são sempre secundários com referência
à vida, ao que é essencial, alguma coisa está errada. A solidariedade e
a cooperação não podem ser uma excepcionalidade no humano, são
constituintes do humano. A excepcionalidade teria que ser justamente o
contrário: negar-se à solidariedade, negar-se à cooperação, negar-se ao
compartilhamento.
E temos que ser realistas: o que nos está mostrando uma grande parte
dos elementos constituintes daquilo que chamamos cultura – seja a mídia,
seja a arte – são rupturas, rupturas, rupturas. Você liga uma TV, passa
pelos canais abertos e pelos canais privados, 80% da programação é
confronto bélico, é confronto nutrido de raiva, de ressentimento, é
busca de uma competição absurda pelos poderes. Os outros 10% são muitas
vezes de uma precariedade e de uma indignidade psicológica muito
dolorosa: é o deboche, a ridicularização do outro, aquela coisa das
pegadinhas, situações em que todo mundo ri, literalmente, da desgraça
alheia. Como achar graça de uma criança que está aprendendo a caminhar e
cai. Como isso pode ser motivo de chacota? A primeira reação ante algo
inusitado é, muitas vezes, o riso. Mas de maneira alguma isso pode ser
uma celebração coletiva. Então, o que sobra? Uns 10%, em que se
encontram fontes de inspiração na vida animal, em recortes históricos ou
releituras de fatos do passado, programas sobre astronomia. São também
os que têm menos audiência.
E aí está o grande nó górdio que temos de desatar, porque está
fazendo sofrer a todos, sem exceção: ninguém hoje está em uma situação
na qual possa desfrutar da vida que lhe está sendo oferecida a cada
instante. Penso que é momento de revisitar premissas. Para onde estamos
nos dirigindo, qual é o porto a que queremos chegar, e de onde estamos
partindo? Não podemos saber com clareza onde queremos chegar se não
sabemos de onde estamos partindo. E estamos partindo de um cenário de
bilhões e bilhões de anos, que é a vida, que tem uma experiência
acumulada extraordinária e provoca admiração – porque também é natural
do humano admirar os feitos, não apenas belos, mas também sábios. A
gente reconhece intimamente quando há sabedoria. E tudo isso está sendo
colocando em perigo pelo estado de arrogância, de prepotência em que a
espécie humana terminou se refugiando. Então, penso que são necessários
mecanismos urgentes de redefinição das prioridades.
OP – Que mecanismos seriam esses?
LD – A educação, sem sombra de dúvida. Em toda a
minha formação escolar, não recebi uma única aula a respeito de questões
ambientais. Aliás, a palavra ecologia sequer existia. Hoje já se veem
crianças assinalando, dentro de casa: “mamãe, a torneira está aberta;
papai, olha a luz acesa; fulano, não jogue papel na rua”. Há uma
capacitação das novas gerações para dar conta de uma consciência à qual a
minha geração esteve totalmente alheia. As novas gerações também vão
ter que criar todo um novo repertório de conciliação com a vida – porque
parece que estivemos brigando com ela, dando-lhe as costas, querendo
criar um mundo paralelo independente da natureza – o que é impossível. É
esquizofrênico.
OP – Que papel as redes sociais podem ter nessas mudanças?
LD – Vai depender do conteúdo com o qual estiverem
preenchidas. O instrumento em si é extraordinário, a gente fica até
orgulhoso pela capacidade do ser humano de criar instrumentos de
ligação. Mas sem uma vinculação, sem criar um nexo com outros, não
funciona. Se isso não se sustenta, se isso é líquido, como fala Zygmunt
Bauman, a sociedade líquida que não tem raiz, não tem profundidade, não
consegue criar sustentabillidade e, consequentemente, promover
mecanismos de continuidade. Se não tenho isso, as redes sociais podem se
tornar mais um objeto de consumo do tempo e da energia das pessoas.
Para mais uma vez fugir do importante e do essencial, que é o
compromisso, a relação – com todo o risco que isso acarreta.
OP – Você acha então que as redes sociais precisam se enraizar nas relações pessoais, para ter alguma efetividade?
LD – Sim, e devem estar profundamente aliadas com a
compreensão do que são as redes de vida, de como a vida se comporta
dentro de macrossistemas e de microssistemas, como em nossa espécie.
"As crianças não sabem diferenciar
uma abobrinha de uma
berinjela,
não sabem diferenciar batata de
cará ou inhame – isso é
preocupante,
porque elas podem viver sem saber
a marca dos carros, mas
não podem
viver sem árvores e sem vegetais."
OP – A natureza é o nosso espelho?
LD – Sem sombra de dúvida, sem ela não somos nada.
Uma coisa que me parece absurda é que todos somos capazes de distinguir
carros pelas suas marcas, pelo ano e pelos insumos que trazem. Contudo,
se você pergunta a diferença que há entre um ipê e uma paineira, ou
ainda quais são as árvores que há em sua rua, a pessoa não sabe. Como
podemos distinguir modelos de carros e ser incapazes de distinguir duas
árvores? As crianças não sabem diferenciar uma abobrinha de uma
berinjela, não sabem diferenciar batata de cará ou inhame – isso é
preocupante, porque elas podem viver sem saber a marca dos carros, mas
não podem viver sem árvores e sem vegetais.
É sobre isso que falo: de nos referirmos ao importante, ao essencial.
Estamos embevecidos, quase narcotizados pelas criações humanas, e nos
esquecemos de que tudo isso é possível unicamente porque há um substrato
dado pela natureza, dado pela vida, pela terra, a terra que nos nutre e
nos sustenta, sem o qual nada vai ser possível. Todas as inovações no
campo da sustentabilidade energética, seja energia eólica, seja dos
mares, são pensadas a partir de um recurso natural. Não há como sair
disso. A energia que inventamos, que foi a energia nuclear, está sendo
repensada: será que somos suficientemente responsáveis para dar conta de
um instrumento cujas consequências sequer conseguimos prever?
OP – Algum movimento social te chamou atenção, aqui no Brasil ou fora dele?
LD – Para mim o Greenpeace continua sendo uma
referência, pela continuidade. Valorizo muito a continuidade em uma
ação, esse estardalhaço de projetos fogueteiros, que criam um grande
evento e terminam, não leva a nada. Há movimentos interessantes
trabalhando seriamente na questão da sustentabilidade, mas penso que
isso tem que entrar mais no cotidiano das pessoas, não apenas as
discussões sobre sacolinha de plástico. Tem que perguntar: “Como eu,
como indivíduo, estou afetando a vida dos outros seres? Qual é a minha
pegada ecológica, como é meu consumo?” Em última instância: sou eu que
escolho, ou me deixo escolher pela sedução das referências externas?
Essas questões têm que passar necessariamente pelo indivíduo.
Gandhi tinha uma frase radical: “Seja a mudança que você quer ver no
mundo”. Comece por si mesmo. Você não pode começar pelo mundo, mas pode
começar por você. Gandhi tinha essa capacidade de apontar com clareza
questões relevantes, acessíveis à participação de todos. Penso que
devemos resgatar essa capacidade.
OP – Gandhi esteve vivo em várias manifestações recentes, por sua não-violência.
LD – Sem dúvida. Mas ele é uma referência ainda
pouco estudada. Admiramos muito Gandhi, mas não o estudamos. Não
estudamos o que está por trás da estratégia que ele utilizou para
desmontar o enorme maquinário de colonização – estou falando do Império
Britânico, não de um império passageiro – em um país tão populoso e tão
rico em recursos naturais quanto a Índia. Sem uma única arma, sem
necessidade de disparar um único tiro… como aconteceu isso? Nós ainda
não estudamos as estratégias pedagógico-políticas que Gandhi colocou em
cena já em meados do século XX – a independência da Índia foi em 1947 e
em 1948 Gandhi morreu. Ele escreveu muita coisa, não é que ele seja um
ativista sem reflexões nem metodologia. Criou todo um processo
estratégico para desmontar o poder e, fundamentalmente, robustecer as
massas indianas. Que eu me lembre, Gandhi foi um dos primeiros a
promover o poder local – do qual hoje falamos tanto. Insistia
constantemente em fortalecer, nutrir, empoderar as aldeias. É nas
aldeias que vive o indiano, dizia ele. É nas aldeias que devemos pensar
quando falamos da construção de uma nação, de uma identidade nacional.
OP – Diante de tudo isso, você consegue enxergar novas formas de ação política?
LD – Primeiro, temos que despartidarizar as questões
políticas. Se a gente não começa a limpar o terreno do político,
entendendo que político é aquilo que atende a todos nós, independente do
partido em que estamos engajados, vai ser muito difícil resgatar o
princípio fundante da vida comunitária, da vida pública. A palavra
idiota, em grego, refere-se justamente àquele que não se interessava
pelo público, tão apequenado estava por seus interesses pessoais que não
conseguia enxergar o cenário do público, do coletivo. Então, se a gente
não despartidariza as questões de ordem pública, não vai resgatar a
dimensão extraordinária que tem a política.
Talvez a atividade política seja a mais elevada e mais nobre que cada
um de nós pode ter. Porque nos erguemos acima de nossos interesses
pessoais e passamos a contemplar o que atende às necessidades de uma
parcela maior da população. É um ato de generosidade, quando você abre
mão de seu espaço para refletir sobre algo maior. A minha perspectiva é
despartidarizar questões de ordem pública, o que não quer dizer que os
partidos políticos não tenham que ser fortalecidos. São eles, no fim das
contas, que vão manter a roda da política em funcionamento. Mas os
interesses nacionais, os interesses coletivos têm que estar, muito
claramente, acima de qualquer tipo de partidarismo.
OP – Pensando no futuro, como você vê as novas gerações convivendo nesse planeta tão pequeno?
LD – Quando a gente se põe a pensar onde estamos, na
periferia de uma galáxia… Não somos o centro da galáxia, dentro dela é
tudo elíptico. Em nosso sistema o centro é o Sol, sem o qual não há
possibilidade de vida. Nosso sistema é periférico, não é central. E
nossa galáxia, dentro do universo, é uma dentre bilhões. Não sabemos se o
fenômeno vida, ou alguma coisa semelhante àquilo que chamamos vida,
existe em outra parte do universo. O que sabemos é que estamos na crosta
de um planeta cuja estabilidade depende de milhões de fatores, e que
estamos intervindo em alguns desses fatores, o que provoca alterações
que colocam em risco todo o fenômeno da vida.
O fenômeno vida tem três ou quatro bilhões de anos de existência.
Isso teria que criar em nós um senso de responsabilidade muito, muito
grande. O que possibilita a uma jabuticabeira saber que chegou o tempo
de dar fruto? Existe aí toda uma experiência acumulada. Você pode dizer
“mas ela não é consciente disso”. A jabuticabeira pode não ser
consciente disso, entretanto ela cumpre o seu papel no processo.
Aparentemente, somos os únicos que temos consciência de que temos
consciência. A espécie humana tem esse diferencial de saber que sabe ou
saber que ignora. Isso teria que aumentar o nosso senso de
responsabilidade, e não diminuí-lo.
Penso que as novas gerações hoje estão muito mais sensíveis a isso.
Você vê uma geração inteligente, capaz, talentosa, em marcha. Por
exemplo: está abrindo mão de ter carro para se deslocar na cidade de
bicicleta, ainda que esta cidade não ofereça facilidades para tanto.
Jovens que estão abrindo mão de ter cargos de liderança em
multinacionais porque querem trabalhar em instituições de cunho social,
ou ainda dedicar-se mais à família acompanhando a educação de seus
filhos. Jovens que deixam de fazer pós-graduações nas universidades
legitimadas pelo senso acadêmico e empresarial para ir a trabalhar em
uma comunidade de um país asiático, africano, latino-americano. Ou seja,
estamos vendo sinais muito evidentes de uma geração que já é muito mais
sensível a toda essa rede que eu chamo de as coisas importantes da
vida.
OP – Você imagina uma governança global?
LD – Você está vendo a dificuldade que têm as Nações
Unidas. A ONU é a arquitetura política mais interessante que tivemos no
século XX, e 50 anos não são nada para uma instituição criar seus
mecanismos. Mas não acredito na centralidade de um poder. Acredito muito
na pluralidade, no poder da diversidade adquirir competência para
manter vinculações sem perder sua identidade. Isso de homogeneizar, de
ter um discurso único, um repertório de valores únicos, não penso que
seja saudável para a humanidade.
Acredito que a humanidade tem que preservar essa capacidade
extraordinária de ter diversas representações e compreensões de mundo,
mas colocá-las para dialogar. Não para uma convencer a outra, não para
uma domesticar a outra, mas, pelo contrário, para se fecundarem
mutuamente. Para que cada uma possa potencializar na outra o que tem de
melhor. É a diversidade que nos vai permitir ampliar a percepção da
realidade. Se fico monocorde, em um único modelo de percepção,
simplesmente encurto a minha capacidade de enxergar a realidade. Mas se
acoplo cada um com sua característica e essencialidade, amplio a
percepção que posso ter da realidade, e isso é muito saudável.
O que não é saudável, hoje, é a insaciabilidade que parece ter o
homem contemporâneo: ele quer tudo, quer mais de tudo. Gosto muito
daquela frase de Confúcio: “nada é o bastante para quem considera pouco o
que é suficiente”. Há aí uma grande lucidez, da qual precisamos nos
nutrir e iluminar. A gente perdeu totalmente a noção: nada é suficiente,
a gente quer sempre mais, mais, mais e mais. Mas há um limite para o
que é saudável desejar. Não há como sentir mais, não há como comer mais.
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Reportagem por Inês Castilho, do Outras Palavras
Fonte: http://mercadoetico.terra.com.br/19/12/2012
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