por David Barsamian*
Vandana Shiva, ativista
ambiental, é diretora da Research Foundation for Science, Technology
and Ecology em Nova Déli, na Índia, e foi pioneira nas pesquisas sobre
biodiversidade e etnociência nativa. Shiva recebeu o Right Livelihood
Award, também conhecido como o Prêmio Nobel alternativo. É autora de Biopirataria (Vozes), Stolen Harvest (inédito em português) e Guerras por água (Radical Livros).
BARSAMIAN: Fale-me sobre seu último livro.
SHIVA: Guerras por água
é um resumo dos meus 25 anos de engajamento ecológico, em que vi cada
conflito ambiental iniciar a partir da devastação de nossos sistemas de
água por causa de um desenvolvimento perdulário e abusivo. Por exemplo,
grandes represas deixaram dezenas de milhares de pessoas inundadas.
Essas represas realmente não contribuem em nada para um desenvolvimento a
longo prazo nas áreas que recebem essa água. Existe a salinização. Há
as inundações. Sistemas agrários que utilizam cinco vezes mais água para
produzir a mesma quantidade de alimentos são ditos produtivos e
eficientes. O suposto milagre da Revolução Verde é um dos grandes
motivos do desaparecimento de nossos lençóis freáticos, bem como da água
utilizada na superfície terrestre em áreas que nunca deveriam ter
passado por irrigação intensa. A mudança de um sistema de irrigação
prudente, de uma agricultura que depende da chuva, de safras resistentes
à seca, de brotos nutritivos, tudo isso foi substituído pelas
monoculturas de trigo árido e variedades de arroz que arruinaram não
apenas os aqüíferos da Índia, mas também aqueles existentes em todo o
mundo. Além dessas, há novas ameaças vindas dos planos de privatização
daágua financiados pelo Banco Mundial. O Banco Mundial foi responsável
por desviar o uso da água na Índia para modelos não sustentáveis. E
agora está usando a crise da não-sustentabilidade para dizer que nem o
governo nem o povo deveriam tomar decisões sobre a questão daágua. O
domínio da água agora está se dirigindo, por meio de concessões e novas
providências chamadas parcerias públicas-privadas, para as mãos de
quatro ou cinco proprietários da água que gostariam de possuir a água de
todo este planeta, assim como os quatro ou cinco proprietários da vida
que tentam possuir as sementes deste planeta.
BARSAMIAN: Indo da
questão da água para a da comida — a biotecnologia foi aclamada por
gerar grandes benefícios para aqueles que têm fome no mundo. Você é uma
de suas principais críticas.
SHIVA: Entendo a
biotecnologia, pela minha experiência, olhando para a Revolução Verde.
Ela empobreceu agricultores a um nível em que, atualmente, eles estão se
suicidando. A biotecnologia está trabalhando precisamente na mesma
trajetória linear. O objetivo da Revolução Verde era vender mais
produtos químicos. O objetivo da biotecnologia também é vender mais
produtos químicos. É possível entender essa questão observando as duas
principais aplicações da tecnologia para a comercialização de safras. A
primeira são aquelas safras resistentes a enormes quantidades de
herbicida (Roundup) ou aquelas resistentes a herbicidas que podem
receber altas doses de produtos químicos e mesmo assim sobreviver. Essa é
uma estratégia para continuar a vender os herbicidas, e não para
reduzir o uso deles.
A segunda categoria mais importante de safras é chamada Bt, Bacillus thuringiensis.
Pega-se um gene produtor de toxina de uma bactéria chamada Bt para
utilizar nas safras; as plantas dessas safras vão produzindo essa toxina
em suas células continuamente. Supõe-se que esta seja uma alternativa
para o uso de pesticidas. Em minha opinião, ecologicamente, são plantas
produtoras de pesticida. Então você não está somente jogando pesticidas
na plantação de vez em quando, que é o que se faz com os pesticidas
normais, mas literalmente produzindo toxinas o tempo todo. E elas estão
indo dentro de nossa comida. Elas estão indo para a cadeia alimentar e
para a rede ecológica da vida. O mais importante é que a natureza é
inteligente. As espécies são inteligentes. As poucas espécies — uma ou
duas — contra as quais aqueles pesticidas deveriam agir, da família de
minhocas das pestes, desenvolveram resistência rápida. Agora estão tendo
uma toxina liberada todo o tempo. Elas sofrem mutações. Dentro de um ou
dois anos haverá uma evolução da resistência de todas as pestes que
você antes queria controlar. Isso significa que você agora tem de usar
superpesticidas para controlar essas pestes resistentes. Novamente digo
que esses não são sistemas de redução de uso de produtos químicos e
pesticidas.
Até o milagre de nos prover com safras nutritivas, safras que na verdade contêm doenças, é um mito. O arroz dourado (golden rice)
é um exemplo claro de uma maneira altamente ineficiente de fornecer
vitamina A aos pobres. O Banco Mundial, a Organização Mundial da Saúde e
a Organização para Alimentação e Agricultura estabeleceram que o único
caminho pelo qual a deficiência de vitaminas seria erradicada das
comunidades pobres seria ceder às mulheres uma diversidade de sementes
que são fonte de vitamina A. Essas diferentes sementes são milhares de
vezes mais ricas do que o arroz dourado jamais será. Aqueles organismos —
Banco Mundial, OMS, OAA — nem sequer começaram a avaliar o significado,
em termos ecológicos, caso tenhamos plantas produtoras de vacinas e o
que isso significaria em termos de riscos ao sistema alimentar. Se eles
não puderam manter o milho Starling, que não deveria ser comido por
humanos e era apenas destinado para a alimentação do gado, fora da
cadeia alimentar humana, o que eles farão com as plantas produtoras de
vacina que supostamente não podem ser ingeridas por humanos? Sabemos que
doses excessivas de qualquer vacina podem tornar-se uma fonte de
problemas mais do que uma solução ou uma cura.
BARSAMIAN: Sua
organização emitiu um relatório chamado “Sementes do suicídio: os custos
ecológicos e humanos da globalização”. Que tipos de descoberta vocês
fizeram?
SHIVA: Lembro-me
especificamente de que estávamos no inverno de 1997. Os primeiros
relatórios, minúsculos, de poucas linhas, iniciaram esclarecendo casos
de suicídio entre agricultores. Corremos imediatamente para as áreas
afetadas. Este caso em particular ocorreu em Andhra Pradesh, um dos
estados que, supostamente, é o mais integrado com a economia global. Por
que os agricultores começaram a contrair dívidas? Fomos capazes de
estabelecer, por meio de estudos muito detalhados, que foi por causa da
mudança da agricultura ecológica e da produção de matéria-prima
principal feita com insumos não adquiridos para colheitas pagas como a
de algodão, que alcançou 99 por cento dessas regiões desde que a
globalização começou a mudar nossa agricultura. Novas sementes e
sementes híbridas não podem ser mantidas por agricultores e as empresas
não lhes dizem que essas sementes não são renováveis. As sementes
híbridas são muito predispostas a pestes e, portanto, os agricultores
precisam dos pesticidas. Os agricultores não têm dinheiro.
As mesmas empresas, por meio de seus
agentes no local, no nível da população, que são também os agiotas e
senhorios da região, acabam fornecendo o crédito a juros muito altos a
fim de movimentar suas sementes e seus produtos químicos. Em um ou dois
anos, os agricultores acabam contraindo centenas de milhares de rúpias
de dívidas.
Normalmente, na agricultura tradicional
praticada pelas sociedades do Terceiro Mundo, o ato de plantar faz parte
de uma decisão coletiva. As pessoas chegam à conclusão de que o tempo
será de tal maneira, a chuva será de tal modo, a safra será boa, essa é a
quantidade de água que temos. Vamos plantar assim. O novo sistema
desvia o agricultor de seu papel como membro de uma comunidade e
produtor para ser um consumidor de insumos adquiridos, tais como
sementes e produtos químicos. Sem dizer nada a ninguém, os homens farão
um empréstimo. Nem mesmo suas famílias saberão disso. O homem não tem
coragem de chegar em casa e dizer “Fiz 200.000 rúpias de dívida”. No
último ano, houve um caso em que um homem não podia pagar sua dívida, e o
agiota, o agente local das multinacionais, disse “Não se preocupe. Dê
para mim sua mulher”. O homem não conseguiu tolerar aquela violência
cometida contra si e sua esposa e bebeu o mesmo pesticida que estava
usando e o que o levara a contrair aquela dívida.
Cada povoado que visitei no estado de
Punjab apresentava casos de suicídio. O uso de pesticida cresceu 2.000
por cento na década passada. As sementes híbridas são muito
dispendiosas. Elas são anunciadas e promovidas dos modos mais
antiéticos. Parte do que a globalização fez foi remover quaisquer
regulamentos do setor de sementes. A globalização é a desregulação do
comércio. As empresas podem vender o que quiserem, em seus próprios
termos, sem ninguém para controlar. Nós as chamamos de “sementes do
suicídio” porque tudo está começando com as sementes. Mas também temos
um programa chamado Sementes da Esperança em que estamos colocando
variedades polinizadas nas mãos dos agricultores, especialmente em
Punjab. O entusiasmo é surpreendente.
BARSAMIAN: No início da
década de 1990 o governo indiano aderiu à globalização. Há um incidente
que você relata, de quando o representante comercial dos EUA visitou a
Índia e pressionou bastante o governo.
SHIVA: O governo da
Índia não abraçou a globalização de maneira voluntária. Em 1991, o Banco
Mundial disse basicamente “Vocês tem de se ajustar estruturalmente”.
Durante esse período, tínhamos um movimento muito intenso começado em
1988, quando os EUA mudaram suas leis de comércio e os representantes
comerciais ganharam mais poder. Além disso, novas áreas foram trazidas
para o Ato de Comércio dos EUA (US Trade Act). Foram adicionadas duas
cláusulas. Uma é chamada Special 301. A outra, Super 301. Essas
cláusulas basicamente permitiram que o representante comercial dos EUA
criasse uma ação comercial unilateral contra qualquer país que não
respeitasse as leis dos EUA. Supõe-se que os indianos deveriam respeitar
as leis da Índia. Mas de repente fomos obrigados a respeitar as leis
dos EUA.
Durante a resistência contra essas
cláusulas 301, Carla Hills, a representante comercial dos EUA,
visitou-nos em 1991 ou 1992. Ela anunciou que os EUA iriam abrir a
economia indiana para as empresas norte-americanas por meio de ação
judicial. Isso, é claro, alarmou todo o país. As pessoas não podiam
aceitar que um representante comercial de outro país pudesse decidir que
a economia de nosso país não era para ele próprio, mas para as empresas
dos EUA. Os agricultores usaram essa questão para derrubar a fábrica da
Cargill em 1992. Quando iniciaram a ação, eles disseram “Vocês falaram
que iriam derrubar nossa economia judicialmente. Nós vamos derrubar suas
multinacionais judicialmente”.
BARSAMIAN: Você foi fundamental ao trazer a cultura do nim para a atenção das pessoas.
SHIVA: O nim dá em
qualquer quintal da Índia. Cresce também em todos os ecossistemas do
país. Foi tradicionalmente chamado de árvore do milagre, assim como pela
ciência moderna. Seus galhos são utilizados como escovas de dentes.
Suas folhas muito tenras podem ser comidas. É purificadora do sangue, um
fungicida absolutamente extraordinário. Nós a usamos para curar doenças
da pele. Quando você faz uma massagem com óleo de nim, os mosquitos não
conseguem mordê-lo. Foi uma cura para a malária. Além disso, quando
você tem nins plantados, os mosquitos não ficam por perto. É um
tratamento não violento para o controle de pragas. Ele não mata as
pragas, apenas as dopa por algum tempo para que não se reproduzam tão
rápido. Utilizamos essa árvore por séculos.
Iniciei uma campanha na Índia chamada
Chega de Bhopals, Plante um Nim. A idéia veio do desastre de Bhopal,
provocado pela fábrica de pesticidas da Union Carbide, que matou 3.000
pessoas. Como estava envolvida com a agricultura ecológica por bastante
tempo, pensei que o nim devesse ser uma boa alternativa aos pesticidas
químicos. Uma década depois fizemos essa campanha, espalhando o nim
entre os agricultores, muito mais do que a prática convencional, pois
seu uso tradicional foi esquecido por causa da atitude de querer fazer
tudo rápido e de maneira fácil para resolver um problema.
Por que temos de perder nosso tempo fazendo extrações, extraindo óleo? Temos aqui um spray.
É só borrifar. Por causa desse atalho, eu a chamo de tecnologia
negligente e preguiçosa, os agricultores haviam parado de usar o nim em
grandes áreas. Estávamos comprando máquinas extratoras de óleo de nim.
Em 1994 encontrei em um periódico sobre biotecnologia uma reivindicação
de invenção do uso do nim como pesticida e fungicida. Então entramos com
um processo. Iniciamos uma campanha e coletamos assinaturas. Fomos para
a Corte Européia e até mesmo para o U.S. Patent Office, órgão
responsável por patentes nos EUA. Eles disseram que não podíamos
realmente contestar uma reivindicação porque não estava sendo
estabelecido um prejuízo comercial. Se tivéssemos um prejuízo público,
um prejuízo ao interesse público, não seria o suficiente. Mas o recurso
europeu foi aceito. Fizemos essa contestação em conjunto com a Federação
Internacional dos Movimentos de Agricultura Orgânica e o Partido Verde
na Europa. Vencemos esse caso. Foi uma vitória muito importante. Usaram
os dados relacionados ao nosso uso do nim, inclusive de cientistas que
trabalharam com essa árvore nos últimos 40 anos. Fomos capazes de
estabelecer que as reivindicações de W. R. Grace, que possuía essa
patente, no Departamento de Agricultura dos EUA, eram falsas. Eles não
haviam feito nada de novo. Estavam apenas pegando um conhecimento já
existente e o colocando em forma de uma aplicação de patente muito
complicada.
BARSAMIAN: Você faz uma conexão entre a criação da pobreza, o monopólio e as patentes.
SHIVA: Basicamente, uma
patente é um direito de impedir quem quer que seja de produzir, vender e
distribuir o que foi patenteado. Muito claramente, esse direito de
excluir estabelece um monopólio no mercado. Caso a patente de Grace
sobre o uso do nim como pesticida não fosse contestada, ele emergiria
como o único fornecedor de nim como pesticida nos mercados mundiais.
Eles ainda estão nos EUA. É claro, agora eles foram comprados por outra
empresa. Mas hoje, na Índia, como não temos regimes similares de
patentes, cada agricultor pode produzir seus pesticidas.
Qualquer empresa, por menor que seja,
pode produzir pesticidas. E esse pluralismo econômico é bom. No entanto
uma patente fornece um direito legal de acabar com o que as outras
pessoas estão produzindo, vendendo, comprando. As patentes de sementes,
que agora são muito comuns na América do Norte, permitem que uma empresa
como a Monsanto utilize detetives que vão à casa do agricultor ou ao
campo onde ele trabalha e achem nãoapenas as sementes, mas até mesmo
sinais de que as sementes poderiam ser provenientes de polinização.
O que isso tem a ver com o nim, o
tamarindo e a pimenta, que foram patenteados e estão sob controle
corporativo? Isso significa que mais cedo ou mais tarde eles podem
invocar esse direito legal para excluir os outros do mercado ou para
impedi-los de produzir suas próprias coisas. Já existem muitos
julgamentos sobre questões de patentes em que as corporações dizem “Não
importa se você está produzindo suas próprias sementes, mesmo que sejam
para seu próprio consumo e não as esteja vendendo comercialmente. O que
você está fazendo está prejudicando o mercado comercial da companhia,
que poderia estar vendendo-as para você caso você mesmo não as estivesse
produzindo”. Portanto, eles interpretam mesmo uma atividade de
subsistência como uma atividade comercial.
BARSAMIAN: Cada vez mais, em suas declarações, você tem utilizado a terminologia da violência e da guerra.
SHIVA: A questão da
violência é importante porque todo o paradigma da tecnologia como tem
emergido e o paradigma econômico da globalização estão baseados na
guerra. Você começa a desenvolver geneticamente uma semente. Onde isso
começa? Com armas genéticas. Você produz organismos geneticamente
manipulados matando genes com uma arma genética. Toda a linguagem da
engenharia genética é uma linguagem de guerra. A Cargill utiliza a
linguagem da guerra para falar sobre como impedir que as abelhas se
apoderem do pólen. É uma guerra contra os polinizadores.
A Monsanto usa a linguagem de criação de
safras resistentes a herbicidas para prevenir ervas daninhas, que em
nossa visão significam diversidade e biodiversidade essenciais à nossa
saúde, ao nosso alimento, a fontes de vitamina A; eles chamam isso de
“roubar a luz do sol”. É uma guerra contra as ervas daninhas. É uma
guerra pela luz do sol, a qual nunca foi restrita, pois é fornecida em
quantidades abundantes. Todo o regime da OMC é baseado em um único
conceito de guerras comerciais, fazendo com que o comércio, que sempre
foi um acordo cooperativo e mútuo de compra e venda do que você
realmente precisa, se torne um acordo coercitivo, ser forçado a comprar
algo de que você não precisa e ser forçado a vender o que você deveria
usar domesticamente. A Índia está sendo forçada a vender milhões de
toneladas de grãos.
Acordos globalizados estão impedindo a
Índia de fornecer comida aos povos que realmente precisam dela. Os
famintos estão morrendo. Os agricultores estão cometendo suicídio. As
Cargills do mundo ganham subsídios do Estado porque isso é permitido no
sistema globalizado. Muito mais importante do que isso, um sistema de
tecnologia e economia que torna grandes números de pessoas dispensáveis e
comete tal violência contra a Terra e suas espécies merece ter uma
resposta. Os britânicos tiveram uma resposta. Durante a luta pela
independência, tivemos movimentos de camponeses. Quando os britânicos
tentaram nos forçar a aceitar uma lei que tornaria a produção de sal um
monopólio, Gandhi e seus seguidores foram para a praia de Dandi e
produziram sal. Eles disseram “Não, nós não vamos obedecer às suas leis.
Faremos nossas próprias leis”.
Teremos uma reação. Conforme a reação
chega, vimos isso em Seattle, Praga, Gothenburg e outros locais, os
sistemas que decidiram que o planeta é sua propriedade e monopólio e que
o mundo inteiro vive para seu modelo de comércio têm forçado estados
que não são militarizados, como a Suécia e a Suíça, a criar novas leis
em que a ação cívica está sendo redefinida como terrorismo. É um sistema
que cria violência. Ele cria uma guerra por parte daqueles que
decidiram que eles devem se apropriar e roubar como um direito. Está
desencadeando uma reação violenta porque as respostas democráticas não
estão sendo ouvidas.
BARSAMIAN: O Partido
Bharatiya Janata (PBJ) é o partido que governa a Índia com raízes na
doutrina fundamentalista hindu. A ascensão do PBJ está conectada com a
globalização?
SHIVA: Antes de a
globalização chegar à Índia, o PBJ tinha exatamente duas cadeiras no
Parlamento indiano. Conforme a globalização começou a destruir mais
meios de subsistência, destruir o setor de pequena escala, destruir o
setor agrícola, o PBJ, como qualquer outro partido fundamentalista de
direita, pôde jogar com a insegurança das pessoas. Isso é o que acontece
quando a democracia eleitoral é esvaziada da democracia econômica. Os
países perdem a capacidade de tomar decisões econômicas para beneficiar
seu povo. As eleições não podem mais ser disputadas em cima de como você
fornece saúde, educação e empregos. Começam a ser disputadas sobre como
você consegue mobilizar o ódio e o medo contra outra comunidade de uma
outra religião ou raça ou que fale uma língua diferente. A globalização,
ao tomar decisões econômicas sem levar em consideração as comunidades e
os países, deixa nas mãos dos fundamentalistas um enorme banco de votos
que eles podem explorar.
BARSAMIAN: Você vê a possibilidade de uma aliança entre formações de direita, como o PBJ e seus sósias nos EUA?
SHIVA: Isso já
aconteceu. Quando o presidente Bush anunciou seu programa de mísseis, o
único país que realmente acolheu a idéia foi a Índia. A Índia de Buda, a
Índia de Gandhi, até mesmo a Índia de Nehru, foi subitamente se
aliando, no momento errado na história, às piores forças imperialistas
militarizadas do mundo.
BARSAMIAN: Em maio de
1998, o governo indiano detonou armas nucleares, levando um mês depois a
explosões similares no Paquistão. O que a nuclearização de um
subcontinente tem a ver com a globalização?
SHIVA: A nuclearização
de um subcontinente provê um senso de grandiosidade em um período em que
as pessoas estão tendo uma profunda sensação de perda. Uma explosão
nuclear foi usada como uma mostra substituta de poder masculino.
Interessantemente, quando a Índia chamou sua bomba de “bomba hindu” e os
paquistaneses chamaram sua bomba de “bomba islâmica”, elas eram as
mesmas bombas. Um motivo pelo qual lancei Mulheres pela Diversidade, que
é um movimento global de mulheres pela diversidade e pela paz, foi
porque senti que estávamos nos acostumando com o estranho fenômeno dos
homens no poder usando bombas como seus pequenos joguetes para mostrar
que “Eu sou o mais esperto”, “Eu sou o mais forte”, “Eu sou o gênio
científico”. Mas isso são totalmente monoculturas da mente.
BARSAMIAN: Você disse
que os armazéns da Índia estão cheios, mas ao mesmo tempo houve um
aumento da fome e incidentes com aqueles que têm fome. Parece
contraditório. Armazéns cheios, pessoas famintas.
SHIVA: Começando com a
globalização e com as pressões pela liberalização do comércio, a Índia
foi impedida de permitir que os alimentos chegassem ao seu povo. Os
gastos do governo com a movimentação e o transporte de grãos pelo país,
das áreas que produzem muito para as que não produzem tanto, foram
tratados como um subsídio que precisava acabar. Infelizmente, como
resultado disso, os gastos do governo diminuíram porque o Banco Mundial
alterou o direito universal de ter acesso a alimentos em um esquema de
estabelecimento de alvos. Estabelecer alvos é uma estratégia aficionada
do Banco Mundial, dizendo que o esquema universal subsidiava os ricos.
Você não deve subsidiar os ricos. Então vamos até aqueles pobres,
realmente pobres. Isso fez aumentar o preço da comida a ponto de as
pessoas não poderem pagar por ela. Como elas não compram comida, o
chamado off-take, que significa ter de comprar dos armazéns,
diminui e a movimentação dos grãos pára. A armazenagem de 60 milhões de
toneladas é o resultado de pessoas comprando menos. Mais e mais pessoas
estão passando fome. Previmos isso quatro anos atrás.
BARSAMIAN: Às vezes você é descrita como “ecofeminista”.
SHIVA: Nunca me senti
muito bem com rótulos. O ecofeminismo mistura as coisas. É muito
elegante, do meu ponto de vista. Ele deixa de lado muitos outros
aspectos da minha pessoa e do que eu faço. Deixa de lado a parte do
legado de casta lutadora dos meus pais. Meu nome, Shiva, foi dado por
meus pais para apagar sua identidade de casta. Hoje, onde quer que eu
ache discriminação por casta, eu vou lutar contra ela. Em nossa
organização, nós nos certificamos de que temos mulçumanos, hindus e
cristãos trabalhando juntos, não permitindo que quaisquer
inflexibilidades mutilem nosso potencial como grupo. Mas, em um certo
nível, realmente não me importo com o rótulo do ecofeminismo porque acho
que a combinação do feminismo com a ecologia cria dois potenciais. Em
primeiro lugar, vi o feminismo que não é ecológico tornar-se um novo
opressor. Vi o ambientalismo que não é feminista o bastante também se
tornar um novo elitismo. O ecofeminismo previne essas duas novas formas
de elitismo ao dizer “Não, o ecofeminismo trata da sociedade e da
natureza. É sobre outros modos de pensar”. Não é possível ter apenas
algumas mulheres no poder. Carla Hills e Madeleine Albright não
simbolizam uma nova igualdade para as mulheres.
Veja a privatização da água nos EUA.
Está sendo conduzida por grupos ambientalistas, só porque eles não
pensam na sociedade. Eles pensam em uma espécie e dizem “OK, se puderem
comprar a água daquele rio e salvar as espécies desta garganta em
particular, por mim podem comprar que está tudo bem”. Eles não percebem
como, nesse processo, estão criando todo um acordo político e social em
torno de recursos naturais que será abusivo a milhões de outras espécies
e, é claro, a milhões de nossos irmãos e irmãs neste planeta. Assim, o
ecofeminismo, por estar intrinsecamente ligado à justiça social e aos
limites ecológicos, é um bom termômetro para os tipos de problemas que
vemos com o feminismo em voga e com o ambientalismo em voga.
BARSAMIAN: Onde estão as brechas em que os ativistas possam entrar e deixar marcas mais profundas?
SHIVA: A militarização é
uma posição fraca. Geralmente a militarização é vista como uma força
poderosa. Mas acredito que qualquer tipo de poder violento é fraco em
última análise. Estou dizendo literalmente que, em termos de como eu
pessoalmente experimento a vida, ela é a forma mais brutal de violência
contra alguém como pessoa ou como comunidade e, assim, é sempre o jeito
mais fácil de ser enfrentada porque acaba sendo extremamente rígida e
perde sua flexibilidade, seu poder moral, sua base democrática. Essa é
sua fraqueza. O segundo ponto fraco é estar tão distante da realidade
que as projeções para o futuro de quanto comércio, crescimento e riqueza
haverá são completamente erradas. Há mais doenças, mais fome, mais
desemprego e essa realidade vivida é um barômetro que as pessoas têm em
suas vidas. Quanto mais o sistema dominante imprime falsidade à sua fala
e a experiência real das pessoas acontece de maneira diferente, a
fraqueza do sistema de dominação irá aumentar.
BARSAMIAN: Você também falou da necessidade de recuperar as propriedades públicas. Explique o que você quer dizer com isso.
As propriedades públicas são os espaços
que precisamos manter como sistemas compartilhados, como sistemas de
responsabilidade comum (pública) e direitos comuns (públicos) para fazer
com que a vida se torne possível. Ecologicamente, sempre precisamos da
água. Precisamos da biodiversidade. Os camponeses precisam de pastos. Os
povos do Terceiro Mundo precisam de florestas e madeira para delas
retirar matéria-prima e combustível. Esses são os sistemas que foram as
propriedades públicas em termos de recursos naturais. Muito claramente,
cada uma dessas propriedades públicas está sendo contida.
Minha luta contra o patenteamento e a
engenharia genética é uma luta contra a extinção das propriedades
públicas intelectuais e biológicas que são a base da sobrevivência da
grande maioria dos povos do mundo. São também a base da diversidade e da
riqueza cultural. A água está sendo contida por meio da privatização, e
ela é uma propriedade pública. A atmosfera é uma propriedade pública
que foi privatizada pela poluição dos combustíveis fósseis e pelas
empresas produtoras de petróleo. Eles estão tomando para si o que não
lhes pertence, e o usando como seu esgoto particular. Estão
desestabilizando o clima para todos nós.
Precisamos recuperar tudo isso como
propriedades públicas sobre as quais temos controle coletivo. Estocar
sementes é uma recuperação das propriedades públicas. Manter o
conhecimento fora do domínio privatizado, o conhecimento de como usar o
nim, o tamarindo, a pimenta e o arroz basmati é uma luta pela
propriedade pública. A água é uma propriedade pública. A Coca-Cola
possui um lago em Maharashtra. E ela está impedindo que as tribos, a
cujo lago pertence, tenham acesso a ele para ter água potável.
BARSAMIAN: A Coca-Cola possui um lago em Maharashtra?
SHIVA: As pessoas que
vivem nas aldeias estão sendo impedidas de ter acesso à água nesse lago
porque a Coca-Cola adquiriu os direitos exclusivos dele para construir
uma fábrica de engarrafamento. Outro fato extraordinário que está
acontecendo em Maharashtra é a privatização do setor de energia. A
Enron, a gigante da energia localizada em Houston e também um dos
maiores contribuintes de George W. Bush, tomou conta do setor energético
no local.
A Enron é um bom exemplo de
globalização. Ela foi rejeitada pelo povo e pelo governo de Maharashtra.
Também foi recusada pelo ministro do Meio Ambiente em nível federal por
ter efeitos ecológicos devastadores no litoral em que a fábrica em
Dabhol se instalaria. Tudo foi feito para que o projeto fosse impedido.
Conforme havíamos previsto, o preço da
eletricidade subiu seis vezes mais. As pessoas não podiam pagar por ela.
Mas o contrato dizia que o governo, que estava proibido de produzir
eletricidade, ainda tinha de comprá-la toda da Enron, não importava quão
alto fosse o preço. A Enron tinha um mercado garantido. Esses tipos de
garantia são alguns dos sistemas mais abusivos que estão sendo
implantados, parcialmente por meio de pressão do Banco Mundial. Mas
Maharashtra disse“Desculpe-nos, não temos o dinheiro. Não vamos
pagá-los”. Há um enorme conflito prestes a acontecer. Os tribunais estão
ouvindo o caso. As pessoas estão protestando.
BARSAMIAN: O que lhe dá esperanças?
SHIVA: Uma parte da
esperança vem do fato de que os caminhos que foram traçados por essas
monoculturas da mente monopolizadoras são tão não sustentáveis que algo
terá de acontecer. O sistema irá quebrar. Quando você industrializa e
planta muito, há surtos de doenças. As pessoas irão querer alimentos
orgânicos, locais, como uma forma de fornecimento seguro. As
alternativas são construídas na própria lógica do sistema porque este
foi designado para falhar e irá conduzir a uma catástrofe ambiental.
O segundo motivo pelo qual eu tenho
esperança é o trabalho que estamos fazendo. Começamos com passos
pequenos. Dizemos “OK, existem suicídios de agricultores. Vamos dar dez
quintais (1.000 quilos) de trigo para os agricultores de Punjab”. Eles
não ficam satisfeitos com dez. Eles querem cem. Voltamos correndo e
multiplicamos as sementes novamente. Onde quer que haja iniciativas para
construir sistemas democráticos, justos e sustentáveis, eles estarão se
espalhando rapidamente.
As pessoas querem um outro mundo, e elas
estão construindo esse outro mundo. O amor das pessoas pela liberdade é
mais poderoso que qualquer autoridade coercitiva. Esse amor pela
liberdade é mais poderoso que o amor dos dominadores que estão tentando
controlar o planeta.
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* David Barsamian é autor de vários livros, o último deles intitulado Cultura e resistência
(Ediouro). Para obter cópias em fita cassete deste ou de outros
programas, entre em contato: Alternative Radio, PO Box 551, Boulder, CO
80306; 800-444-1977, EUA.
Tradução: Danielle Sales
Revisão: Daniela Alvares
Fonte: http://www.radicallivros.com.br/livros/monoculturas-da-mente-uma-entrevista-com-vandana-shiva/
Imagem da Internet
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