Drauzio Varella*
A complexidade da vida adulta desvia nossa atenção e nos impede de reconhecer a felicidade que está perto
Feliz Natal e próspero Ano-Novo, dizem as mensagens de fim de ano.
Recebi mais de 50 com dizeres semelhantes, algumas carregadas de
reflexões filosófico-literárias; outras, insuportavelmente poéticas.
Como a palavra próspero é sem graça e de significado incerto -por sorte
empregada apenas nesta época do ano-, vou me concentrar nos desejos
mútuos de felicidade natalina que pontuam as relações sociais a partir
da segunda quinzena de dezembro.
A felicidade não é um estado de espírito ao alcance da mão, é ave de voo
ágil que nos visita quando bem entende. É arrebatadora, porém
voluntariosa e fugidia. À menor distração, ao admirar-lhe a beleza da
plumagem, bate asas para sítios distantes, deixando a nostalgia em seu
lugar.
Felicidade que chega com tudo, disposta a passar dias inteiros em nossa
companhia, é privilégio exclusivo da infância. Só nessa fase da vida
conseguimos acordar e ir para cama tomados por uma alegria sem fim.
Anos atrás, escrevi um livro infantil sobre esse tema: "De Braços para o
Alto". Nele, descrevi as férias numa fazenda, aos sete anos, em
companhia de oito primos quase da mesma idade.
Nascido num bairro cinzento, em que as sirenes das fábricas ditavam a
rotina das ruas, de um dia para outro fui transportado para o mundo dos
campos a perder de vista, dos passarinhos, cavalos, florestas, rios e
cachoeiras, gado no pasto e futebol no gramado em frente à sede da
fazenda, todo fim de tarde.
Acordávamos com os primeiros raios de sol, já excitados para planejar as
atividades do dia, enquanto as tias serviam o café da manhã.
Depois, encilhávamos os cavalos, montávamos e saíamos enfileirados como
nos filmes de faroeste. Pelados, mergulhávamos nos rios, nadávamos na
lagoa e sentíamos o impacto da água fria que despencava entre as
samambaias da cachoeira, na sombra da mata. À noite, sob a luz do
lampião, líamos gibis e escutávamos a conversa dos adultos em volta do
fogão à lenha e as histórias de terror que o tio José contava.
Dormíamos num quarto enorme, com colchões espalhados pelo chão. Quando
todos se calavam, eu resistia ao sono, para pensar nas aventuras que me
aguardavam no dia seguinte. Em minha lembrança, foi a primeira vez que
convivi com a felicidade plena, persistente e duradoura, substituída por
uma tristeza dolorida que me fez chorar quando as férias terminaram.
Na vida adulta, a felicidade é caprichosa como a mulher mais desejada.
Inútil aguardar que venha a nós, é preciso persegui-la com afinco e
estar atento para não deixá-la passar despercebida no meio das
atribulações cotidianas, porque o menor descuido é capaz de afugentá-la
por tempo indeterminado. Ela é inimiga dos afoitos que a cortejam com
intenções imediatas; para entregar-se, exige dedicação extrema,
sabedoria, desprendimento, perspicácia e, sobretudo, paciência.
A diferença fundamental entre a felicidade da criança e aquela do adulto
não está na intensidade da sensação de prazer que toma conta da alma,
exalta as cores do mundo e faz a vida pulsar forte, exuberante, mas na
duração desse estado. Os momentos felizes dos adultos duram menos porque
são interrompidos pelas preocupações com a lida diária, por pensamentos
negativos resultantes dos desencontros das relações humanas e pelo medo
causado por experiências traumáticas.
A complexidade da vida adulta desvia nossa atenção e nos impede de
reconhecer a felicidade que está por perto, limitação que a transforma
em bem transcendental, sempre distante, dependente de acontecimentos
grandiosos e improváveis que sequer conseguimos definir quais seriam.
É essa incapacidade de lidar com o presente que nos faz colocá-la num
ponto futuro ou relegá-la ao passado remoto. Costumo duvidar das
recordações de momentos idílicos vividos anteriormente; na maioria das
vezes, não passam de armadilhas da memória, faculdade da mente
especializada em editar fatos passados para retirar deles o conteúdo
nefasto.
Passar a vida a lamentar a felicidade perdida é apanágio de velhos chatos, fadados a terminar seus dias na solidão.
Depois dessas considerações tão filosófico-literárias quanto os postais
de boas-festas mais bregas que recebi, caríssimo leitor, só me resta
agradecer a atenção e desejar-lhe feliz Ano-Novo.
-----------------
* Médico oncologista. Escritor.
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrada/86098-fim-de-ano-feliz.shtml
Imagem da Internet
Nenhum comentário:
Postar um comentário