Eugênio Bucci*
Neste final de ano, a batalha espetacular sobre a
regulação de mídia na Argentina ganhou cores intensas, contrastadas, com
idas e vindas eloquentes, rodopios graves e pausas dramáticas, como se a
vida fosse, com o perdão da metáfora clamorosamente óbvia, um tango de
vida ou morte. De um lado da dança - que no fundo é um duelo fatal -,
bate os pés o Grupo Clarín, que controla a enormidade de duas (há quem
fale em três) centenas de concessões de rádio e televisão. Na outra
ponta, a Casa Rosada ergue o salto pontiagudo e acusa o oponente de
difundir mentiras. A contenda ritmada se acirra, enquanto sobem o
suspense e o volume do bandônion.
Numa saga sem tréguas, que agora alcança as trincheiras do
Judiciário, o governo pretende fazer valer a lei sancionada em 2009,
obrigando o Clarín a se desfazer de suas concessões (ou licenças), num
fim trágico. Em guerra aberta, Cristina Kirchner tem um argumento a seu
favor, um argumento de grande apelo, tanto que angariou a adesão de
Frank La Rue, relator de Liberdade de Opinião e Expressão das Nações
Unidas. O relator foi cauteloso, é verdade. Teve a prudência de criticar
o que chamou de intimidação das autoridades argentinas contra o Clarín,
mas, ao mesmo tempo, apoiou os termos gerais da lei de 2009, cuja
finalidade declarada é combater o monopólio privado dos meios de
comunicação.
Nesse ponto, Frank La Rue não está sozinho. Dos Estados Unidos à
França, da Alemanha ao Reino Unido, as legislações que regulam a mídia -
em especial a radiodifusão, ou seja, as emissoras de rádio e TV - têm
em comum o objetivo de impedir a formação de monopólios e oligopólios.
Os parâmetros legais antimonopolistas são aceitos pelas diversas
correntes políticas do mundo democrático, da esquerda à direita, pois
está mais do que provado que eles protegem a concorrência comercial, a
livre-iniciativa e a pluralidade de vozes numa sociedade que se pretende
livre. Até aí, portanto, estamos todos de acordo. O Grupo Clarín,
quando analisado sob o prisma de qualquer dos marcos regulatórios
democráticos em vigência na América do Norte ou na Europa, cairia na
tipificação de concentração de mercado (vertical ou horizontal), de
propriedade cruzada e de outros sintomas que indicam a possível prática
de monopólio. Não há muita controvérsia quanto a isso. É praticamente
consenso que o mercado da mídia na Argentina precisa de um marco
regulatório mais moderno e mais aberto.
O governo argentino soube tirar proveito desse déficit. No mais, fez
tudo errado. A começar do começo. Os veículos do Grupo Clarín gozavam
uma vida confortável sob a dinastia Kirchner até que começaram a
publicar informações e opiniões que irritaram a Casa Rosada. A reação
foi dura, impiedosa. A Ley de Servicios de Comunicación Audiovisual veio
à tona num contexto de enfrentamentos polarizados, dando a entender que
a motivação nuclear do novo marco legal não é regular de modo
desinteressado as relações de mercado, mas punir uma empresa
jornalística por ter sido crítica. Isso conturba e vicia o processo,
mina inteiramente sua credibilidade. Fica no ar a impressão de que, se
seguisse falando bem dos governantes, qualquer monopólio seria festejado
pela presidência da República - e de que a lei de 2009 não nasceu para
atender a razões de Estado, mas a caprichos partidários de um governo, o
que reforça a sensação de incerteza jurídica.
Uma leitura um pouco mais detida dos artigos da Ley de Servicios de
Comunicación Audiovisual levanta pontos preocupantes. Um desses pontos é
a autorização, dada às emissoras estatais, de vender publicidade. Para
que o leitor entenda, lembremos que o legislador argentino estruturou o
sistema de comunicação audiovisual em três regimes distintos: o primeiro
seria o das emissoras comerciais, aquelas que têm fins de lucro; o
segundo, das emissoras sem finalidades de lucro, controladas por entes
não governamentais, seria o regime das rádios e televisões públicas; e o
terceiro seria o das emissoras estatais. O primeiro dependerá da venda
publicidade para se financiar, evidentemente. Os outros dois contarão
com apoios financeiros de natureza pública ou estatal, o que também é
evidente. Problema: se um destes dois puder vender publicidade e ao
mesmo tempo receber dinheiro público, fará concorrência desleal às
emissoras privadas, já que poderá oferecer seus intervalos comerciais a
preços menores, subsidiados. Pois o artigo 136 autoriza a Rádio y
Televisión Argentina Sociedad del Estado a captar recursos de
publicidade (alínea c), ameaçando entrar no mercado das emissoras
comerciais.
Outro ponto de preocupação vem da presença cada vez mais proeminente
do governo argentino no mercado anunciante. Como compradora de espaços
publicitários, a Casa Rosada poderia, em tese, pressionar emissoras
comerciais a adotar uma linha editorial simpática às autoridades. Não se
trata de mero detalhe. A combinação entre um mercado de mídia
fortemente regulado e um governo que gasta os tubos em publicidade
comercial é catastrófica - para a democracia, bem entendido, não
necessariamente para o governo. A explicação é simples: sobre o sistema
estatal o governo teria acesso funcional, ainda que indireto; sobre o
sistema dito público (o das emissoras controladas por entidades não
governamentais, sem fins de lucro) o partido do governo poderia ter
influência política, pela cooptação ideológica ou mesmo fisiológica;
finalmente, sobre o sistema comercial o governo contaria com as verbas
publicitárias para exercer pressão.
Se essa tendência (pessimista) se confirmar, o monopólio privado na
Argentina seria substituído por um monopólio governamental subterrâneo, o
que costuma ser ainda pior. O ano-novo em Buenos Aires vai se
aproximando num horizonte sombrio, enfumaçado, incerto. Seus efeitos
sobre o Brasil são mais incertos ainda.
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* JORNALISTA, É PROFESSOR DA ECA-USP E DA ESPM
* JORNALISTA, É PROFESSOR DA ECA-USP E DA ESPM
Fonte: http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,reveillon-em--buenos-aires-,978000,0.htm
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