José de Souza Martins*
"A bença, mãe! A bença, pai! A bença, vó!" E ia por aí a
ladainha de saudação das crianças aos mais velhos no meu tempo de
menino. Mesmo os adultos pediam a bênção aos pais, avós, padrinhos e
madrinhas, que com sorridente alegria abençoavam os descendentes carnais
e simbólicos. O pedido de bênção era o mais significativo ato litúrgico
do que, então, apropriadamente, se chamava de laços de família. Já
septuagenário, eu pedia a bênção à última pessoa de minha família a ter
direito a esse tributo ritual: minha tia Sebastiana, quase centenária,
quando a visitava no Pinhá, lá para os lados de Socorro. E isso fazia um
bem enorme a ela e a mim. Dava-lhe, e dava-me, a certeza de que o
abismo do tempo que nos separava - ela, quase do tempo da escravidão e
do trabalho do eito, e eu, do tempo do computador - continuávamos unidos
pelo mesmo afeto de quando eu era criança.
Para mim foi um susto quando, já bem adulto, pedi a bênção ao
abençoado dom Antonio Fragoso, que mais de uma vez me acolheu em sua
hospitaleira casa de Crateús, no Ceará, e ele, sorrindo, disse-me que eu
já não precisava disso. "Que é isso, dom Fragoso? Se alguém precisa de
bênção, sou eu!"
O costume da bênção parental se foi pelo ralo da secularização e da
modernidade, nesta sociedade de seres tão cheios de certezas e de
seguranças e tão inseguros em relação a tudo. As crianças já nascem na
moldura educativa do super-homem. Num certo sentido, condenadas à
privação da poesia que há nos prosaicos gestos rituais que em outros
tempos diziam aos imaturos que estavam sob o abrigo do manto diáfano e
invisível, mas eficaz, do acalanto de mãos protetoras estendidas sobre a
cabeça.
A bênção entre nós é antiga e sagrada. Sua forma ritual varia segundo
a região. No subúrbio, eu pedia a bênção a quem devia esse gesto de
respeito, beijando-lhe a mão direita. Pedia "a bênção!", mas
agarrava-lhe logo a mão, por sim ou por não, para assegurar-me a bênção
carecida. Na roça, lá no Pinhalzinho, na Bragantina, meus primos pediam a
bênção juntando as mãos em gesto de louvado em direção à pessoa que,
esperavam, os abençoasse. "A bença!" rogavam. "Deus abençoe!" vinha a
confirmação sacramental do parentesco que se renovava ao menos uma vez
por dia. Ou duas! Pedia-se a bênção, também, na hora de dormir. No
Arriá, havia quem, juntando as mãos, dissesse "São Cristo!" Tudo indica,
fora o modo como os índios administrados, antecessores dos escravos
negros, confirmavam cotidianamente a dimensão patriarcal de seu
cativeiro.
Num povoado da Amazônia, em que estava fazendo pesquisa sobre
violência fundiária, várias crianças vieram visitar-me no rancho em que
armara minha rede para pedir-me "a bença", de mãos juntas. Da resposta,
ficavam sabendo se eu era amigo ou inimigo, do bem ou do mal, de dentro
ou de fora.
----------------
* Colunista do Estadão
Fonte: http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,a-benca!-,974497,0.htm
Imagem da Internet
Nenhum comentário:
Postar um comentário