Haruki Murakami não é um escritor de livros curtos. Seus romances têm
mais a ver com as longas corridas a que ele está acostumado desde os 30
anos (nasceu em 1949). Murakami corre todo dia, e o livro "Do Que Estou
Falando Quando Falo de Corrida", um dos mais curtos que ele já
escreveu, é uma memória que fala tanto do fôlego necessário para as
maratonas quanto para os romances. Este "1Q84" é a sua obra mais
ambiciosa, em todos os sentidos. São cerca de mil páginas distribuídas
em três volumes, e o "Livro 1" é este que acaba de sair. Os restantes
estão prometidos para maio e novembro do ano que vem.
Em "1Q84" (uma alusão ao clássico "1984", de George Orwell, em que o
número nove, em japonês, é o "kyu", o som da letra "Q" em inglês),
Murakami exercita o melhor do seu estilo, movido pela vivacidade e pelo
ritmo. Quem pega um de seus romances dificilmente larga, e não é
diferente com "1Q84". O escritor tem a paciência dos corredores de
maratona: ele vai estendendo os temas e os detalhes com uma calma
absoluta. No caso, duas histórias correm em paralelo, para só se
encontrar lá na frente. Ambas dão origem a outras histórias menores, e
assim por diante. No fim, o novelo se ajusta e mostra toda a sua
inteireza. Murakami consegue ao mesmo tempo entrar nos detalhes e
esconder o essencial.
Aomame é uma matadora de aluguel, e suas vítimas são assassinos de
mulheres. Embora a história se passe em 1984, ela entra em outra
dimensão logo no começo do livro, ao fugir de um congestionamento por
uma saída na rodovia. Tengo é um aspirante a escritor que aceita a
missão de reescrever um livro muito promissor, mas escrito por uma
autora disléxica, chamado "Crisálida de Ar". Por meio dessas histórias
paralelas, Murakami vai usando os elementos que costumam pesar nos seus
livros: sexo, solidão, música (pop e jazz), gatos, ficção científica
etc. Ele tem o dom raro de escrever cenas de sexo que não são risíveis.
Ao mesmo tempo, caminha perigosamente na corda bamba dos clichês. Suas
metáforas são bastante sem graça, ou melhor, são tão banais que não
chamam a atenção.
Talvez o segredo do sucesso esteja aí, no uso dos atributos medianos
da linguagem para ressaltar a imaginação dos enredos. E eles são muito
imaginativos. Murakami utiliza o receituário do realismo mágico
latino-americano e do surrealismo francês com uma espécie de economia
zen. No final das contas, o leitor se vê enredado, curioso para saber o
que virá a seguir. No mundo em que vivemos, que parece amar a realidade e
desprezar a ficção, os livros de Murakami, com seus altos e baixos
narrativos, consegue tocar o coração dos leitores mais jovens com uma
força surpreendente. O escritor já disse que seus romances tendem a
vender mais em tempos de crise.
É o que vem ocorrendo com "1Q84" desde 2009. Sendo uma lição de
irrealidade do tipo "Harry Potter", o livro atrai fãs ensandecidos a
cada país onde é lançado (mesmo no Brasil, antes do lançamento, já havia
fila nas livrarias para comprar a tradução inglesa). Leitor voraz,
ex-dono de clube de jazz, maratonista, escritor tardio (começou aos 30
anos), tradutor de Scott Fitzgerald e Raymond Carver, entre muitos,
Murakami continua sendo figura marcada das apostas para o Nobel. Pop,
gostando de escrever e remando contra a maré da literatura japonesa
padrão, seria incrível que levasse o prêmio. Milhões de leitores no
mundo todo - e muitos apresentados a ele por "1Q84" - vibrariam.
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