Lee Siegel*
Shannon Stapleton/Reuters
A despeito da estabilidade dos EUA, massacre é visto por autor como sintoma de doença social grave
Existe a boa e a má. Os EUA, o mais singular experimento democrático da história, chegaram a uma encruzilhada na qual terão de decidir se enfrentarão essa distinção
Eu pretendia traçar neste artigo um panorama amplo do
que o futuro poderia reservar aos Estados Unidos em várias esferas:
cultural, social, política. Mas a história nos ensina que a natureza de
uma sociedade é medida por seus piores eventos, não pelos melhores.
Poucas civilizações foram capazes de produzir obras de arte tão sublimes
como a Alemanha às vésperas do Holocausto. A despeito de toda
estabilidade política, mobilidade social e criatividade cultural dos
Estados Unidos hoje, - estou olhando o país com absoluta relatividade,
pela óptica da história - o massacre de 20 crianças e 6 adultos em
Newtown, Connecticut, em 14 de dezembro, é o sintoma de uma doença
profunda no coração da vida americana.
Nos noticiários, ouvi o pai de uma adolescente que foi morta no
massacre da Columbine High School em 1999. O país precisa de controle de
armas, é claro, ele disse. Mas ele também precisa de uma completa
transformação espiritual. Jamais se proferiram palavras tão verdadeiras.
Existe a liberdade boa e a liberdade má. Os Estados Unidos, o mais
singular experimento democrático da história, chegaram a uma
encruzilhada onde terão de decidir se enfrentarão essa distinção. Nesse
sentido, a atitude da mãe do assassino de Newtown para com seu filho
assassino é um símbolo sinistro tanto da má liberdade liberal como da má
liberdade conservadora.
Nancy Lanza, a mãe de 54 anos de Adam Lanza, o jovem de 20 que
cometeu a chacina, fez uma escolha notável. Mesmo sabendo que seu filho
era mentalmente doente, ela começou a lhe ensinar a disparar uma arma
quando ele tinha 9 anos. E não qualquer tipo de arma. Ela lhe ensinou a
usar armas de assalto semiautomáticas. Aparentemente, enquanto a
condição mental do rapaz se deteriorava, continuou a levá-lo a campos de
tiro para praticar tiro ao alvo. Ela confessou a um conhecido não muito
antes do massacre de Newtown que Adam vivia se queimando com isqueiros
para tentar sentir dor. E, contudo, até onde se sabe, ela nunca buscou
ajuda profissional para ele.
Nancy Lanza vivia numa América em que a própria ideia de doença
mental não pode ser tolerada. Chamar alguém de mentalmente doente é
violar seus direitos civis. Há um precedente humano para essa atitude,
pois durante séculos, os deficientes mentais foram segregados,
atormentados e, às vezes, torturados. Nos Estados Unidos de hoje, porém,
em que a cultura é inteiramente liberal, a atitude predominante foi
além do tratamento humano do doente mental. Ela agora pede uma ilusão
coletiva pela qual qualquer um, a despeito de qual seja sua deficiência
mental, pode fazer o que bem quiser. E assim Adam Lanza, que não tinha
sentimentos de compaixão e era dado a acessos de raiva, foi encorajado
por sua mãe a dominar o uso de armas letais. O indivíduo americano não
tolerará a ideia de não conseguir o que desejar.
Do lado conservador, é claro, a demanda é que todos possam comprar o
tipo de arma que desejarem. Está além da compreensão que, com o que se
sabe da natureza humana, as pessoas possam ter algo mais perigoso que
uma colher de plástico. Mas o delirante lobby das armas e sua clientela
insistem em que as pessoas tenham o direito de comprar as mesmíssimas
armas e munições que soldados americanos usam no Iraque e no
Afeganistão. Mesmo que uma proibição de armas de ataque fosse
transformada em lei, ninguém questionaria o direito de cada americano
possuir revólveres e rifles que ainda têm um tremendo poder letal. No
maior experimento democrático que a humanidade conhece, o melhor que se
pode esperar é que, no futuro, um matador como Adam Lanza consiga matar
apenas 5 ou 6 crianças de cada vez e não 20.
E se Obama magicamente adquirir a coragem de suas eloquentes e
decentes convicções e uma proibição de armas de ataque se tornar
realidade? Ainda existirá uma causa perniciosa de assassinatos em massa
que os liberais americanos jamais enfrentarão: a violência na cultura
popular. Segundo relatos, Adam Lanza era um jogador contumaz. Ele
adorava jogar videogames que banalizam o ato de matar. Psicólogos falam
do fenômeno de "despersonalização", um estado mental em que a pessoa
começa a se dissociar de suas ações, como se estivesse se observando num
sonho, ou se observando como se fosse uma pessoa completamente
diferente. No mundo dos videogames, despersonalização é o estado mental
costumeiro. É esse também o estado mental de um assassino em massa.
Mas nenhum liberal jamais falará contra os videogames, ou contra o
aumento da violência na televisão e no cinema, mais do que algum
conservador falará contra cidadãos privados possuírem armas letais. Para
os liberais, a "liberdade" de expressão e a busca do prazer não devem
ser obstruídas. Para os conservadores, a "liberdade" de ação e a
sublimação do prazer em ocupações agressivas como atirar não devem ser
questionadas. Como sempre, o país está paralisado por uma divisão
fundamental. O único traço que os dois lados compartilham é um
compromisso inarredável com a soberania absoluta do indivíduo.
Não é por acaso que a esfera mais esperançosa na vida americana é a
ciência, em que avanços na tecnologia médica, por exemplo, estão
transformando a vida para melhor. As regras da ciência de experimento e
verificabilidade não podem ser contornadas ou rompidas. A liberdade em
ciência é inseparável de seu rigor.
Outras esferas da vida americana são mais porosas, e estão sofrendo
com um aumento da liberdade má. O delicado equilíbrio entre liberdade e
disciplina que é mantido na ciência tem sido derrubado em muitas áreas. A
crise econômica de 2008, que ainda está se desdobrando aqui e na
Europa, teve muito a ver com um tipo de especulação financeira que
atropelou fronteiras, regras e qualquer senso de proporção. A liberdade
má varreu como um tsunami mortal a liberdade boa do mercado.
Considerem ainda a internet, onde o conflito entre as liberdades má e
boa assumiu dimensões de Armagedon. Em nome do igualitarismo, a
democracia está sendo corroída pelo poder da massa. A regra das vozes
mais altas na web também tornou possível que um demagogo após outro - de
Palin a Trump - ganhasse uma influência na sociedade que jamais teria
alcançado em tempos menos conectados. O efeito tem sido transformar a
política em entretenimento - mas é aqui que a incansável dinâmica da
vida americana reafirma uma energia positiva. Se a política ainda fosse
política, os demagogos representariam um perigo real para a sociedade.
Mas como a política os tornou animadores de espetáculos, eles
rapidamente se tornam irrelevantes à medida que seu espetáculo
envelhece.
A arte americana um dia forneceu uma esfera iluminadora,
esclarecedora, para se escapar do aspecto surreal da realidade
americana. Era um lugar em que os limites da sociedade podiam ser
contornados e as energias primitivas do indivíduo, liberadas. Mas agora
que a sociedade parece ter adquirido a permissividade primitiva da arte,
a arte em si parece reprimida - como nas sociedades despóticas. Não me
entendam mal. Quanto menos repressões punitivas a sociedade infligir às
pessoas, menos dor haverá no mundo. Mas há repressões e há repressões. A
tolerância, por exemplo, de formas diferentes de amor e sexualidade
humanos é benéfica. A tolerância à cultura da arma e à violência na
cultura, não.
À medida que as imagens de violência geradas por computador nos
filmes excedam tudo que a imaginação humana possa conceber, que notícias
de massacres incompreensíveis superem tudo que a mente seja capaz de
compreender, a imaginação artística se encolhe intimidada. Faz cerca de
30 ou 40 anos que os últimos movimentos interessantes - minimalismo,
arte conceitual, arte performática, videoarte - ocorreram nas artes
visuais. Em ficção, em poesia, os escritores estão todos abrigados em
seus nichos privados, trabalhando em estilos que são, em algum grau,
tímidos pastiches da arte literária passada. A música popular, como uma
coleção de estilos originais, definidores, desapareceu.
Há muitas razões para a falta de originalidade nas artes, mas uma das
principais é, com certeza, o desprezo quase institucional na América
por qualquer tipo de fronteira limitadora em quase toda esfera de
atividade. A arte, ainda mais que a ciência, requer um raro equilíbrio
de liberdade e contenção. É dessa luta contra proibição e restrição que
nasce a originalidade. Agora que tudo é permitido, a imaginação foi
privada de sua função.
Na superfície, a maioria das pessoas se comporta bem. Mas à medida
que aprendem a comercializar sua privacidade em público, em especial na
internet, elas estão cultivando um novo tipo de privacidade subterrânea.
Estamos na era da vida dupla, na qual, por baixo da aparência de
contenção, as pessoas se entregam sem restrições a cada apetite seu. Por
trás da aparência tranquilizadora de Bernie Madoff espreitava um
monstro amoral. Por trás de um médico chamado Sidney Gilman, com uma
carreira respeitável de especialista no tratamento da demência - como
The New York Times reportou recentemente -, estava um homem que usava
sua pesquisa para se envolver no uso ilegal de informações sigilosas no
mercado acionário. Por trás do que vizinhos descreveram como a "graça
incomum" de Nancy Lanza existia uma pessoa tragicamente cega e
voluntariosa que treinou seu filho desequilibrado para matar. Sempre
houve uma distância por vezes fatal entre aparência e realidade. Agora,
essa distância foi aperfeiçoada. Graças à internet, ela até possui sua
própria tecnologia.
Enquanto escrevo, americanos temem que o país caia no chamado "abismo
fiscal" se democratas e republicanos não chegarem a um acordo sobre
como equilibrar o orçamento no começo do próximo ano. Uma grande massa
de americanos está preocupada também com a chegada iminente do fim do
mundo segundo o calendário maia. Fico pensando se não haverá uma conexão
entre os dois tipos de ansiedade. Fico pensando se o sentimento de
proximidade de um fim confere às pessoas a ilusão de escapar das más
liberdades que as sufocam. Fico pensando se essa sensação de fim
iminente não é de fato uma simulação terapêutica de algum tipo de
restrição jubilosa, alguma fronteira extrema que está faltando nas vidas
das pessoas.
O mundo felizmente continuará no próximo ano. O problema é que continuará tal como é.
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TRADUÇÃO DE CELSO PACIORNIK
* LEE SIEGEL É ESCRITOR E CRÍTICO CULTURAL AMERICANO. ESCREVE
PARA O JORNAL THE NEW YORK TIMES, AS REVISTAS HARPER'S, NEW YORKER E THE
NATION. NO BRASIL, ONDE É COLUNISTA EXCLUSIVO DE O ESTADO, PUBLICOU
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Fonte: http://www.estadao.com.br/noticias/suplementos,liberdade,976911,0.htm
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