Paulo Ghiraldelli Jr.
Pondé deu o troco, via e-mail, ao meu texto
inspirado no seu “Seis passos para a felicidade” (Folha, 11/12/2012).
Saco do que ele falou duas observações: 1) “dizer que temo o nazismo
menos do que a democracia é forçar a barrar da retórica contra mim…”; 2)
“não tenho medo da democracia, qualquer pessoa inteligente sabe que
esse papinho de sabedoria popular santa é pra iniciantes… medo do voto?”
Ora, creio piamente que para ser justo com Pondé, tenho de refazer o
que disse a respeito desses pontos.
Pondé diz, taxativamente, diretamente
para mim, que ele não teme a democracia. Diz então que entre as massas
do nazismo e as massas da democracia ele não teme o totalitarismo da
primeira mais que o da segunda, e se assim fala, tenho de acreditar. Não
acreditar seria completamente deselegante e, enfim, cortaria nossa
conversação. Acredito. Pondé não tem medo do voto. De fato. Mas eu posso
refazer o que disse sendo mais preciso no que eu queria afirmar: não
pensei em medo como pavor, susto, tremor. Pensei em medo no sentido que o
desenvolvimento moderno poderia causar a seguinte exclamação de Pondé:
“nossa, a democracia é mais chata ainda que outros totalitarismos”, se é
que posso chamar a democracia atual como integrada ao que Adorno
chamava de ‘capitalismo tardio’ ou ‘sociedade administrada’ ou
‘sociedade da total administração’, para ficar próximo do que parece ser
endossado por Pondé. Nisso, penso estar correto e sendo justo com
Pondé. Sobre os tempos atuais, principalmente no Ocidente e em situações
de democracia de massas (especialmente no mundo de tipos como Obama)
vigora um certo hedonismo utilitarista, coisa de Bentham e Mill. Isso é
meio cansativo, tedioso, e Pondé teme o marasmo totalizador, opressivo,
de uma falta de inteligência que viria associado a essa procura do
Paraíso na Terra.
Ora, eu não poria nenhum adendo à
descrição que Pondé faz ao mundo democrático e muito menos acho que ele
está errado ao falar coisas que eu, no meu jargão, chamaria de
metanarrativa da saúde e da felicidade. Nesse sentido, nós dois
diferimos daqueles que, por um lado, descrevem o Ocidente como tendo a
vida baseada no cultivo de uma retórica do desregramento e do vício, e
de outro lado por uma retórica de busca de felicidade por outros meios
que não o cálculo utilitarista, bem ensinado pelos ingleses e assimilado
pelos americanos. É claro que, no nosso caso, no Brasil, fazemos isso
sem grande clareza. Nós brasileiros associamos retórica da felicidade
não ao utilitarismo, mas isso é um erro nosso. Na prática, nossa
retórica é, sim, a do cálculo de prazer ou cálculo de felicidade, como
explica Pondé. Bem, mas se tudo é assim, então onde diferimos, Pondé e
eu, que temos praticamente a mesma idade, ele com 54 e eu com 55?
A diferença vem da raiz de nosso
propósito filosófico. Pondé é militante de uma postura política
conservadora, que ele chama “de direita”, e ele também é um militante na
área filosófica que se situa no campo trágico, algo que, na Europa,
poderia ser posto mais ou menos ao lado de um Clément Rosset, autor no
Brasil de Lógica do pior e outros. Pela minha vez, não posso me
assumir politicamente como militante de uma postura conservadora ou
liberal (ou progressista, digamos), exatamente porque minha postura
filosófica, também assumida sem militância, por sua própria virtude, me
põe sempre analisando caso a caso. Eu explico!
Pondé sempre escreve tomando um lado –
seja o que for que ele possa analisar, ele vai tentar trazer à tona o
trágico da vida e vai insistir que a melhoria a respeito de nosso
conhecimento da natureza humana virá quanto mais realista – no
sentido de Nelson Rodrigues – pudermos ser. Desse modo, às vezes mesmo
antes do ocorrido, eu já sei o que Pondé irá escrever sobre o caso – ou
imagino que possa saber. Agora, eu não sei o que eu vou escrever sobre o
caso. Pois como eu tenho de olhar o caso e me envolver com ele, nem
mesmo meu cérebro sabe o que vai ocorrer quando já está ocorrendo. Eu
escrevo com o pensamento na ponta dos dedos, e quando começo a digitar é
que os pareceres e conclusões se fazem. Alguns diriam que eu estaria ao
lado de um nominalista historicista. Não sei. O que sei é que minha
postura filosófica é parente da minha postura política, embora sejam
mutuamente independentes: eu não sei o que dizer antes de dizer. Não
tenho a chave mais ou menos platônica para lidar com as coisas
aprioristicamente. Pondé tem. Ele cumpre uma espécie de missão na Terra,
em favor do determinismo trágico, que ele enxerga, até certo ponto, não
como determinismo, mas como liberdade.
Desse modo, eu posso aplaudir o modo
como ele descreve não o Ocidente, mas ao menos a cultura intelectual do
Ocidente democrático, como tendo uma faceta baseada no discurso da saúde
e no hedonismo anglo-americano. Agora, eu não necessariamente preciso
acompanhá-lo dizendo que esse ponto de chegada, no qual estamos, é ruim.
Ele é ruim quando cria aquele tipo de
pessoa que Pondé imagina que é quase o único tipo de homem moderno, cujo
modelo é o
marxista-meiopadre-ecólogo-saudável-feminista-politicamentecorreto da
PUC-SP. Esse tipo efetivamente acaba criando certas forças em favor de
objetivos que nos enfastiam. Eles são aquilo que só Pondé e eu temos
coragem, no mundo filosófico, de dizer: idiotas. Pondé os chama, também,
de bregas. Eu não uso brega, eu uso burro chato. É aquele tipinho que
pega bolsa do Prouni e vai dizer que mãe foi lavadeira e que enfim, ele,
filho dessa mãe pobre e oprimida chegou à universidade. Logo um cara
desses já tem seu mestrado em pedagogia! E aí de nós se o corrigirmos em
alguma coisinha! Aí então, com discursos que Pondé chama de “coisas
bonitinhas”, esse indivíduo vai tentar salvar o mundo. Ele vai lutar
“por um mundo melhor”. Sabemos muito bem o quanto nos custa, depois,
aguentar o tipo de legislação, narrativa e prática que essa gente nos
impõe. Sai de baixo!
No entanto, em que eu não acompanho
Pondé? Nisto: ele pensa que esse “discurso bonzinho” é representado
também por todo e qualquer social democrata. Acho até que ele, Pondé,
nem faz diferença entre, de um lado, um social democrata (na Europa) ou
um liberal (nos Estados Unidos) e, de outro lado, um populista qualquer.
Pondé não faz mesmo, pois ele assimila Obama ao populismo rasteiro.
Talvez ele até ache que Obama, Vargas, Perón, “Esta é sua casa” do
Caldeirão do Huck, Betinho, Dorothy May Stang e Luther King possam ser
alinhados (todos vindos do utopismo que estaria lá em Rousseau, segundo
ele), e que acabam vestindo o mesmo uniforme na guerra semântica dos
últimos cinquenta anos. Eu não posso fazer isso. Pois ao analisar caso a
caso, ao não ter uma espécie de resposta pronta, sou obrigado a pensar e
pensar e fazer distinções. Uma das distinções que tenho de fazer é
quanto à institucionalização das ações políticas e sociais.
Vejamos: se eu coloco uma regra de que
os partidos políticos no Brasil precisam, obrigatoriamente, ter uma
porcentagem X de mulheres, para então poderem se registrar, eu estou
criando uma regra de cotas, institucional, com o objetivo de ver na
política homens e mulheres, e não mais somente homens. Esse tipo de
coisa nós fizemos. Deu seus frutos e hoje é desnecessária. Agora, isso é
completamente diferente se eu optasse por criar uma premiação, por
exemplo, uma espécie de remuneração familiar para a família que cedesse
uma mulher para a política. A prática política estaria sendo comprada,
negociada, e essa compra estaria visando os pobres, e é claro que isso
seria um tipo de agrado muito especial, corruptor, a grupos sociais,
talvez feministas. Nesse caso eu estaria fazendo o que os cientistas
sociais, sociólogos e historiadores caracterizaram como populismo. São
medidas parecidas, mas minha ótica filosófica me obriga a distingui-las.
A ótica de Pondé, inclusive pela sua militância, talvez colocasse as
duas medidas no mesmo saco, condenando ambas, até para que, ao fim e ao
cabo, ele pudesse dizer que o desfecho seria ruim de qualquer maneira, e
assim por na linha final da história o trágico.
Assim, enquanto Pondé vê os passos para a
felicidade, do hedonismo atual, como uma breguice e até mesmo falta de
inteligência. Eu, diferentemente, vejo que esse clima intelectual atual
tem a ver com a avaliação weberiana da modernidade, a época que cria “o
especialista sem inteligência e o hedonista sem coração”. Ou seja,
podemos ter muita gente que é expert e burra, e que é hedonista e não
sabe curtir nada. Podemos ter isso, mas não necessariamente temos isso
para todos e em todos os lugares, como Pondé parece pensar. E nem talvez
a hegemonia da cultura seja essa. Talvez ela seja uma hegemonia dentro
de um pequeno campo urbano.
O mundo, o mundão mesmo, talvez seja maior
que a PUC-SP.
-------------------------
* Paulo Ghiraldelli Jr., filósofo, escritor e professor da UFRRJ.
Fonte: http://ghiraldelli.pro.br/2012/12/12/ponde-e-eu-nus-peladinhos-mesmo/
Nenhum comentário:
Postar um comentário