quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

A palavra que dói

IVAN MARTINS*
 

As mulheres ganharam o direito duvidoso de serem chamadas de corna

Os melhores dicionários brasileiros ainda não incluem a palavra “corna”, mas acho que falta pouco para que isso aconteça. O termo está no ar. Os dicionaristas, que têm uma natureza democrática, não vão suportar a pressão. Quando uma palavra ganha a rua e cai na boca do povo, como aconteceu com corna, o pessoal dos dicionários adere e incorpora. Na profissão deles, não vale ser o último a saber.

Você acha a palavra corna detestável? Eu também. Assim como corno, ela implica uma invasão da privacidade alheia e um julgamento a respeito dela. Só poderia ter sido inventada numa cultura de fofoqueiros como a nossa, que confunde o público e o privado. Na nossa sociedade é ridículo e profundamente vergonhoso ser enganado por um parceiro, embora aconteça o tempo inteiro. Por isso a gente aponta o dedo e xinga as pessoas de corno, e agora de corna. Em algumas línguas, ser enganado é apenas triste. Em outras, não tem tanta importância. Para nós, é o fim. 

Essa mentalidade tem uma longa tradição. Chegou ao Brasil com os primeiros criminosos que Portugal fez deportar para a colônia. Entre assassinos, ladrões e prostitutas, havia os “cornos mansos”. Eram homens que não haviam lavado em sangue sua honra conspurcada. A mansidão deles era crime. Dava cadeia e degredo. Desde então, maridos e namorados traídos têm sido objeto de escárnio público no Brasil. São quinhentos anos de humilhação. Um dia, quando a mentalidade machista mudar, isso também mudará. Um dia. 

Enquanto isso, vejo uma forma perversa de progresso na palavra corna. Ela significa que “a honra” da mulher agora vale tanto quanto a do homem. No passado, não se empregava esse adjetivo para mulheres porque não havia ultraje em ser enganada. Era como engravidar, parir e cuidar dos filhos. Estava no pacote, como parte natural da condição feminina. Muita coisa mudou deste então - para melhor. 

As mulheres ganharam independência, prestígio social, poder e dinheiro. Sua força legal e econômica dentro do relacionamento impõe que a outra parte se comporte com respeito. Agora, elas têm, inclusive, o direito de serem chamadas de corna quando são enganadas - porque ninguém mais assume com naturalidade que isso vá acontecer. É considerado uma quebra de contrato. Quando ela acontece, as mulheres podem rodar a baiana, se acharem que é o caso. Seu direito à vergonha e à indignação foi conquistado. 

Com a palavra corna não se inventou a humilhação feminina, claro. Ela estava lá desde sempre. Ser enganada sempre doeu, mas agora a dor ganhou legitimidade social. Virou um drama que testa o caráter da vítima. Quando a situação é pública, espera-se que a mulher enganada tome uma atitude. Parentes e amigos pressionam para que ela encha uma mala, reúna os filhos e abandone o sujeito. Ou ponha para fora o safado. O adjetivo corna é tão pesado, tão degradante, que exige reação. Mesmo que a mulher tenha vontade de apenas calar em tristeza e desapontamento. Mesmo que ela preferisse olhar para o outro lado e fingir que não está acontecendo nada. A pressão social contra as “cornas mansas” é enorme. 
Os homens convivem com isso há séculos. Sempre foi inaceitável aceitar. Muitos devem ter morrido tomando satisfações por mulheres que não amavam - e a quem, provavelmente, negligenciavam. Quantos não se sacrificaram no altar da opinião pública para compensar a mancha invisível da traição? Sempre foi preciso ser mais homem que a média para deixar-se chamar de “corno manso” em vez de acabar com o casamento (ou com a mulher!) por causa de uma traição pública. Agora as mulheres têm de lidar com a mesma pressão.

Não é fácil. Quando a dor íntima vira conversa pública os sentimentos se exaltam. Todo mundo tem ego, afinal. Uma coisa é lidar com a dor entre quatro paredes. Outra é descobrir-se no centro de uma rede de piadas e comentários. Quando as pessoas envolvidas são famosas, os detalhes sórdidos vão parar na primeira página dos jornais. A celebridade não pode andar na rua sem que estranhos lhe façam perguntas. Nessas circunstâncias dolorosas, relações de décadas podem explodir - destruindo famílias, reputações e planos conjuntos de aposentadoria. 

Num mundo ideal, não haveria nada disso. Homens e mulheres seriam verdadeiros o tempo inteiro. Numa bela tarde de sábado, olhariam a parceira ou o parceiro nos olhos e diriam: desculpe, mas eu estou atraído por alguém e quero que aconteça. A pessoa poderia aceitar ou mandar o outro à merda e cair fora. Ninguém seria enganado ou traído. Mas a vida não é assim nem em filmes do sueco Ingmar Bergman. A vida atropela. As pessoas fazem primeiro e contam depois. Ou fazem e não contam. Às vezes fazem sistematicamente e não contam. Ou contam sistematicamente, e o parceiro ou parceira enlouquece. A vida é difícil e nossos sentimentos são intensos.

O que ninguém precisa, de verdade, é de palavras como corna e corno. Elas transformam o ruim em péssimo. Humilham no auge da dor e da fragilidade. As palavras machucam, por isso existe pressão para que deixemos de usar algumas delas. A mentalidade muda e certas expressões deveriam desaparecer, varridas por uma visão mais generosa do mundo. Infelizmente, ainda não é o caso. As pessoas ainda são chamadas de corno, e agora de cornas. Nas ruas e, futuramente, nos dicionários. Eu só espero que não seja por muito tempo. Tomara que não demore mais 500 anos para esse velho insulto medieval português sair de circulação. Na verdade, já passou da hora.
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http://revistaepoca.globo.com/12/12/2012
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