IVAN MARTINS*
As mulheres ganharam o direito duvidoso de serem chamadas de corna
Os melhores dicionários brasileiros ainda não incluem a palavra
“corna”, mas acho que falta pouco para que isso aconteça. O termo está
no ar. Os dicionaristas, que têm uma natureza democrática, não vão
suportar a pressão. Quando uma palavra ganha a rua e cai na boca do
povo, como aconteceu com corna, o pessoal dos dicionários adere e
incorpora. Na profissão deles, não vale ser o último a saber.
Você acha a palavra corna detestável? Eu também. Assim como corno, ela implica uma invasão da privacidade alheia e um julgamento a respeito dela. Só poderia ter sido inventada numa cultura de fofoqueiros como a nossa, que confunde o público e o privado. Na nossa sociedade é ridículo e profundamente vergonhoso ser enganado por um parceiro, embora aconteça o tempo inteiro. Por isso a gente aponta o dedo e xinga as pessoas de corno, e agora de corna. Em algumas línguas, ser enganado é apenas triste. Em outras, não tem tanta importância. Para nós, é o fim.
Você acha a palavra corna detestável? Eu também. Assim como corno, ela implica uma invasão da privacidade alheia e um julgamento a respeito dela. Só poderia ter sido inventada numa cultura de fofoqueiros como a nossa, que confunde o público e o privado. Na nossa sociedade é ridículo e profundamente vergonhoso ser enganado por um parceiro, embora aconteça o tempo inteiro. Por isso a gente aponta o dedo e xinga as pessoas de corno, e agora de corna. Em algumas línguas, ser enganado é apenas triste. Em outras, não tem tanta importância. Para nós, é o fim.
Essa mentalidade tem uma longa tradição. Chegou ao Brasil com os
primeiros criminosos que Portugal fez deportar para a colônia. Entre
assassinos, ladrões e prostitutas, havia os “cornos mansos”. Eram homens
que não haviam lavado em sangue sua honra conspurcada. A mansidão deles
era crime. Dava cadeia e degredo. Desde então, maridos e namorados
traídos têm sido objeto de escárnio público no Brasil. São quinhentos
anos de humilhação. Um dia, quando a mentalidade machista mudar, isso
também mudará. Um dia.
Enquanto isso, vejo uma forma perversa de progresso na palavra corna.
Ela significa que “a honra” da mulher agora vale tanto quanto a do
homem. No passado, não se empregava esse adjetivo para mulheres porque
não havia ultraje em ser enganada. Era como engravidar, parir e cuidar
dos filhos. Estava no pacote, como parte natural da condição feminina.
Muita coisa mudou deste então - para melhor.
As mulheres ganharam independência, prestígio social, poder e dinheiro.
Sua força legal e econômica dentro do relacionamento impõe que a outra
parte se comporte com respeito. Agora, elas têm, inclusive, o direito de
serem chamadas de corna quando são enganadas - porque ninguém mais
assume com naturalidade que isso vá acontecer. É considerado uma quebra
de contrato. Quando ela acontece, as mulheres podem rodar a baiana, se
acharem que é o caso. Seu direito à vergonha e à indignação foi
conquistado.
Com a palavra corna não se inventou a humilhação feminina, claro. Ela
estava lá desde sempre. Ser enganada sempre doeu, mas agora a dor ganhou
legitimidade social. Virou um drama que testa o caráter da vítima.
Quando a situação é pública, espera-se que a mulher enganada tome uma
atitude. Parentes e amigos pressionam para que ela encha uma mala, reúna
os filhos e abandone o sujeito. Ou ponha para fora o safado. O adjetivo
corna é tão pesado, tão degradante, que exige reação. Mesmo que a
mulher tenha vontade de apenas calar em tristeza e desapontamento. Mesmo
que ela preferisse olhar para o outro lado e fingir que não está
acontecendo nada. A pressão social contra as “cornas mansas” é enorme.
Os homens convivem com isso há séculos. Sempre foi inaceitável aceitar.
Muitos devem ter morrido tomando satisfações por mulheres que não
amavam - e a quem, provavelmente, negligenciavam. Quantos não se
sacrificaram no altar da opinião pública para compensar a mancha
invisível da traição? Sempre foi preciso ser mais homem que a média para
deixar-se chamar de “corno manso” em vez de acabar com o casamento (ou
com a mulher!) por causa de uma traição pública. Agora as mulheres têm
de lidar com a mesma pressão.
Não é fácil. Quando a dor íntima vira conversa pública os sentimentos se exaltam. Todo mundo tem ego, afinal. Uma coisa é lidar com a dor entre quatro paredes. Outra é descobrir-se no centro de uma rede de piadas e comentários. Quando as pessoas envolvidas são famosas, os detalhes sórdidos vão parar na primeira página dos jornais. A celebridade não pode andar na rua sem que estranhos lhe façam perguntas. Nessas circunstâncias dolorosas, relações de décadas podem explodir - destruindo famílias, reputações e planos conjuntos de aposentadoria.
Não é fácil. Quando a dor íntima vira conversa pública os sentimentos se exaltam. Todo mundo tem ego, afinal. Uma coisa é lidar com a dor entre quatro paredes. Outra é descobrir-se no centro de uma rede de piadas e comentários. Quando as pessoas envolvidas são famosas, os detalhes sórdidos vão parar na primeira página dos jornais. A celebridade não pode andar na rua sem que estranhos lhe façam perguntas. Nessas circunstâncias dolorosas, relações de décadas podem explodir - destruindo famílias, reputações e planos conjuntos de aposentadoria.
Num mundo ideal, não haveria nada disso. Homens e mulheres seriam
verdadeiros o tempo inteiro. Numa bela tarde de sábado, olhariam a
parceira ou o parceiro nos olhos e diriam: desculpe, mas eu estou
atraído por alguém e quero que aconteça. A pessoa poderia aceitar ou
mandar o outro à merda e cair fora. Ninguém seria enganado ou traído.
Mas a vida não é assim nem em filmes do sueco Ingmar Bergman. A vida
atropela. As pessoas fazem primeiro e contam depois. Ou fazem e não
contam. Às vezes fazem sistematicamente e não contam. Ou contam
sistematicamente, e o parceiro ou parceira enlouquece. A vida é difícil e
nossos sentimentos são intensos.
O que ninguém precisa, de verdade, é de palavras como corna e corno.
Elas transformam o ruim em péssimo. Humilham no auge da dor e da
fragilidade. As palavras machucam, por isso existe pressão para que
deixemos de usar algumas delas. A mentalidade muda e certas expressões
deveriam desaparecer, varridas por uma visão mais generosa do mundo.
Infelizmente, ainda não é o caso. As pessoas ainda são chamadas de
corno, e agora de cornas. Nas ruas e, futuramente, nos dicionários. Eu
só espero que não seja por muito tempo. Tomara que não demore mais 500
anos para esse velho insulto medieval português sair de circulação. Na
verdade, já passou da hora.
--------------
*
http://revistaepoca.globo.com/12/12/2012
Imagem da Internet
Nenhum comentário:
Postar um comentário