Contardo Calligaris*
Enquanto a gente sonha sossegado, alguns se esforçam para transformar o devaneio numa doença
CANSADA DE sonhar de olhos abertos, uma leitora, Ana, quer saber mais
sobre devaneios: "Por que acabo sempre fugindo para esse lugar fictício,
onde tudo pode ser tão melhor ou pior, um mundo do que poderia ser, do
que poderia ter sido, da pior hipótese fantástica, pretéritos
imperfeitos, mais que perfeitos, futuros incertos -e quando vejo, perdi
tanto tempo com isso?".
Tenho carinho pelos sonhos de olhos abertos. Até o começo da
adolescência, o devaneio era meu aliado contra o que me parecia ser a
mediocridade do mundo.
Para mim, como para Ana, o devaneio era o país de onde eu vinha (minha
origem escondida) ou minha pátria futura; de um jeito ou de outro, era
meu passaporte para um outro mundo, que me salvaria de meu lugar e de
meu presente.
Graças ao devaneio, assisti a centenas de aulas chatérrimas aparentando
minha absoluta atenção (embora de olhos um tanto vidrados). Quando
atravessei a dolorosa época em que os adolescentes menosprezam os seus
pais, o devaneio me consolou, alimentando a certeza de que eu, de fato,
pertencia a outra família.
Enfim, à força de contar histórias para mim mesmo, aprendi a contá-las para os outros.
O que fez com que, aos poucos, meu devaneio se acalmasse (por sorte, sem
se exaurir)? Será que eu "amadureci"? Ou será que as aulas, o trabalho e
os amores se tornaram interessantes, e a necessidade de sonhar
diminuiu?
Na hora de explicar o excesso de devaneio, o adolescente tende a acusar a
realidade na qual ele vive, a qual mereceria o enfado que ela lhe
inspira. Mas, em geral, não há realidade enfadonha, apenas indivíduos
enfadados, que, por alguma razão, não enxergam o encanto possível do dia
a dia.
Ao devanear, eu me afasto da realidade. Por outro lado, sem devanear,
mal consigo inventar e desejar realidades diferentes. O que é pior?
Entre renunciar a devanear e sucumbir ao devaneio, talvez seja pior
renunciar a devanear.
Infelizmente, enquanto a gente sonha sossegado, alguns se esforçam para
transformar o devaneio num transtorno, se não numa doença. Desde um
texto de 2002 no "Journal of Contemporary Psychotherapy" (revista de
psicoterapia contemporânea, http://migre.me/cjDUi),
monitoro a ascensão do "transtorno" de devaneio excessivo e
"mal-adaptativo" (ao mesmo tempo, desadaptado e capaz de comprometer
nossa adaptação ao mundo).
Rapidamente, os blogs se multiplicaram -tanto de pessoas se queixando de
seus devaneios excessivos como de médicos interessados em registrar o
novo transtorno e propor uma cura. Dez anos atrás, o devaneio era
considerado como fuga de um provável abuso infantil. Hoje, é possível
ser sonhador sem ter sido abusado; é um alívio.
No fim de 2011, foi publicada, em "Consciousness and Cognition"
(consciência e conhecimento), uma pesquisa detalhando o sofrimento dos
sonhadores compulsivos (http://migre.me/ciyPG): blogs e sites fizeram uma festa.
Aprendemos que os sonhadores de olhos abertos sentem vergonha de sua
condição. Eles se escondem, mas podem ser identificados porque, sem se
dar conta, enquanto sonham, eles atuam seus devaneios em gestos e
palavras (ou seja, falam sozinhos). Enfim, eles precisam ser ajudados
porque tudo isso leva a ansiedade e depressão.
Li recentemente, num blog, a carta de uma mãe preocupada porque o filho,
de sete anos, não para de sonhar em proteger o mundo contra os malvados
ou em distribuir dinheiro aos pobres. Será que, nas próximas décadas, o
devaneio ocupará o lugar do transtorno de deficit de atenção?
Desde 2008 (http://migre.me/ciyZL),
alguns garantem que a fluvoxamina (remédio, em tese, para transtornos
obsessivo-compulsivos) cortaria o devaneio excessivo. Se os laboratórios
decidirem que medicar o devaneio é um bom negócio, que Deus acuda as
crianças.
O devaneio excessivo é o hábito de Dom Quixote, Madame Bovary, dois
terços dos adolescentes, quase todos os autores de novelas e romances
etc. Transformar esse hábito, tão humano, em "transtorno", é uma
tentativa de regular nossas vidas com a desculpa higienista: tudo nos é
imposto para nossa "saúde" e nosso bem. Pararemos de sonhar porque é
mais "saudável" prestar atenção só no que está na agenda de hoje?
No fundo, nada disso me estranha. Desde o século 19, as regras para uma
vida saudável (física e psíquica) são nossa nova moral. E esse ataque
contra o devaneio era previsível: qualquer forma de poder prefere
limitar os sonhos de seus sujeitos.
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* Psicanalista. Escritor. Colunista da Folha
ccalligari@uol.com.br
@ccalligaris
Fonte: Folha on line, 13/12/2012
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