Enzo Bianchi*
Por que há cada vez mais novos jovens
prontos a se lançar às
chamas?
A quem eles querem falar com esse gesto extremo?
O que esperam
obter?
Já corremos o risco de nos acostumarmos: uma notícia de agência retomada de tempos em tempos nas páginas internas, em algumas colunas uma vez por ano no "Dia Mundial pelo Tibete", uma rápida referência às margens de uma visita do Dalai Lama, um box ao lado de um relato de encontros diplomático-comerciais.
Isso é tudo o que chega a nós da tragédia do povo tibetano e do testemunho daqueles que não deixam de gritar, com as suas vidas e com a sua morte, nos nossos ouvidos que se tornaram surdos. Certamente, o sentimento de resignação prevalece quando se mede a impotência diante da realpolitik, mas a consciência nos impede de deixar calar a provocação não violenta dos monges tibetanos, agora já uma centena desde o início do protesto, que decidem pôr fogo em si mesmos para denunciar a opressão do seu povo, da sua cultura, da sua religião.
Eu acredito que os próprios monges sabem que o seu gesto dificilmente ultrapassará as fronteiras e muito menos poderá mudar as decisões do poder. Certamente, algo desperta nas mentes de quem toma conhecimento disso, senão não se explicaria por que as autoridades chinesas estão tentando reprimir o fenômeno, chegando a prender aqueles que o apoiam e encorajam os candidatos ao martírio, mas não podemos nos iludir de que uma maior consciência por parte de poucos pode mudar a situação de opressão do povo tibetano.
Então, por que há cada vez mais novos jovens prontos a se lançar às chamas? A quem eles querem falar com esse gesto extremo? O que esperam obter? E de nossa parte, se estamos convencidos de que não podemos fazer nada para que as coisas mudem, que sentido tem em continuar acompanhando os acontecimentos que perturbam a nossa consciência tranquila?
Na realidade, estamos tão acostumados a medir as ações só com base no resultado, em curto ou longo prazo, que custamos para conceber que alguém decida agir gratuitamente, só porque considera certo fazer isso, sem esperar sucessos ou recompensas. Talvez, então, vale a pena deixar-nos interrogar por esses monges dispostos a consumar a própria vida entre as chamas como incenso.
Ora, as pessoas às quais eles querem falar sobre os meios de comunicação ocidentais, tão distantes, distraídos e preocupados, assim como os seus governos, em manter boas relações; não é a opinião pública mundial, salvo quando algum evento global como as Olimpíadas servem de poderosa caixa de ressonância.
Não, o destinatário desse gesto extremo, que já se tornou quase cotidiano, é o seu próprio povo: com a sua vida e a sua morte, querem afirmar a grandeza de uma religião e de uma cultura que não aceita se curvar ao mal, querem testemunhar a quem está desencorajado pela opressão que se realizam ações porque é justo fazê-las, que existem injustiças que devem ser denunciadas a todo custo, que há valores pelos quais vale a pena dar a vida até a morte.
Essa é a mensagem forte que nós, também, no Ocidente, podemos receber, é a interrogação lancinante que nos leva a repensar as nossas prioridades, a nossa capacidade de reação ao mal, a nossa disponibilidade a pagar um preço por aquilo que para nós não tem preço.
E não acreditemos que essa forma de protesto nasceu nos anos 1960 no Vietnã e se tornou tão ampla na China nos últimos anos: ela não é está ligada ao confronto-choque com um poderoso inimigo externo, expressão de um âmbito ético e cultural diferente. É uma prática antiquísssima, atestada desde a primeira metade do século V na China, com uma coleção de biografias dos ascetas budistas que se imolaram no fogo: esses testemunhos – encontra-se um testemunho decisivo em um capítulo da Sutra do Lótus – revelam que nunca nos encontramos diante de um gesto impulsivo, mas que, ao invés, uma longa prática de ascese e purificação feita de jejuns e meditações preparou o sacrifício extremo de se doar ao Buda pelo bem dos outros.
O mártir que se alimenta e se cobre de incensos e de perfumes para depois arder realiza uma oferta livre e total pela salvação de todos: não visa unicamente ao seu próprio renascimento, mas sim à renovação do mundo. E o faz mediante uma ação não violenta no sentido forte do termo, isto é, uma ação que aceita assumir sobre si a violência sem responder a ela, sem responder à violência com a violência, despedaçando assim a corrente infinita de injustiça reparada com uma injustiça maior. É como se, diante do mal e de quem o comete, o monge afirmasse não só que o malvado não poderá ter o seu corpo, mas também – verdade ainda mais desestabilizante – que ele não conseguirá fazer com que ele assuma a mesma atitude malvada.
Seria inapropriado traçar um paralelo com o servo sofredor de que fala o livro de Isaías, com a atitude de Jesus diante de seus perseguidores ou com os mártires cristãos – que não dão a si mesmos a morte, mas sim a "acolhem" dos outros –, no entanto, essa capacidade de assumir sobre si a violência para extingui-la e, ao mesmo tempo, para professar o que é bom e justo para todos interpela cristãos e não cristãos, nós, pós-modernos sempre tentados a remover a pergunta sobre o que é justo para nos interrogarmos somente sobre a oportunidade do nosso agir: "vale a pena?" tornou-se a nossa única interrogação, quase cada vez mais acompanhada por uma imediata reação negativa.
Esquecemos a fulminante resposta de Pessoa : "Tudo vale a pena, se a alma não é pequena". A maior alma desses jovens monges tibetanos nos lembra disso, se quisermos apenas ouvir o seu grito silencioso, deixando-nos iluminar por aquele fogo não violento.
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* A reflexão é do monge e teólogo italiano Enzo Bianchi, prior e fundador da Comunidade de Bose, em artigo publicado no jornal La Stampa, 16-12-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: IHU on line, 18/12/2012
Fonte: IHU on line, 18/12/2012
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