João Pereira Coutinho*
Existe a crença errônea de que o elitismo conservador se confunde com a atitude do mero antiquário
O mundo está salvo: na última coluna, critiquei brandamente o último livro de Mario Vargas Llosa, "A Civilização do Espetáculo".
Alguns leitores inteligentes não concordaram e escreveram ao cronista.
Com uma carta de apresentação importante: os críticos do presente
crítico também se declaravam "conservadores", ou "liberais", ou até
"conservadores liberais". Não estaria eu a ser demasiado ácido com uma
vaca sagrada da família?
Agradeço todas as mensagens, mas começo por um esclarecimento: "vacas
sagradas", que eu saiba, só na Índia. Vargas Llosa não é uma.
E, pensando melhor, não há razão para tratar brandamente um livro tosco,
que reduz a cultura contemporânea a um espetáculo corrosivo e vazio.
Não que a cultura contemporânea não tenha exemplos abundantes desse espetáculo. Mas ela não se limita a isso.
Eu que o diga: escrevo de Oxford, a poucos dias do Natal. E hoje, em
peregrinação quase religiosa, lá fui à livraria central da cidade, a
velhinha e amada Blackwell.
Primeiras impressões: fiquei esmagado com a qualidade intelectual que
continua a ser produzida por estas bandas. Uma "civilização do
espetáculo"?
Só na cabeça de Vargas Llosa. Não na cabeça de Derek Parfit, Noel
Malcolm ou Alan Ryan. Para citar apenas os três primeiros exemplares que
me receberam logo à chegada.
Começo pelo fim. Alan Ryan é um dos mais notáveis teóricos do
liberalismo e o herdeiro direto de Isaiah Berlin. Mas Ryan acaba de
conseguir o prodígio que sempre escapou a Berlin: publicar uma
monumental história das ideias políticas que será um dia lida e relida
como hoje lemos e relemos os marcos de George Sabine, Quentin Skinner ou
Leo Strauss.
Intitula-se tão simplesmente "On Politics" e os capítulos sobre Locke,
Stuart Mill ou Tocqueville, paixões óbvias de Ryan, já valeriam todo o
livro. Mas não só: nomes estranhos à família ideológica de Ryan, como
Karl Marx e descendência, são tratados com uma seriedade (e
profundidade) que eu não encontro em autores mais à esquerda.
Mas há mais: Noel Malcolm começou como jornalista em Londres. Mas uma
paixão crescente por Thomas Hobbes levou-o a estudar o teórico do
"Leviatã" em profundidade (a obra "Aspects of Hobbes" continua a ser a
referência moderna na matéria).
Pois bem: Malcolm, um homem ainda relativamente jovem, oferece agora a
primeira edição crítica integral do "Leviatã". Nunca essa obra tinha
sido apresentada e interpretada como Noel Malcolm o faz: passo a passo,
confrontando as versões inglesas do texto com as latinas, tudo coroado
pela erudição insana de Malcolm sobre Hobbes.
Por último, o primeiro dos primeiros: Derek Parfit. Sempre que vinha a
Oxford, perguntava a alguns autóctones o que seria feito do professor
Parfit. Eles encolhiam os ombros e repetiam o que no passado se dizia de
A.J. Ayer: poderia ter sido o maior filósofo da sua geração, mas o sexo
o perdeu.
No caso de Parfit, não era o sexo: era um silêncio longo, inexplicável,
temia-se que depressivo ou patológico. Um silêncio que chegou ao fim:
Parfit publicou, em dois volumes, "On What Matters", uma tentativa
assombrosa de conciliar três correntes éticas distintas (o kantianismo, o
consequencialismo e o contratualismo) sob um único princípio
convergente e normativo.
Não deixa de ser irônico que, no mesmo ano em que Vargas Llosa decretava
a sua "civilização do espetáculo", Derek Parfit tenha publicado um
tratado sobre ética que alguns especialistas consideram o mais
importante dos últimos 130 anos.
Moral da história?
Existe a crença errônea de que o elitismo conservador se confunde com a
atitude do mero antiquário (ou reacionário), medrosamente agarrado às
glórias de um passado idílico que só existe na sua imaginação.
Lamento. Esse não é o meu conservadorismo. Como diria Michael Oakeshott,
o conservadorismo não lida com o passado nem com o futuro. Lida com o
presente. E com uma atitude de disponibilidade para desfrutar (e
conservar) esse presente no que ele tem de mais precioso e belo.
Eis a minha resolução para 2013: pedir de empréstimo o belo título de
Parfit e escrever mais vezes sobre aquilo que (ainda) interessa.
Feliz Natal, leitor exigente.
---------------------
* Jornalista português. Colunista da Folha.
Nenhum comentário:
Postar um comentário