Lee Siegel*
As sociedades têm um inconsciente, como as
pessoas, e às vezes as sociedades tomam rumos inconscientes que
horrorizariam as pessoas se elas tomassem consciência de para onde
realmente estão seguindo. Quando Mussolini chegou ao poder,
inocentemente prometeu fazer os trens circularem no horário. Todos
queriam que os trens circulassem no horário. Ninguém teve consciência de
quanto custaria essa pontualidade.
Nos últimos anos, a sociedade americana veio criando um sistema de
dois níveis que está dividindo o país em dois grupos: pessoas vendáveis e
pessoas invendáveis. Esse movimento divisório se desenrola em muitas
áreas da vida americana, mas em nenhuma é mais influente, e venenoso, do
que na educação pública. No entanto, ele parece ser apenas mais uma
técnica benigna para nos tornar mais felizes e mais eficientes.
Já escrevi anteriormente sobre como "ensinar para realizar provas" é
trair uma geração de jovens americanos. A qualidade de inteligência
formal é elevada, e as qualidades de intuição, criatividade e empatia
são desvalorizadas. Isso é perfeito para uma sociedade guiada
estritamente pelas linhas do mercado. Mas é muito ruim para a criação de
uma sociedade de pessoas imaginativas, curiosas, interessantes.
E agora começou a mais recente ofensiva contra O Invendável. Ela se
chama Common Core State Standards (padrões estatais essenciais comuns,
em tradução literal). Trata-se de uma série de indicações de leitura
para alunos do jardim da infância ao ensino secundário. Apesar de
estarem previstos para entrar em vigor somente em 2014, esses padrões já
estão sendo implementados em todo o país. O traço mais marcante das
diretrizes de leitura é sua ênfase em não ficção. Elas dizem que a
maioria dos textos indicados para os estudantes deve ser materiais de
leitura como, segundo um relato confiável, "documentos históricos,
tratados científicos, mapas... receitas e horários de trens". Quando os
estudantes estiverem no segundo grau, dizem as diretrizes, 70% de sua
leitura deveriam ser de não ficção por esses critérios.
Assim, a guerra contra a literatura imaginativa que foi travada
durante as "guerras culturais" dos anos 1990 finalmente atingiu seu
objetivo. Na época, os textos imaginativos, intuitivos, empáticos eram
considerados de pouco valor. Nos anos 1990, essa crença era justificada
pelo argumento de haver muita literatura com um viés contra mulheres e
minorias. Isso, claro, era absurdo, já que, de um lado, tempos
diferentes tinham costumes diferentes, como reza o velho ditado. Mas é
também verdade que textos condenados por serem imperialistas, por
exemplo, não eram nada disso. Mansfield Park, de Jane Austen, era
constantemente atacado pelo que seus detratores alegavam ser atitudes
imperialistas de Austen quando, de fato, o livro era no mínimo um ataque
ao imperialismo, a começar por seu título. Mansfield Park foi onde, em
1771, um tribunal britânico emitiu uma sentença proibindo a posse de
escravos negros - caçados nas Índias Ocidentais ou na África - na
Inglaterra.
Não me passou despercebido na época que os professores mais veementes
na condenação de quase toda literatura ocidental com base em
fundamentos politicamente corretos eram também figurões Wasp (da elite
branca protestante). Suas restrições tiveram o efeito de dificultar para
estudantes de origem humilde o acesso às grandes obras de imaginação.
Isso foi esperto da parte dos figurões Wasp porque a grande literatura é
subversiva da mesma ordem social de cujo topo eles confortavelmente
mandavam. A heroína de Mansfield Park é uma garota pobre solitária.
A mesma dinâmica está ocorrendo no boicote da literatura imaginativa
pelo Common Core, só que desta vez o pretexto não é a virtuosidade
politicamente correta, mas as demandas da nova economia. Vivemos hoje em
uma economia informática, dizem os proponentes do Core. É fundamental
que os estudantes dominem a compreensão de textos informáticos para
prosperarem na nova economia informática. A literatura, eles dizem,
apenas os ajuda na "autoexpressão", que é autoindulgente. Pior, ela
conduz à ineficácia e à queda da produtividade.
Assim, mais uma vez, há pessoas sentadas confortavelmente no topo da
sociedade, que desfrutaram uma educação clássica, enriquecida pela
leitura de todas as grandes obras da literatura, negando essas mesmas
obras à geração atual de jovens. Seja qual for a intenção - e estou
certo de que o caminho para esse destino particular está forrado de boas
intenções -, as consequências estão perfeitamente alinhadas com os
valores do mercado que se apoderaram de todas as áreas da vida
americana. As pessoas que dominam o mundo concreto da informação
ajudarão a impelir o mundo concreto do lucro. As pessoas que se perdem
nas áreas cinzentas confusas e na névoa envolvente de ficção e poesia em
nada contribuem para a economia.
Talvez não seja coincidência que, ao mesmo tempo, as grandes editoras
de livros estejam se fundindo neste país, a ponto de em breve existir
somente uma editora gigante, não diferente do aparato editorial estatal
da antiga União Soviética. O Common Core terá um efeito parecido no
âmbito pessoal, na medida em que funde indivíduos distintos numa
entidade coletora de informações. Mas é a literatura que faz aflorar a
singularidade de cada indivíduo. E é a singularidade individual que um
dia se ergue contra o pensamento único, a estupidez, o assassinato em
massa e diz: Basta! Não surpreende que os comissários soviéticos
preferissem a leitura de mapas e horários à leitura de ficção e poesia.
Na verdade, a literatura (ainda) não foi colocada na ilegalidade, e
os jovens que a desejam procurarão por ela. Mas eu temo pelos jovens que
ainda precisam ser informados de que ela existe, antes de mais nada.
Eles poderão não descobri-la jamais; ou, se o fizerem, poderão
descobri-la quando estiverem mais velhos e sob o peso de
responsabilidades e da falta de tempo e sofisticação para ler obras de
arte exigentes.
O resultado será uma nação de ovelhas que jamais foram ensinadas por
ficção ou poesia, que os dados da vida podem ser mudados, que arranjos
sociais injustos e cruéis são arbitrários, que sofrimento, revezes e
erros são universais, e que, portanto, eles não deveriam se punir por
não ser dentes de engrenagem perfeitos numa sociedade obcecada por
perfeição.
Mas eles saberão ler um horário de trem! E, sem dúvida, a essa altura todos os trens estarão circulando no horário.
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* Jornalista e escritor americano.
Fonte: Estadão on line.
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