terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Por que confiar na Bíblia?

 Amy-Orr-Ewing*
 
Quando o assunto diz respeito à Bíblia, as pessoas costumam ter muitas perguntas e dúvidas. Frequentemente, a imagem que lhes vêm à mente é a de um livro místico e estranhamente incoerente, e às vezes até um pouco assustador. Existe também um sentimento comum de que as pessoas religiosas usam a Bíblia para defender suas próprias opiniões, interpretando-a conforme a conveniência de cada grupo. Afirmações desse tipo podem levar a pessoa a concluir: “Você usa a Bíblia para justificar o que você pensa! Como você pode esperar que eu a considere seriamente?” 
 
A grande questão que está por trás da quantidade cada vez maior de perguntas sobre significado e interpretação é se palavras e textos podem de algum modo, ter algum significado inerente. Afinal, não se trata apenas de uma questão de opinião? Toda interpretação é válida? Este texto transmite algum significado específico ou pode significar o que eu quiser? Meu marido, Francis (apelidado de Frog), entendeu claramente as implicações relacionadas a essa questão alguns anos atrás. Ele foi convidado, como pastor, para o casamento de um amigo, e eu o acompanhei. Depois da cerimônia na igreja, fomos para a recepção, juntamente com os demais convidados, e nos sentamos em mesas diferentes. Enquanto eu conversava com um jovem que estava sentado próximo a mim, meu marido conversava com a namorada do jovem, que havia se sentado perto dele. Falamos de vários assuntos, até que de repente o rapaz parou no meio de uma frase e subitamente me pediu desculpas, dizendo que, por alguma razão, ele não podia mentir para mim. Explicou-me então que antes de vir para o casamento ele e sua namorada haviam decidido trocar de papéis. Ele era um bem-sucedido consultor empresarial e ela era artista. Eles queriam descobrir se as pessoas os tratavam de acordo com seus status, e assim, resolveram trocar de papéis. Depois de conversarmos sobre o motivo que o levou a se sentir desconfortável em mentir para mim e outros assuntos espirituais, ele olhou para os nossos companheiros, na outra mesa, que também conversavam e disse: 
 
— Gostaria de saber se minha namorada conseguiu enganar seu marido...
 
Orei silenciosamente. Mais tarde, Frog me contou que a jovem também não fora capaz de mentir para ele. Eles também conversavam sobre assuntos espirituais até que em um dado momento ela disse:
 
— A razão pela qual eu não sou cristã é que, como estudante de literatura inglesa, não creio que as palavras tenham um “significado transcendental”, de modo que posso dar a Bíblia o significado que eu quiser.
 
Frog pediu a ela que explicasse melhor, e ela disse que acreditava que as palavras não tinham um significado real — a palavra escrita ou falada teria o significado que o leitor ou o ouvinte lhe atribuísse. Para ela, as palavras não tinham nenhum significado definitivo porque não há um Deus (o “elemento transcendental”) para dar significado definitivo às palavras. Meu marido olhou para ela e disse:
 
— Se for assim, ou seja, se as palavras não possuem significado, exceto aquele atribuído a elas pelo leitor ou ouvinte, você concorda se eu disser que entendo o que você acabou de me dizer como: “Eu acredito em Jesus e sou uma cristã”?
 
Ao ouvir isso, ela me pareceu um pouco perturbada, pois compreendeu que seu argumento não resistia ao seu próprio teste. O critério que ela estava empregando para julgar a Bíblia era um critério que escapava ao seu próprio raciocínio.
 
A linguagem como jogo de poder
Acima da rejeição da metanarrativa está a suspeita pós-moderna de que qualquer tentativa de atribuir às palavras um significado objetivo especial implica usar a força e declarar poder sobre outros. O escritor Michel Foucault argumenta que não há qualquer fundamento para o conhecimento, que não existe um “significado transcendental” (isto é, Deus) ao qual todos os “significadores” (seres humanos) possam recorrer definitivamente.1 Esta ideia tem consequências claras e diretas para os cristãos que procuram defender a possibilidade de se deparar com a verdade em Cristo. Mas isso não é tudo. Foucault continua argumentando que existe uma interação essencial entre conhecimento e poder. Lembrando a expressão de Nietzsche, “o desejo de poder”, Foucault chama a procura da verdade de um “desejo de conhecimento” que estabelece sua própria “verdade” arbitrariamente. Esta “verdade” pode então ser imposta a outros, concedendo poder ao orador ou escritor. Pensando desta maneira, o discurso e a busca do conhecimento são considerados uma busca de poder, e este poder é incorporado e expresso em uma linguagem
institucionalizada:2
 
O poder produz conhecimento [...] Não existe relação de poder sem a constituição correspondente de um campo do conhecimento, nem algum conhecimento que não pressuponha e determine ao mesmo tempo relações de poder.3
 
Isto sugere que ao lermos a Bíblia, devemos suspeitar dos escritores, pois eles estão exercendo poder sobre nós, e suspeitar mais ainda de qualquer pessoa que tente nos ajudar a interpretar a Bíblia. Qualquer tentativa de pregar ou explicar a Bíblia não passa de uma tentativa desastrosa de obter poder sobre outra pessoa. Isto me faz lembrar um pregador em Oxford que subiu ao púlpito em um domingo e pregou com todo o coração. À porta da igreja um jovem cumprimentou-o, um tanto constrangido. Ele havia detestado o sermão. Quando lhe perguntaram por que ele não havia gostado da pregação, ele respondeu que considerava ofensiva a maneira como o pregador havia pregado, isto é, com convicção, acreditando que tudo que dizia era verdade. Ele discordava do caráter persuasivo da pregação e desconfiava do poder envolvido. Esta é a objeção pós-moderna ao significado como sendo um poder, expressa em termos simples. Porém, esse raciocínio não resiste ao seu próprio teste. Afinal, alguém ficaria surpreso com o fato de Foucault ser capaz de falar a respeito de relações de poder e palavras sem cair em sua própria armadilha? Como ele pode usar palavras para nos explicar isso sem exercer poder sobre nós? Provavelmente ele seria uma exceção, a única pessoa capaz de nos dizer coisas sem exercer poder sobre nós!
 
A verdade
Outra consequência destas ideias sobre poder e manipulação é a negação do conceito de conhecedor imparcial, o que significa negar qualquer possibilidade de nos colocarmos além da história e da sociedade humana, em uma posição vantajosa, capaz de nos oferecer certo conhecimento. A verdade não é considerada como algo teórico ou objetivo — ao contrário, a verdade é algo “fabricado”, uma “ficção”, um “sistema de procedimentos ordenados para a produção, regulamentação, distribuição, circulação e operação de declarações”.4 Este sistema da verdade parece manter um relacionamento recíproco com os sistemas de poder que o produzem e sustentam. Assim, qualquer tentativa de afirmar a verdade sobre um evento histórico ou sobre qualquer tipo de realidade é vista como jogo de poder. A suspeita é a de que o escritor ou orador esteja tentando manipular ou controlar outros. De acordo com este ponto de vista, a Bíblia pode ser considerada um instrumento de manipulação, usado por pessoas poderosas para controlar outras.
 
Este argumento está sujeito ao mesmo tipo de questionamento. Como alguém que acredita em tal argumentação pode transmiti-la a outra pessoa? Se as palavras são ferramentas de opressão usadas pelas pessoas poderosas para controlar outras, Foucault não está fazendo exatamente a mesma coisa ao tentar convencer as pessoas através de seus livros de filosofia? Mais uma vez, um argumento falha no primeiro teste. Se os céticos pretendem usar essa linha de raciocínio contra a Bíblia, eles precisam ser alertados de que devem aplicá-la também à sua própria análise. Isso me faz lembrar a sogra de uma amiga, que está sempre criticando minha amiga e o marido por não ligarem para ela regularmente, quando ela mesma costuma passar alguns meses viajando sem ligar ou dar notícias para a família. A atitude que ela reprova no filho e na nora é exatamente igual à atitude dela para com eles. No contexto dos relacionamentos humanos, isto é chamado de hipocrisia. Nas discussões filosóficas, é chamado de “objeção especial”, ou seja, algumas regras só se aplicam aos outros, não a mim. Este tipo de abordagem precisa ser desmascarado exatamente pelo que é.

Notas:
 
1. MEGILL, Allan. Prophets of extremity: Nietzsche, Heidegger, Foucault,
Derrida. Londres: University of California Press, 1987. p. 211.
2. FOUCAULT. “The Archaeology of knowledge” e “The order of discourse”. In: YOUNG, Robert, org. Untying the text: a post-structuralist reader. Londres: Routledge, 1981.
3. FOUCAULT. Discipline and punish: the birth of the prison. Trad. Alan Sheridan. Nova Iorque: Vintage Books, 1977. p. 27.
4. FOUCAULT. Truth and Power. In: Power/knowledge: selected interviews
and other writings, 1972-1977. Trad. Colin Gordon, Leo Marshall, John
Mepham e Kate Soper. Nova Iorque: Pantheon Books, 1980. p.133.
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* Amy-Orr-Ewing é diretora do Zacharias Trust, organização que procura explicar as boas novas da salvação em Jesus para pensadores céticos. É formada pela Universidade de Oxford e pelo King’s College, em Londres
Fonte: http://www.ultimato.com.br/
imagem da internet

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