Hélio Schwartsman *
A tragédia de Newtown que resultou na morte de 27
pessoas nos toca mais profundamente do que outros tiroteios em escolas
porque 20 das vítimas eram crianças de apenas 6 ou 7 anos. O atirador
não só roubou a vida de quase três dezenas de seres humanos como também
atentou contra a ideia de infância, que, para nós, modernos, carrega
algo de sagrado.
É interessante que nem sempre foi assim. O historiador Philippe Ariès,
por exemplo, chegou a sustentar que o amor que, hoje, sentimos pelos
nossos filhos é uma criação recente. Durante a Idade Média, diz ele,
crianças eram vistas como adultos em miniatura. Elas podiam ser vendidas
e até enforcadas como adultos, caso cometessem algum crime. Os pais não
ligavam muito se morressem. Não havia nada de específico na infância.
Recentemente, os métodos e certas conclusões de Ariès foram objeto de
duras críticas, muitas das quais parecem procedentes. Mas a noção de
que, da Idade Média para cá, emergiu um novo conceito de infância
permanece solidamente de pé.
No campo das ideias, dois dos principais responsáveis pela mudança são
John Locke (1632-1704) e Jean-Jacques Rousseau (1712-78). O primeiro
veio com a concepção de que a mente humana é uma "tabula rasa", que
precisa ser preenchida com civilização. Já o segundo sustentou o ideal
romântico de que crianças conservam uma espécie de pureza original que
tem de ser protegida da corrupção do mundo adulto.
Embora incompatíveis entre si, ambas as teorias implicam que a infância
tem uma especificidade e abrem as portas para a educação, a convicção de
que podemos e devemos moldar a mente dos pimpolhos.
Pelo que sabemos hoje, tanto a "tabula rasa" como o ideal da pureza
infantil não fazem muito sentido, mas isso agora é irrelevante. A ideia
de que as crianças ocupam um espaço especial -quase sagrado- já está
encravada na modernidade.
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* Colunista da Folha de São Paulo
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