Carlos Orsi*
Dirão que Papai Noel ocultou o 'aniversariante', que o comércio tomou a
data cristã. Mas a raiz do Natal não é o cristianismo. A data já era de
festas antes dele
Tão inevitável quanto o próprio Natal são os excessos que o acompanham:
de gastos, de comida, de bebida, de riso e de uma alegria que parece não
ter outra fonte além da constatação de que, a despeito dos melhores
esforços de nossos sábios e hábeis líderes, o país, a civilização e o
mundo duraram mais um ano.
E, tão inevitável quanto os excessos, há o murmúrio que vem por baixo da
música e do riso, a advertir-nos de que o Natal é uma festa
desvirtuada: Papai Noel tomou o lugar do "aniversariante", o menino de
Belém! E o interesse comercial engoliu a caridade. Deveríamos nos
insurgir contra isso, queixa-se. O Natal deveria voltar a suas raízes
cristãs.
Muitas dessas exortações são, provavelmente, bem intencionadas e, até
certo ponto, salutares. Sempre é bom ter a mão estendida para os
desfavorecidos, principalmente num período de ostentação e fartura,
quando as desigualdades ganham ainda mais relevo.
Mas, ao falarem em "raízes cristãs", as vozes de alerta ignoram que a
vinculação do 25 de dezembro à figura de Jesus de Nazaré é apenas uma
dentre várias. Que a data já estava ligada a um período de festas muito
antes da primeira celebração cristã de Natal registrada pelos romanos,
no ano 334. Segundo o historiador húngaro Geza Vermes, "a chance de
Jesus ter nascido em 25 de dezembro é de 1 em 365 (ou 366, em anos
bissextos)".
Ninguém menos que o papa Bento 16 afirmou, em dezembro de 2009, que "a
festa do Natal atingiu sua forma definitiva no século 4º, quando
substituiu o festival romano de Sol Invictus, o sol invencível".
"Substituiu." A palavra indica que já havia uma festa, à qual o Natal
cristão se sobrepôs. Como, então, falar em "raízes cristãs"? As
verdadeiras raízes são muito mais profundas: mesmo a adoração romana do
Sol Invictus (cuja festa, Dies Natalis Solis Invicti, já incluía até
mesmo o nome "Natal") parece ter sido copiada de cultos orientais
antigos.
Dos símbolos atuais do Natal, a guirlanda e a própria árvore enfeitada
-cuja criação às vezes é atribuída a Lutero- remetem a mitologias que
precedem o cristianismo.
O período em torno de 25 de dezembro era especial, para os povos antigos
da zona temperada do hemisfério Norte, por incluir o solstício de
inverno. A data marca não apenas a noite mais longa do ano como também a
promessa de retorno à vida, que ressurge em meio à escuridão, ao gelo e
à neve: após a maior das noites, os dias vão se tornando cada vez mais
longos. O sol, aos poucos, vence as trevas.
Não é de surpreender, portanto, que celebrações marcadas por fartura,
tendo como tema a alegria e a esperança de uma vida melhor, fossem
populares. E, como praticamente não há civilização no mundo, hoje, que
não seja fruto de um transplante ou de um enxerto da matriz do norte,
também não surpreende que uma celebração tão enraizada na cultura de lá
tenha se universalizado.
O caráter cristão, supostamente essencial, é apenas uma roupagem, talvez
passageira, fruto de um acidente histórico. Em sua raiz mais profunda, a
festa celebra não um personagem ou um sistema, mas a esperança de vida
após o duro inverno, real ou metafórico.
Num mundo cada vez mais plural, todos os que desejarem partilhar do
sentimento deveriam se sentir livres para dar a ele sua face favorita,
incluindo a de um bebê numa manjedoura, mas também a de um velhote de
gorro vermelho ou, até, face nenhuma. Doutrinas têm donos, mas alegria,
esperança e generosidade não admitem monopólio.
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* CARLOS ORSI, 41, é jornalista e escritor, autor do livro de
ensaios "O Livro dos Milagres" (Vieira & Lent) e do romance "Guerra
Justa" (Draco)
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/85495-discurso-de-natal.shtml
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