sábado, 15 de dezembro de 2012

Referência incontornável

FLAVIO MADUREIRA HEINZ*

 

Na última parte da série Visões do Rio Grande, que ao longo deste ano abordou obras de grandes intérpretes da sociedade gaúcha, Cultura focaliza “O Regionalismo Gaúcho”, do historiador americano Joseph Love

Em julho de 2001, Joseph Love, historiador e renomado brasilianista – termo que define os especialistas norte-americanos em estudos sobre o Brasil, notadamente nas ciências sociais – compareceu perante uma plateia de jovens estudantes de história da Unisinos para falar sobre sua obra mais conhecida do público gaúcho, O Regionalismo Gaúcho e as Origens da Revolução de 30. No convite que eu lhe havia formulado, pedi que explicitasse o máximo possível o processo de produção de seu trabalho mais importante. O convite se dava no quadro de uma série de conferências intitulada O Making of da Obra Historiográfica, destinada a trazer ao público universitário experiências diversas de pesquisa e autoria de livros clássicos da historiografia regional. Sereno, simpático e extremamente modesto, Love discorreu e respondeu a perguntas, por quase duas horas, sobre a história de O Regionalismo Gaúcho, tese iniciada ainda na primeira metade dos anos 1960, que o trouxe por duas longas temporadas a Porto Alegre e que o havia colocado em contato com uma documentação riquíssima, embora ainda desorganizada e até então praticamente desconhecida, o acervo pessoal do ex-presidente do Estado Antônio Augusto Borges de Medeiros, sob a guarda do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul. A tese seria concluída em 1967, em Columbia, e sua publicação, nos Estados Unidos, pela Universidade de Stanford, sob o título de Rio Grande do Sul and Brazilian Regionalism, 1882-1930, aconteceria quatro anos depois. Em 1975, o trabalho ganharia, finalmente, sua tradução brasileira, pela Editora Perspectiva, de São Paulo, e daí em diante se tornaria referência incontornável a todos aqueles que se aventurassem pela história política do Rio Grande na Primeira República.

Mas o que torna uma obra importante, especial? As qualidades de O Regionalismo Gaúcho são múltiplas e provavelmente seja um equívoco tentar enumerá-las em espaço tão restrito. É certo que, entre tantas qualidades, Love produziu um painel generoso de mais de 40 anos de uma história política regional articulada à grande política federativa do velho regime oligárquico. Mas não há na obra um Rio Grande isolado, a remoer particularismos e exilar-se do convívio nacional, posturas tão comuns ao tom passadista do discurso regionalista culturalista dos tempos atuais. Ao contrário, na acepção de Love, regionalismo é um “comportamento político” que reconhece o Estado-nação como fato, que não visa à separação política, trata-se de “uma forma de atuação e cálculo que tenta maximizar os favores da patronagem, de obras públicas etc, dentro do sistema do Estado federativo”. O Rio Grande retratado pelo autor é um ator central no sistema político da Velha República, um participante tão eficiente no jogo político oligárquico que, mesmo dispondo de um volume menor de recursos demográfico-eleitorais e econômicos que os outros dois grandes competidores regionais, Minas Gerais e São Paulo, compensa-os, parcialmente, através do acionamento de recursos políticos e de redes de solidariedade eficazes no cenário nacional, basicamente entre os oficiais do Exército brasileiro. Para Love, o regionalismo gaúcho foi um fator que instabilizou a paz federativa, o que ocorreria em diferentes momentos ao longo da Primeira República e, de forma singular e irreversível, no episódio da Revolução de 30.

 


Mas além das muitas questões de fundo que poderiam ser levantadas em relação ao livro, chama-me a atenção outro elemento, por vezes negligenciado, tratado como secundário face à imponência dos “grandes temas” da obra. Refiro-me à qualidade acadêmica, à consistência “científica” do trabalho. De fato, O Regionalismo Gaúcho seria um trabalho impossível nos dias atuais. Sua ambição “panorâmica”, cobrindo mais de quatro décadas de história, e seu domínio, combinado, dos “grandes temas” da política oligárquica nacional à sucessão dos pequenos arranjos de cúpula, estão, infelizmente, na contramão da moderna redação acadêmica. A narrativa densa – e por vezes pesada – de Love, o extraordinário trabalho de levantamento de fontes e a qualidade da pesquisa realizada (o autor teria papel fundamental na organização do acervo Borges de Medeiros, etapa essencial à consecução de seu próprio trabalho), refletem o estágio do desenvolvimento, à época, do meio acadêmico ao qual pertencia, o da universidade norte-americana. A presença de Love (assim como a de tantos outros brasilianistas, à época, em todo o país) teve como efeito a atualização, o aggiornamento de práticas acadêmicas, num ambiente intelectual ainda preso entre o peso da tradição literária e bacharelesca e as primeiras inciativas de formalização e profissionalização do trabalho do historiador. Rigor científico, método, trabalho de fontes, demonstração empírica: são muitas as contribuições indiretas – e normalmente não percebidas ou registradas – de uma obra como O Regionalismo Gaúcho para a qualificação e profissionalização de uma área de pesquisa.

Joseph Love não foi o único a produzir boas obras de história no Rio Grande do Sul, é certo. Grandes historiadores o fizeram, em diferentes momentos, antes e depois dele. Apenas para citar um, Sérgio da Costa Franco publicou, em 1967, mesmo ano em que a tese de Love era defendida nos EUA, uma obra importante da historiografia regional cuja temática era, em boa parte, semelhante àquela perseguida por Love, Júlio de Castilhos e sua Época. A particularidade e o diferencial da obra do historiador norte-americano estão, me parece, na qualidade do trabalho científico realizado, na publicização de suas fontes e no grau de exposição de seus resultados à crítica acadêmica. Nesta perspectiva, o impacto positivo de O Regionalismo Gaúcho lembra o de outra obra “estrangeira” cuja tradução brasileira veio a público mais ou menos à mesma época, 1969, e que obteve muito sucesso no Rio Grande do Sul. Refiro-me a La Colonisation Allemande et le Rio Grande do Sul, de Jean Roche, que originalmente fora apresentada como tese de doutorado à Universidade de Paris, em 1959.

A obra
O Regionalismo Gaúcho e as Origens da Revolução de 30 (1975), de Joseph Love, foi publicado originalmente nos EUA em 1971 sob o título Rio Grande do Sul and Brazilian Regionalism, 1882-1930 a partir de tese de doutorado do autor. A partir do estudo em profundidade de importantes fontes primárias, como o Arquivo Borges de Medeiros, Love define a identidade política do Rio Grande do Sul frente ao Brasil como um “regionalismo” que se conforma a partir dos tempos coloniais.
O Autor
Joseph Love, 74 anos, é professor emérito, hoje aposentado, do Departamento de História da Universidade de Illinois, em Urbana-Champaign. Além de O Regionalismo Gaúcho (1975), é autor de A Locomotiva – São Paulo na Federação Brasileira, 1889 – 1937 (Paz e Terra, 1982). Acaba de publicar The Revolt of the Whip (A Revolta da Chibata, inédito em português), sobre a rebelião dos marinheiros em 1910.


“O Brasil foi uma cara nova para minha geração”

Joseph Love historiador, professor emérito da Universidade de Illinois

Zero Hora – Onde o senhor nasceu e cresceu? Quem eram seus pais? Como foi sua educação?
Joseph Love – Nasci em Austin, capital do Texas. Meu pai era médico, e minha mãe, professora primária. Há uma coincidência entre as histórias do Rio Grande do Sul e do Texas: houve uma república texana independente entre 1836 e 1845, quase no mesmo período da República Rio-grandense. Há outras semelhanças, como a tradição do cowboy, a proximidade de uma fronteira internacional. Fui influenciado por esse background, não sei até que ponto. Tive a educação fundamental no Texas, depois em Harvard, para Stanford e finalmente em Columbia. Naquele tempo, no início dos anos 1960, havia em Columbia uma concentração de especialistas no Brasil. Mas fiquei muito influenciado pela Revolução Cubana nessa época. Assisti a uma palestra de Fidel Castro na Faculdade de Direito de Harvard em meu último ano na universidade. Sou, até certo ponto, um filho de Fidel. (Risos.) Com a chegada de Castro ao poder e a transformação do governo num Estado comunista, a Guerra Fria entrou na América Latina e houve um florescimento de postos acadêmicos especializados em América Latina.

ZH – Na universidade americana, qual era o interesse pelo Brasil antes da Revolução Cubana?
Love – O Brasil foi pouco estudado nessa época. Havia oito a 10 vezes mais mexicanistas do que brasilianistas nos Estados Unidos. O México era o foco porque, com problemas de fronteira, de imigração e outros, o interesse pelo país era maior nos Estados Unidos. O Brasil, por ter uma língua diferente e ficar muito mais distante, era menos estudado. O Brasil foi uma cara nova para minha geração. Visitei o país pela primeira vez em 1961. Depois, em 1964, me transferi para o Brasil a fim de escrever minha tese de doutorado. Minha geração foi a primeira a se especializar no Brasil. Nessa época, foi inventada a palavra “brasilianista”. Desde o começo, enfrentamos um certo desprezo, em parte porque chegamos precisamente no momento do golpe militar e houve suspeição de espionagem.

ZH – Qual foi sua impressão do país por ocasião da primeira visita, em 1961?
Love – Em Harvard, cursei economia e escrevi um estudo sobre a economia brasileira durante o governo Juscelino Kubitschek (1956 – 1961). Foi uma época de grandes progressos, havia o lema dos “50 anos em cinco”. Estudei português na universidade. Depois, decidi concentrar-me em história. Era também a época de Orfeu da Conceição.

ZH – O senhor se refere à peça de Vinicius de Moraes, que deu origem ao filme Orfeu Negro? O senhor viu a peça?
Love – Vi a peça e o filme. Foi uma época de muita criatividade, com Bossa Nova, campanhas de alfabetização de Paulo Freire em Recife. Havia peças teatrais nas ruas, patrocinadas pela União Nacional dos Estudantes (UNE). Para meu projeto acadêmico, ao chegar, obtive ajuda do escritor Francisco Assis Barbosa, autor de biografias de Lima Barreto e de Juscelino que me apresentou a pesquisadores brasileiros. Cheguei a Porto Alegre em outubro de 1964. A situação política era muito deprimente em todo o Brasil. Conheci vários pesquisadores e escritores gaúchos, como Walter Spalding e Arthur Ferreira Filho.

ZH – Dante de Laytano?
Love – Conheci Dante de Laytano, Erico Verissimo e, no Rio, Raymundo Faoro. Depois conheci Sergio da Costa Franco, autor de uma biografia indispensável de Julio de Castilhos (Julio de Castilhos e sua Época, obra focalizada em fevereiro deste ano, neste caderno, na série Visões do Rio Grande). Também travei contato com a literatura gaúcha – li os sete volumes de O Tempo e o Vento, de Erico Verissimo – e estudei a literatura da República Velha, sobretudo as obras de Lima Barreto. Acho que cheguei um pouco antes da profissionalização das disciplinas de história e de ciências sociais. Isso ocorreu com a geração de Helgio Trindade.

ZH – Ao chegar a Porto Alegre, o senhor já sabia qual período da história rio-grandense pretendia pesquisar?
Love – Queria estudar o papel do Estado e da máquina política do Partido Republicano Rio-grandense (PRR). Formulei meu problema nos seguintes termos: o Rio Grande foi um fator de instabilidade durante a República Velha, que se limitou inicialmente ao eixo “café-com-leite” (a chamada política café-com-leite, como era chamada a hegemonia paulista e mineira na política nacional). O Rio Grande entrou na política nacional em 1910, teve importante participação nas eleições de 1922 e 1930 e acabou por derrubar o sistema café-com-leite. Era isso que eu queria estudar. Soube que os papéis de Borges de Medeiros, que morrera recentemente (em 1961), estavam em poder do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul. Quem me chamou atenção para o arquivo de Borges foi George Boehrer, ex-adido cultural da embaixada americana no Rio e autor de Da Monarquia à República: História do Partido Republicano do Brasil (1870 – 1889). Fiz contato com Moysés Vellinho e outros no Rio Grande. Foi por meio de sua intervenção que soube que os papéis de Borges estavam disponíveis, sem que ninguém tivesse estudado esse grande acervo.

ZH – Quando o senhor chegou a Porto Alegre, o arquivo de Borges, além de nunca ter sido estudado, estava desorganizado e era praticamente desprezado pelos historiadores locais. Em que estado o senhor encontrou o acervo?
Love – Não digo que estivesse maltratado, mas estava desorganizado. Criei um índice dos documentos que estudei, posteriormente publicado na Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil, no Rio. Houve outro elemento, o de que Borges ainda era objeto de paixões. Os historiadores locais se interessavam por escrever a favor ou contra o Partido Republicano Rio-grandense. Como eu vinha do planeta Marte (risos), convenci o pessoal de que iria escrever um estudo objetivo. Fui o primeiro a penetrar esse arquivo no sentido de examiná-lo sistematicamente. Depois, consultei, entre outros, os acervos de Joaquim Francisco de Assis Brasil, de Osvaldo Aranha e de Getúlio Vargas, este último ainda em poder de sua filha, Alzira Vargas do Amaral Peixoto. A base inicial foi o arquivo de Borges de Medeiros.

ZH – O que mudou na sua visão sobre o tema de pesquisa a partir do manejo dessas fontes?
Love – Como havia estudado economia na universidade, me interessei também pelos aspectos econômicos da história rio-grandense. Estudei, por exemplo, a política de dirigentes de associações de agricultores e criadores. Tentei apresentar o Rio Grande como um Estado que se interessava em vender charque e arroz ao mercado nacional e não ao mercado internacional, que havia sido o foco do interesse de São Paulo e Minas Gerais. Até certo ponto, os gaúchos eram mais nacionalistas do que internacionalistas. Ao fim da República Velha, Getúlio Vargas criou um banco de desenvolvimento, o Banco do Estado do Rio Grande do Sul (Banrisul), o primeiro banco desse tipo no Brasil. Na Revolução de 30, o Rio Grande não teve o mesmo problema de São Paulo e Minas, muito desprezados por suas ligações com o mercado internacional. O Rio Grande se interessou pelo Brasil e não pelos mercados internacionais. São Paulo havia sido dominado pelos interesses britânicos, enquanto no Rio Grande o investimento estrangeiro foi sobretudo americano. Foi na década de 1920 que banqueiros americanos, de Boston e de Nova York, começaram a penetrar no mercado gaúcho. O mais importante, porém, é a orientação nacional do Rio Grande na Revolução de 30.

ZH – O senhor crê que isso explica o fato de Vargas, figura tão importante na história do Brasil, ter saído de um Estado periférico?
Love – Em parte. Além disso, Vargas foi um gênio da política, apesar de vir de uma tradição autoritária. Não foi um ideólogo, de jeito nenhum, porque sempre agiu no sentido de buscar oportunidades e saber atuar em momentos de crise. Na preparação da Revolução de 30, por exemplo, ele não falou com quase ninguém sobre suas verdadeiras intenções. Seria possível que apoiasse Washington Luís, aguardava a iniciativa dos mineiros.

ZH – A herança ideológica do positivismo influenciou mais as realizações sociais de Vargas, especialmente em seu primeiro governo, do que o contexto político da época, que parecia favorecer a emergência de regimes totalitários?
Love – Da herança do positivismo, o mais importante era a intervenção do Estado na economia e na sociedade. O mais sensível do grupo de Vargas às correntes europeias, Lindolfo Collor, foi o que reproduziu essas preocupações no meio gaúcho. Vargas teve um viés muito pragmático tanto em suas relações internacionais como nas políticas adotadas no interior do Brasil. Mostrou certa simpatia pelos integralistas, mas, no final, aboliu a Ação Integralista Brasileira, adotando algumas de suas ideias, especialmente o autoritarismo. Ele preferia um Estado sem partido a um Estado de partido único. Sempre soube manipular e navegar entre as agremiações políticas nacionais.

ZH – Se o senhor estivesse chegando ao Brasil hoje, o que seria diferente em seu trabalho?
Love – Me concentraria mais na política laboral e trabalhista de Borges de Medeiros. O proletariado foi realmente importante na ideologia dele. Durante a crise de 1917 (ano de agitações e greves operárias em todo o Brasil, durante a I Guerra Mundial), ele aceitou algumas reivindicações dos grevistas. Vale a pena estudar mais essa ação do governo em relação ao proletariado durante a República Velha.

ZH – O senhor vê mudança no interesse pelo Brasil nos meios acadêmicos americanos?
Love – Sou muito otimista nesse ponto. O Brasil é o país mais importante da América Latina e tem uma projeção mundial. Os jornais e as revistas americanas que tratam de política internacional prestam muita atenção ao Brasil. Na Universidade de Illinois temos um novo instituto de estudos brasileiros, o Lemann Institute for Brazilian Studies, constituído com uma doação de US$ 14 milhões do empresário Jorge Paulo Lemann. Além de verba para realizar conferências e distribuir bolsas, agora temos cátedras de história e de economia do Brasil. Há também uma cátedra rotativa para a qual convidamos grandes pesquisadores brasileiros que tenham se distinguido em suas disciplinas para estudar e ensinar em nossa universidade. Em setembro deste ano, realizamos um congresso da Brazilian Studies Association (Brasa) na Universidade de Illinois. É uma organização internacional de brasilianistas, na qual a maioria é de norte-americanos e brasileiros.

Entrevista por LUIZ ANTÔNIO ARAUJO

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* FLAVIO MADUREIRA HEINZ | Professor do Programa de Pós-graduação da PUCRS
Fonte:  http://www.clicrbs.com.br/zerohora/15/12/2012

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