Eli Boscatto*
Dizem que sua obra de ficção é de difícil entendimento e Wallace é um
escritor de ficção. Porém este livro é uma coletânea de textos de não
ficção mais acessíveis e bem humorados, mas trazendo os mesmos temas
centrais da sua ficção, entre eles, o narcisismo como motor da alienação
moderna, o poder destrutivo da ironia como visão de mundo totalizante, o
niilismo travestido de liberdade e inconformidade, o preço espiritual
dos vícios (em especial o vício em entretenimento) e a questão do que
podemos fazer para tentar fugir da prisão de nossas próprias cabeças.
Sobre sua obra de ficção, Wallace numa entrevista de 1993 diz: “A ficção
pode oferecer uma visão de mundo tão sombria quanto desejar, mas para
ser realmente boa ela precisa encontrar uma maneira de, ao mesmo tempo,
retratar o mundo e iluminar as possibilidades de permanecer vivo e
humano dentro dele”.
Wallace foi colaborador de algumas revistas e jornais, mas não se
considerava um jornalista. No entanto faz uma incursão pelo jornalismo
literário em seus ensaios escrevendo sobre a cobertura de alguns
eventos, e com uma observação detalhada, sagaz e bem humorada, vai
registrando o que vê em forma de diário, e partindo da observação do
modo de vida americano (modelo para muitos), acaba por dissecar o modo
de vida contemporâneo.
Em uma Feira Rural no meio-oeste americano em Illinois, onde ele
mesmo passou a infância e adolescência, vai discorrendo sobre o
cotidiano daquela região, onde os cidadãos se movimentam bovinamente
numa paisagem insípida e estéril, daquela esterilidade de onde parece
não brotar nenhuma emoção instigante ou natural. Uma das principais
atrações são as barracas de fast food onde todos se empanturram das mais
estranhas comidas. A relação dos fazendeiros com seus animais em
exposição é apenas do dono para com suas mercadorias, e creio que ele
tem razão quando diz que não se pode ter outro tipo de relação com a
Natureza, quando dela se tira o sustento.
A população rural do meio-oeste vive num isolamento por excesso de planura, distante de tudo, até do vizinho mais próximo, e parece ansiar por multidões, razão do sucesso de eventos como a Feira Rural. Um contraponto à fuga do cotidiano da população das grandes cidades.
A população rural do meio-oeste vive num isolamento por excesso de planura, distante de tudo, até do vizinho mais próximo, e parece ansiar por multidões, razão do sucesso de eventos como a Feira Rural. Um contraponto à fuga do cotidiano da população das grandes cidades.
Ao embarcar num cruzeiro de luxo para o Caribe, onde a expressão
“megacruzeiro” não é empregada à toa, tudo é mega do navio ao serviço,
lhe causa estranheza que sendo Férias uma trégua de coisas desagradáveis
como a consciência da morte e da decomposição, os americanos queiram
justamente passar as férias num imenso mecanismo primordial de morte e
decomposição.
Então Wallace faz uma analogia entre os cuidados obssessivos e os mimos excessivos da tripulação para com os hóspedes-passageiros, e o adornamento pessoal, como sendo formas variadas de fantasia para suprir a necessidade de negação dessa morte, assim como a outra maneira de “triunfar” sobre ela: o empolgamento. E os estímulos para o empolgamento no navio são variados e intensos, fazem parte do pacote. Mas tudo é muito bem conduzido, calculado, a persuasão é refinada, tudo muito profissional a um extremo irritante. Em uma espécie de férias cosméticas, ao invés do trabalho esforçado, a diversão esforçada.
Então Wallace faz uma analogia entre os cuidados obssessivos e os mimos excessivos da tripulação para com os hóspedes-passageiros, e o adornamento pessoal, como sendo formas variadas de fantasia para suprir a necessidade de negação dessa morte, assim como a outra maneira de “triunfar” sobre ela: o empolgamento. E os estímulos para o empolgamento no navio são variados e intensos, fazem parte do pacote. Mas tudo é muito bem conduzido, calculado, a persuasão é refinada, tudo muito profissional a um extremo irritante. Em uma espécie de férias cosméticas, ao invés do trabalho esforçado, a diversão esforçada.
Ao cobrir o Festival da Lagosta do Maine, ele levanta questões complexas por trás da ética sobre a morte cruel de animais para o nosso deleite gustativo, questões nas quais preferimos não pensar porque afinal, gostamos de “comer lagostas”. Porém, ele o faz por interesse genuíno nessas questões, sem tomar partido desse ou daquele, portanto não se pode querer classificá-lo num certo jargão atual muito recorrente.
Em 2005 num ensaio que se tornou viral na internet chamado “Isto é Água”, Wallace em um discurso de paraninfo para uma turma de formandos, partindo de uma parábola sobre dois peixinhos incapazes de perceber a água em que vivem imersos, fala sobre a necessidade de prestar atenção constante ao mundo e exercitar a empatia para conseguir enfrentar a solidão essencial de uma vida adulta, e que podemos buscar outras formas possíveis de liberdade, além daquela liberdade enganosa na qual desejamos ser senhores todo poderosos e absolutos. Para ele, ensinar a pensar é uma pretensão das ciências humanas que não funciona, aprender a pensar teria muito mais a ver com a escolha sobre o que pensar.
Os contos de Kafka para Wallace são engraçados e uma frustração
marcante para ele é tentar ler Kafka com universitários e ser quase
impossível fazê-los perceber que ele é engraçado. Poderia pedir por
exemplo para imaginarem que todos os contos de Kafka tratam de uma
espécie de porta e se visualizarem chegando perto dessa porta batendo
cada vez com mais força em desespero para entrar, precisando disso e,
quando enfim a porta se abre, ela se abre para fora – estávamos o tempo
todo dentro daquilo que queríamos. É a comicidade trágica do absurdo.
“De um certo ponto adiante não há mais retorno. Esse é o ponto que deve ser alcançado.”
Franz Kafka
Franz Kafka
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* Formada em Ciências Políticas e Sociais.
Fonte: http://lounge.obviousmag.org/por_tras_do_espelho/2012/12/10
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