Gianni Vattimo (foto) estudou filosofia na Universidade de Turim e depois na de Heidelberg. Discípulo de Hans-Georg Gadamer, seguiu a corrente hermenêutica. Influenciado também por Martin Heidegger, que lhe ofereceu a “rejeição à concepção objetiva estrutural e estável do Ser”. Desde muito jovem, Vattimo foi professor de Estética na Universidade de Turim. Em 1961 publicou “O conceito de produção em Aristóteles”. Foi professor universitário em Los Angeles e Nova York. É Doutor Honoris Causa pela Universidade de Palermo e pela Universidade de La Plata.
Filósofo do pós-modernismo e militante pelos direitos civis e de gênero, aqui, o intelectual italiano explica a base de seu pensamento filosófico. Discorre sobre o difícil momento do pensamento de esquerda na Europa e demonstra seu otimismo com o desenvolvimento latino-americano. A questão gay, os monopólios midiáticos, a globalização.
“Comunista, pós-moderno e cristão são termos que, de alguma maneira, definem uma perspectiva política, filosófica e existencial, não é verdade? – disse Gianni Vattimo -. São termos contraditórios em aparência, mas acredito que nunca mudei nada em minha vida. Comecei como um católico-comunista, com os católicos de esquerda que já viviam em polêmica com a hierarquia oficial da Igreja. Inclusive, do ponto de vista teórico, como católico-comunista, quando fui à universidade. Estudei filosofia porque não havia faculdade de teologia, nem de política. Nesse momento, os interesses que tinha eram esses dois”.
“Quer dizer que há uma continuidade de interesses teóricos que permanecem. Inclusive, o pós-modernismo, que parece o mais novo, mas quando eu comecei a estudar na universidade, como católico de esquerda, ia buscando um pensamento filosófico que não fosse totalmente escravo da Ilustração, mas que também não fosse reacionário. Nesse momento, existia uma atitude ilustrada que era basicamente anticristã e antirreligiosa, e uma atitude católica que era muito atrasada. Ou seja, de um lado tinha São Tomás, com a metafísica clássica, e, do outro lado, tinha o comunismo marxista. Entretanto, nesse momento, para mim o marxismo era ainda um desenvolvimento da Ilustração em termos de racionalismo histórico”.
“Não concordava com esta solução, e buscava um pensamento crítico da modernidade, que não fosse simplesmente a ideia de voltar ao passado. Então, comecei a estudar Aristóteles, porque era um autor que esteve muito presente em minha juventude católica-tomista, pois tive um diretor espiritual que era muito estudioso de São Tomás. A leitura de Aristóteles, basicamente, não me deixou muita coisa, porque não era uma leitura teoricamente comprometida. Então decidi estudar os críticos da modernidade, como Adorno e a Escola de Frankfurt”
“Finalmente, junto com meu professor Pareyson, que era um grande estético italiano do momento, decidi me dedicar a Nietzsche, que era um crítico da modernidade nada reacionário, embora depois tenha sido politicamente interpretado como mestre dos nazistas. Então, comecei a estudar Nietzsche no sentido de buscar uma crítica da modernidade, que não fosse ligada ao racionalismo ilustrado e com dimensões políticas, obviamente. Efetivamente, marxista não havia sido, porque sempre pensei o marxismo em termos “stalinianos”.
A entrevista é de Verônica Engler, publicada no jornal Página/12, 10-12-2012. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
E como agora se denomina comunista?
Porque não existe mais o comunismo real. Se o comunismo real morreu, que viva o comunismo ideal! Defino o comunismo ideal com os termos de Lênin: eletrificação mais sovietes, ou seja, desenvolvimento econômico produtivo controlado por conselhos populares, por organismos democráticos. Atualmente, insisto sobre o termo comunismo porque me parece que a democracia em toda Europa, no Ocidente, está se dissolvendo, porque as pessoas não possuem mais ideais alternativos de sociedade. Não se pode morrer pelo livre mercado, não é um ideal político pelo qual se sacrifica. As pessoas não vão mais votar porque não acreditam que algo pode ser mudado. Por isso, é necessário revivificar um ideal de sociedade alternativa.
O único ideal de sociedade alternativa que temos é o de uma sociedade onde não há opressão econômica, mas há desenvolvimento e controle popular sobre o que acontece. Obviamente, com Stalin houve muitos problemas. Porém, o próprio Stalin não acreditava que fosse um louco sanguinário, construiu um comunismo de guerra, que era pressionado por todos os poderes em volta, sobretudo, existia uma Alemanha onde se desenvolvia o nazismo. Stalin teve o sonho industrialista compartilhado com o mundo capitalista, e para competir com o mundo capitalista teve que desenvolver um industrialismo forçado.
No começo da libertação, a Rússia era um país agrícola, pastoral, feudal, que nos anos 1950 tornou-se capaz de competir com os Estados Unidos na conquista do espaço. Não tenho vergonha de me denominar comunista por conta disto, porque não posso aceitar toda a propaganda ocidental. Por isso me denomino comunista, o cristão-comunista, o anarco-comunista, porque obviamente não penso na possibilidade de uma revolução comunista mundial hoje, sobretudo, porque os outros são muito fortes. Porém, acredito que se trata de divulgar um ideal de sociedade alternativa. Então, parece-me que é importante trabalhar sem a ilusão de transformar o sistema de um só golpe, mas tentando reduzir o dano, por exemplo, obstaculizando o desenvolvimento industrial em áreas que implique a destruição do meio ambiente. Limitar o prejuízo, este é meu programa político.
Como é o comunismo hermenêutico, “fraco”, que você propõe? Por que seria a nossa única salvação?
É um comunismo pensado no sentido de que não imagina realizar um ideal positivo de estrutura. Chama-se comunismo hermenêutico basicamente sobre a ideia de que não é possível dirigir a sociedade, ou a existência, com proposições científicas, mas que tudo dever ser submetido a uma interpretação. A ciência sobre a qual, atualmente, a Europa se funda é apenas a interpretação de um setor que interpreta o mundo com seus interesses, porque, como dizia Nietzsche, não há fatos, mas apenas interpretações interessadas. A interpretação é feita a partir dos próprios interesses, a partir da própria classe.
Este é o ponto fundamental para não se adotar uma atitude resignada diante daquilo que acontece, como se fosse a verdade. Não é a verdade, é a interpretação que o mundo capitalista oferece para resguardar seus próprios interesses e privilégios. Por isso, o comunismo se chama hermenêutico, não é um comunismo científico, como os marxistas um pouco positivistas, do final do século XIX, haviam pensado. É um comunismo interpretativo, que não se apresenta como uma solução científica, mas se apresenta como uma solução em parte. Interpretação implica olhar o mundo com um projeto de transformação, e nosso projeto de transformação é o comunista: eletrificação mais sovietes.
Por que você fala da globalização no final da metafísica?
O final da metafísica é um termo de Heidegger. Ele pensava que a metafísica veio em direção à objetivação de tudo, inclusive do homem, que se torna apenas força de trabalho, que era o projeto da racionalização industrial, de inícios do século XX, contra o qual Heidegger tomava posição. A globalização me parece que é aquilo que Heidegger tinha previsto como resultado da unificação tecnocientífica do mundo, que impede a liberdade, que acredita que tudo tem que ser regulamentado por posições racionais, científicas, verdadeiras, excluindo tudo o que é interesse ou conflito.
O problema da globalização não é que tudo se integra, mas o fato dela contar com uma unificação do poder. Então, a metafísica, no sentido de Heidegger, é uma ideia de uma racionalidade objetiva, que pode ser conhecida cientificamente e dominar científica e tecnologicamente. A globalização é o final, o ponto de chegada da metafísica. Por razões econômicas, a tendência é em direção a uma integração cada vez mais completa e total, que destrói toda alternativa, porque uma alternativa causa desordem. Heidegger tem uma frase que diz: “A verdadeira emergência é a falta de emergência”, quando não acontece nada. A globalização é a unificação do mundo sob imperativos econômicos pretensamente científicos e neutros, sendo que não os são.
De que maneira você recupera a ética cristã antiga, divorciada historicamente das ideias que a hierarquia eclesiástica optou?
A ética cristã sempre foi condicionada pelo fato de que a Igreja católica, as igrejas, tem sido estruturas de poder. Eu não sei se existe ética cristã, existe uma fé cristã. Ou seja, significa confiar numa entidade superior, da qual não sabemos nada, mas que precisamos admiti-la, pois caso contrário não podemos explicar nossa liberdade. Meu cristianismo depende do fato de que não posso imaginar uma liberdade do humano, a não ser como uma liberdade transcendente.
Eu o chamo de Deus, mas não sei se é o Deus da metafísica grega, se é o Deus cristão. E como não posso falar deste Deus em termos racionais, pois, se assim fosse, teria que inclui-lo numa cadeia de racionalidade, posso falar deste Deus somente em termos mitológicos, contudo, as mitologias são muitas. Então, basicamente aceito mitologias e não afirmo a superioridade de uma sobre as outras. Não prefiro a mitologia cristã porque se for comparada é superior. Eu a aceito tentando realizar o melhor que me aparece nela, que é o amor ao próximo. Penso que meu cristianismo é a fé numa mitologia originária, que me permite pensar-me como ser livre, mas não dentro de princípios de uma ética natural, que seriam fundados racionalmente. A ética compartilhada é uma questão de costume, de tradição, de negociação. Não há nenhuma lei absolutamente natural, nem sequer a do homicídio, porque com o problema da eutanásia, da sobrevivência artificial, caso alguém me peça que o ajude a morrer, pois não tolera mais, tento explicar-lhe que me parece que é melhor viver, mas caso queira morrer, que morra, e se precisar de ajuda por estar paralisado, eu o ajudo.
Posso argumentar que é melhor viver num mundo de caridade, do que num mundo de violência, mas não sei se é uma coisa racional absoluta, não tenho como demonstrar que preciso amar o próximo. Creio nisso apenas porque recebi uma herança que condiciona minha existência, e parece ser a melhor possibilidade para mim, mas não para todo o mundo.
A ética cristã tem essa ideia de respeitar uma lei natural.
Pessoalmente, eu sou homossexual. Por isso, sou carente de caridade? Serei carente de caridade se obrigar alguém a fazer algo que não gosta. Tento respeitar as leis, como as do trânsito, porque não quero provocar acidentes. Entretanto, não acredito que haja algo naturalíssimo, que seja um dever natural ser heterossexual. O Papa acredita que sempre pode ordenar imperativos em nome de uma natureza humana. Por que precisa impor a ética cristã, inclusive para outros que não são cristãos? Por exemplo, quando alguém quer se divorciar, quem disse que a família é por natureza indissolúvel, onde está escrito? Jesus nunca disse isto.
Quando é possível comandar isto em nome da natureza, a Igreja se sente legitimada para também se impor sobre os não crentes. Toda esta ideia de uma ética natural me parece absolutamente absurda. Eu sou partidário de uma ética respeitosa dos costumes. Para mim o problema do cristianismo é apenas da questão da fé, um pouco como pensavam os protestantes, só a fé salva. Esta tradição cristã, ocidental, da qual faço parte, inclui muitíssimas alternativas pelas quais eu posso escolher. Parece-me que este problema da ética é sempre um problema de poder. Se existem princípios absolutos, eles podem ser impostos, mas eu não quero impô-los a ninguém, apenas acredito que preciso respeitar o outro, e espero que o outro me respeite.
Você disse que o problema gay é essencialmente socioeconômico. Por que para você parece que isto seja assim?
Minha experiência imediata é que eu sou um gay pobre na Itália, tenho problemas porque podem me despedir do trabalho. Na Itália, conheço muitos ricos que são casados (com mulheres), criam uma grande família, e depois compram uma casa em Marrocos, onde tem seus amantes (homens). Por que eles podem se permitir a isto e eu não? Porque é um problema de dinheiro, socioeconômico.
Contudo, não acontece o mesmo no caso dos heterossexuais?
Obviamente, mas o problema gay é um problema socioeconômico, pois conta com os problemas de famílias, de heranças. (N. R. Na Itália não existe o casamento entre pessoas do mesmo sexo). Não é um problema natural, é um problema em sociedades como a nossa, em que a herança da família vai para os filhos. Por exemplo, hoje existem casais homossexuais que contam com uma riqueza em comum, mas que, como não são reconhecidos, quando um dos dois morre, vem a família natural e fica com tudo, e o outro integrante do casal fica sem nada.
Em sociedades onde não existem estas leis de herança, isso tudo não acontece. Por um lado percebe-se que, em nosso mundo, os gays ricos vivem melhor, porque podem se permitir uma multiplicidade de formas de vida. Eu, como sou um pequeno burguês, posso ter apenas uma casa, e em apenas uma casa tenho que viver ou com um homem, ou com uma mulher. Caso possa ter três casas, posso viver numa com uma mulher, em outra com um homem, e na outra com um cavalo, por exemplo. Obviamente, eu não acredito nem sequer no casamento homossexual. No entanto, a meu ver, as pessoas possuem o direito de viver com os mesmos direitos dos outros, quando são homossexuais. Há uma série de direitos civis que são negados para os homossexuais, pelo menos na Itália, até agora.
Você diz que a proliferação dos meios de comunicação serviria para fomentar espíritos mais livres, já que as pessoas não estariam submetidas a uma única voz emissora. Em que medida ter cento e vinte canais de televisão melhora a capacidade das pessoas para discernirem?
É melhor contar com mais vozes emissoras. É importante que não pertençam ao mesmo dono. A multiplicação dos meios de comunicação parece ser positiva para nos libertar do monopólio dos mesmos. Não é possível imaginar um desenvolvimento puramente tecnológico, o desenvolvimento tem que ser político, ou seja, é preciso limitar a propriedade ou regulamentar a concorrência neste terreno, exatamente aquilo que os donos dos meios de comunicação não querem. A lei pública é a que coloca limites para que não matem uns aos outros. Não obstante, a lei pública tem que ir além do liberalismo total. Em muitos sentidos, a multiplicação pura e simples das tecnologias comunicativas precisa contar com uma regra política. E a regra política é colocar limites, e não simplesmente que façam tudo o que queiram.
Na Europa, os setores progressistas já não contam com um projeto de transformação?
Sim, mas são setores bem pequenos. Na Europa, o que cada vez mais se difunde são esquerdas mais próximas do centro, que se resignam a fazer pequeninas reformas. Por exemplo, Hollande venceu as eleições na França, mas não acredito que esteja fazendo uma política muito progressista, porque é condicionado pelo espectro das regras financeiras internacionais. Fazem e dizem as mesmas coisas, embora alguns sejam de direita e outros acreditam ser de centro-esquerda.
A questão agora é que há um pretenso progressismo, que parece ser a única maneira para as esquerdas ou para a centro-esquerdas europeias vencer as eleições. É como dizer, “se você pretende entrar no governo de um país, precisa se tornar amigo dos banqueiros, inclusive, os de esquerda precisam ser amigos dos banqueiros”, mas na medida em que são amigos dos banqueiros, perdem todo o esquerdismo. Isto é o que aconteceu com o Partido Comunista Italiano, que se transformou. E como esquerdista digo que a única política possível para uma esquerda é fazer um bom programa de oposição. Eu me sinto comprometido religiosamente a ser revolucionário, sem imaginar que vou tomar o poder, eu posso somente tentar limitar o estrago, colocar limites.
Como outros intelectuais europeus, você enxerga com grande simpatia as mudanças que estão ocorrendo na América Latina. Quais são as questões que parecem ser as mais interessantes para você?
Eu sou um dos grandes chavistas europeus. Basicamente, a única novidade que vejo na política mundial, como eu a conheço, como a vivi nas últimas décadas, acontece na América Latina, pois outros grandes países em desenvolvimento, como China e Índia, neste momento, simplesmente imitam o sistema capitalista. Na América Latina houve a mudança de alguns regimes sociais, obviamente começando com Cuba, do grande Fidel, do qual eu sou um admirador total, absoluto. Em seguida, continuou com Chávez, com Lula, com Evo Morales. E acredito que Cristina também é uma parte desta transformação da América Latina.
Concebo a América Latina com todas estas novidades, como a possível força política mundial que pode evitar o triunfo total do imperialismo norte-americano, mundial, globalizado. Por exemplo, Lula foi ao Irã para conversar com Ahmadinejad, algo que um norte-americano nunca tinha feito, ou seja, não importa se imediatamente a Europa se transforma, mas o equilíbrio mundial precisa de um polo anti-imperialista que hoje é, sobretudo, América Latina. Parece-me que é importante uma América Latina cada vez mais forte e democrática, que se oponha à globalização capitalista total. A possibilidade para que a Europa não seja simplesmente uma colônia norte-americana, é a de que haja uma América Latina forte.
Filósofo do pós-modernismo e militante pelos direitos civis e de gênero, aqui, o intelectual italiano explica a base de seu pensamento filosófico. Discorre sobre o difícil momento do pensamento de esquerda na Europa e demonstra seu otimismo com o desenvolvimento latino-americano. A questão gay, os monopólios midiáticos, a globalização.
“Comunista, pós-moderno e cristão são termos que, de alguma maneira, definem uma perspectiva política, filosófica e existencial, não é verdade? – disse Gianni Vattimo -. São termos contraditórios em aparência, mas acredito que nunca mudei nada em minha vida. Comecei como um católico-comunista, com os católicos de esquerda que já viviam em polêmica com a hierarquia oficial da Igreja. Inclusive, do ponto de vista teórico, como católico-comunista, quando fui à universidade. Estudei filosofia porque não havia faculdade de teologia, nem de política. Nesse momento, os interesses que tinha eram esses dois”.
“Quer dizer que há uma continuidade de interesses teóricos que permanecem. Inclusive, o pós-modernismo, que parece o mais novo, mas quando eu comecei a estudar na universidade, como católico de esquerda, ia buscando um pensamento filosófico que não fosse totalmente escravo da Ilustração, mas que também não fosse reacionário. Nesse momento, existia uma atitude ilustrada que era basicamente anticristã e antirreligiosa, e uma atitude católica que era muito atrasada. Ou seja, de um lado tinha São Tomás, com a metafísica clássica, e, do outro lado, tinha o comunismo marxista. Entretanto, nesse momento, para mim o marxismo era ainda um desenvolvimento da Ilustração em termos de racionalismo histórico”.
“Não concordava com esta solução, e buscava um pensamento crítico da modernidade, que não fosse simplesmente a ideia de voltar ao passado. Então, comecei a estudar Aristóteles, porque era um autor que esteve muito presente em minha juventude católica-tomista, pois tive um diretor espiritual que era muito estudioso de São Tomás. A leitura de Aristóteles, basicamente, não me deixou muita coisa, porque não era uma leitura teoricamente comprometida. Então decidi estudar os críticos da modernidade, como Adorno e a Escola de Frankfurt”
“Finalmente, junto com meu professor Pareyson, que era um grande estético italiano do momento, decidi me dedicar a Nietzsche, que era um crítico da modernidade nada reacionário, embora depois tenha sido politicamente interpretado como mestre dos nazistas. Então, comecei a estudar Nietzsche no sentido de buscar uma crítica da modernidade, que não fosse ligada ao racionalismo ilustrado e com dimensões políticas, obviamente. Efetivamente, marxista não havia sido, porque sempre pensei o marxismo em termos “stalinianos”.
A entrevista é de Verônica Engler, publicada no jornal Página/12, 10-12-2012. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
E como agora se denomina comunista?
Porque não existe mais o comunismo real. Se o comunismo real morreu, que viva o comunismo ideal! Defino o comunismo ideal com os termos de Lênin: eletrificação mais sovietes, ou seja, desenvolvimento econômico produtivo controlado por conselhos populares, por organismos democráticos. Atualmente, insisto sobre o termo comunismo porque me parece que a democracia em toda Europa, no Ocidente, está se dissolvendo, porque as pessoas não possuem mais ideais alternativos de sociedade. Não se pode morrer pelo livre mercado, não é um ideal político pelo qual se sacrifica. As pessoas não vão mais votar porque não acreditam que algo pode ser mudado. Por isso, é necessário revivificar um ideal de sociedade alternativa.
O único ideal de sociedade alternativa que temos é o de uma sociedade onde não há opressão econômica, mas há desenvolvimento e controle popular sobre o que acontece. Obviamente, com Stalin houve muitos problemas. Porém, o próprio Stalin não acreditava que fosse um louco sanguinário, construiu um comunismo de guerra, que era pressionado por todos os poderes em volta, sobretudo, existia uma Alemanha onde se desenvolvia o nazismo. Stalin teve o sonho industrialista compartilhado com o mundo capitalista, e para competir com o mundo capitalista teve que desenvolver um industrialismo forçado.
No começo da libertação, a Rússia era um país agrícola, pastoral, feudal, que nos anos 1950 tornou-se capaz de competir com os Estados Unidos na conquista do espaço. Não tenho vergonha de me denominar comunista por conta disto, porque não posso aceitar toda a propaganda ocidental. Por isso me denomino comunista, o cristão-comunista, o anarco-comunista, porque obviamente não penso na possibilidade de uma revolução comunista mundial hoje, sobretudo, porque os outros são muito fortes. Porém, acredito que se trata de divulgar um ideal de sociedade alternativa. Então, parece-me que é importante trabalhar sem a ilusão de transformar o sistema de um só golpe, mas tentando reduzir o dano, por exemplo, obstaculizando o desenvolvimento industrial em áreas que implique a destruição do meio ambiente. Limitar o prejuízo, este é meu programa político.
Como é o comunismo hermenêutico, “fraco”, que você propõe? Por que seria a nossa única salvação?
É um comunismo pensado no sentido de que não imagina realizar um ideal positivo de estrutura. Chama-se comunismo hermenêutico basicamente sobre a ideia de que não é possível dirigir a sociedade, ou a existência, com proposições científicas, mas que tudo dever ser submetido a uma interpretação. A ciência sobre a qual, atualmente, a Europa se funda é apenas a interpretação de um setor que interpreta o mundo com seus interesses, porque, como dizia Nietzsche, não há fatos, mas apenas interpretações interessadas. A interpretação é feita a partir dos próprios interesses, a partir da própria classe.
Este é o ponto fundamental para não se adotar uma atitude resignada diante daquilo que acontece, como se fosse a verdade. Não é a verdade, é a interpretação que o mundo capitalista oferece para resguardar seus próprios interesses e privilégios. Por isso, o comunismo se chama hermenêutico, não é um comunismo científico, como os marxistas um pouco positivistas, do final do século XIX, haviam pensado. É um comunismo interpretativo, que não se apresenta como uma solução científica, mas se apresenta como uma solução em parte. Interpretação implica olhar o mundo com um projeto de transformação, e nosso projeto de transformação é o comunista: eletrificação mais sovietes.
Por que você fala da globalização no final da metafísica?
O final da metafísica é um termo de Heidegger. Ele pensava que a metafísica veio em direção à objetivação de tudo, inclusive do homem, que se torna apenas força de trabalho, que era o projeto da racionalização industrial, de inícios do século XX, contra o qual Heidegger tomava posição. A globalização me parece que é aquilo que Heidegger tinha previsto como resultado da unificação tecnocientífica do mundo, que impede a liberdade, que acredita que tudo tem que ser regulamentado por posições racionais, científicas, verdadeiras, excluindo tudo o que é interesse ou conflito.
O problema da globalização não é que tudo se integra, mas o fato dela contar com uma unificação do poder. Então, a metafísica, no sentido de Heidegger, é uma ideia de uma racionalidade objetiva, que pode ser conhecida cientificamente e dominar científica e tecnologicamente. A globalização é o final, o ponto de chegada da metafísica. Por razões econômicas, a tendência é em direção a uma integração cada vez mais completa e total, que destrói toda alternativa, porque uma alternativa causa desordem. Heidegger tem uma frase que diz: “A verdadeira emergência é a falta de emergência”, quando não acontece nada. A globalização é a unificação do mundo sob imperativos econômicos pretensamente científicos e neutros, sendo que não os são.
De que maneira você recupera a ética cristã antiga, divorciada historicamente das ideias que a hierarquia eclesiástica optou?
A ética cristã sempre foi condicionada pelo fato de que a Igreja católica, as igrejas, tem sido estruturas de poder. Eu não sei se existe ética cristã, existe uma fé cristã. Ou seja, significa confiar numa entidade superior, da qual não sabemos nada, mas que precisamos admiti-la, pois caso contrário não podemos explicar nossa liberdade. Meu cristianismo depende do fato de que não posso imaginar uma liberdade do humano, a não ser como uma liberdade transcendente.
Eu o chamo de Deus, mas não sei se é o Deus da metafísica grega, se é o Deus cristão. E como não posso falar deste Deus em termos racionais, pois, se assim fosse, teria que inclui-lo numa cadeia de racionalidade, posso falar deste Deus somente em termos mitológicos, contudo, as mitologias são muitas. Então, basicamente aceito mitologias e não afirmo a superioridade de uma sobre as outras. Não prefiro a mitologia cristã porque se for comparada é superior. Eu a aceito tentando realizar o melhor que me aparece nela, que é o amor ao próximo. Penso que meu cristianismo é a fé numa mitologia originária, que me permite pensar-me como ser livre, mas não dentro de princípios de uma ética natural, que seriam fundados racionalmente. A ética compartilhada é uma questão de costume, de tradição, de negociação. Não há nenhuma lei absolutamente natural, nem sequer a do homicídio, porque com o problema da eutanásia, da sobrevivência artificial, caso alguém me peça que o ajude a morrer, pois não tolera mais, tento explicar-lhe que me parece que é melhor viver, mas caso queira morrer, que morra, e se precisar de ajuda por estar paralisado, eu o ajudo.
Posso argumentar que é melhor viver num mundo de caridade, do que num mundo de violência, mas não sei se é uma coisa racional absoluta, não tenho como demonstrar que preciso amar o próximo. Creio nisso apenas porque recebi uma herança que condiciona minha existência, e parece ser a melhor possibilidade para mim, mas não para todo o mundo.
A ética cristã tem essa ideia de respeitar uma lei natural.
Pessoalmente, eu sou homossexual. Por isso, sou carente de caridade? Serei carente de caridade se obrigar alguém a fazer algo que não gosta. Tento respeitar as leis, como as do trânsito, porque não quero provocar acidentes. Entretanto, não acredito que haja algo naturalíssimo, que seja um dever natural ser heterossexual. O Papa acredita que sempre pode ordenar imperativos em nome de uma natureza humana. Por que precisa impor a ética cristã, inclusive para outros que não são cristãos? Por exemplo, quando alguém quer se divorciar, quem disse que a família é por natureza indissolúvel, onde está escrito? Jesus nunca disse isto.
Quando é possível comandar isto em nome da natureza, a Igreja se sente legitimada para também se impor sobre os não crentes. Toda esta ideia de uma ética natural me parece absolutamente absurda. Eu sou partidário de uma ética respeitosa dos costumes. Para mim o problema do cristianismo é apenas da questão da fé, um pouco como pensavam os protestantes, só a fé salva. Esta tradição cristã, ocidental, da qual faço parte, inclui muitíssimas alternativas pelas quais eu posso escolher. Parece-me que este problema da ética é sempre um problema de poder. Se existem princípios absolutos, eles podem ser impostos, mas eu não quero impô-los a ninguém, apenas acredito que preciso respeitar o outro, e espero que o outro me respeite.
Você disse que o problema gay é essencialmente socioeconômico. Por que para você parece que isto seja assim?
Minha experiência imediata é que eu sou um gay pobre na Itália, tenho problemas porque podem me despedir do trabalho. Na Itália, conheço muitos ricos que são casados (com mulheres), criam uma grande família, e depois compram uma casa em Marrocos, onde tem seus amantes (homens). Por que eles podem se permitir a isto e eu não? Porque é um problema de dinheiro, socioeconômico.
Contudo, não acontece o mesmo no caso dos heterossexuais?
Obviamente, mas o problema gay é um problema socioeconômico, pois conta com os problemas de famílias, de heranças. (N. R. Na Itália não existe o casamento entre pessoas do mesmo sexo). Não é um problema natural, é um problema em sociedades como a nossa, em que a herança da família vai para os filhos. Por exemplo, hoje existem casais homossexuais que contam com uma riqueza em comum, mas que, como não são reconhecidos, quando um dos dois morre, vem a família natural e fica com tudo, e o outro integrante do casal fica sem nada.
Em sociedades onde não existem estas leis de herança, isso tudo não acontece. Por um lado percebe-se que, em nosso mundo, os gays ricos vivem melhor, porque podem se permitir uma multiplicidade de formas de vida. Eu, como sou um pequeno burguês, posso ter apenas uma casa, e em apenas uma casa tenho que viver ou com um homem, ou com uma mulher. Caso possa ter três casas, posso viver numa com uma mulher, em outra com um homem, e na outra com um cavalo, por exemplo. Obviamente, eu não acredito nem sequer no casamento homossexual. No entanto, a meu ver, as pessoas possuem o direito de viver com os mesmos direitos dos outros, quando são homossexuais. Há uma série de direitos civis que são negados para os homossexuais, pelo menos na Itália, até agora.
Você diz que a proliferação dos meios de comunicação serviria para fomentar espíritos mais livres, já que as pessoas não estariam submetidas a uma única voz emissora. Em que medida ter cento e vinte canais de televisão melhora a capacidade das pessoas para discernirem?
É melhor contar com mais vozes emissoras. É importante que não pertençam ao mesmo dono. A multiplicação dos meios de comunicação parece ser positiva para nos libertar do monopólio dos mesmos. Não é possível imaginar um desenvolvimento puramente tecnológico, o desenvolvimento tem que ser político, ou seja, é preciso limitar a propriedade ou regulamentar a concorrência neste terreno, exatamente aquilo que os donos dos meios de comunicação não querem. A lei pública é a que coloca limites para que não matem uns aos outros. Não obstante, a lei pública tem que ir além do liberalismo total. Em muitos sentidos, a multiplicação pura e simples das tecnologias comunicativas precisa contar com uma regra política. E a regra política é colocar limites, e não simplesmente que façam tudo o que queiram.
Na Europa, os setores progressistas já não contam com um projeto de transformação?
Sim, mas são setores bem pequenos. Na Europa, o que cada vez mais se difunde são esquerdas mais próximas do centro, que se resignam a fazer pequeninas reformas. Por exemplo, Hollande venceu as eleições na França, mas não acredito que esteja fazendo uma política muito progressista, porque é condicionado pelo espectro das regras financeiras internacionais. Fazem e dizem as mesmas coisas, embora alguns sejam de direita e outros acreditam ser de centro-esquerda.
A questão agora é que há um pretenso progressismo, que parece ser a única maneira para as esquerdas ou para a centro-esquerdas europeias vencer as eleições. É como dizer, “se você pretende entrar no governo de um país, precisa se tornar amigo dos banqueiros, inclusive, os de esquerda precisam ser amigos dos banqueiros”, mas na medida em que são amigos dos banqueiros, perdem todo o esquerdismo. Isto é o que aconteceu com o Partido Comunista Italiano, que se transformou. E como esquerdista digo que a única política possível para uma esquerda é fazer um bom programa de oposição. Eu me sinto comprometido religiosamente a ser revolucionário, sem imaginar que vou tomar o poder, eu posso somente tentar limitar o estrago, colocar limites.
Como outros intelectuais europeus, você enxerga com grande simpatia as mudanças que estão ocorrendo na América Latina. Quais são as questões que parecem ser as mais interessantes para você?
Eu sou um dos grandes chavistas europeus. Basicamente, a única novidade que vejo na política mundial, como eu a conheço, como a vivi nas últimas décadas, acontece na América Latina, pois outros grandes países em desenvolvimento, como China e Índia, neste momento, simplesmente imitam o sistema capitalista. Na América Latina houve a mudança de alguns regimes sociais, obviamente começando com Cuba, do grande Fidel, do qual eu sou um admirador total, absoluto. Em seguida, continuou com Chávez, com Lula, com Evo Morales. E acredito que Cristina também é uma parte desta transformação da América Latina.
Concebo a América Latina com todas estas novidades, como a possível força política mundial que pode evitar o triunfo total do imperialismo norte-americano, mundial, globalizado. Por exemplo, Lula foi ao Irã para conversar com Ahmadinejad, algo que um norte-americano nunca tinha feito, ou seja, não importa se imediatamente a Europa se transforma, mas o equilíbrio mundial precisa de um polo anti-imperialista que hoje é, sobretudo, América Latina. Parece-me que é importante uma América Latina cada vez mais forte e democrática, que se oponha à globalização capitalista total. A possibilidade para que a Europa não seja simplesmente uma colônia norte-americana, é a de que haja uma América Latina forte.
-----------------
Fonte: http://www.ihu.unisinos.br/12/12/2012
Nenhum comentário:
Postar um comentário