LUÍS ANTÔNIO GIRON*
O filme de Peter Jackson atrai fãs por ser fiel à carga religiosa da saga de J.R.R Tolkien
Mas voltemos à alucinação. Consigo perceber uma cruz invisível
atravessando todas as sequências. A cruz não se encontra estampada nos
trajes dos elfos e não está fincada no topo da Montanha Solitária, mas é
como estivesse lá, sub-reptícia, uma marca d’água. É como se Tolkien
houvesse subtraído o símbolo mais ostensivo do Cristianismo - talvez
porque fora utilizado militarmente durante as Cruzadas - para que
viessem à tona os valores que a cruz oculta e ofusca.
Assim, o jogo de ausência e presença simbólica da religião no filme e
na obra de Tolkien é tão sutil como insidioso. Não apenas Tolkien faz
uma defesa dos fundamentos cristãos, como sobretudo enfatiza a beleza e a
aura divina do catolicismo. Isso se dá não só porque Tolkien era um
católico fervoroso que trabalhou ao abrigo da Universidade Oxford –
assim como seu amigo C.S. Lewis, autor das Crônicas de Nárnia,
outra manifestação cristã (Lewis era anglicano, o que não deixa de ser
uma forma de catolicismo desprovida de papa) sob a forma de alegoria
fantástica. Tolkien e Lewis acreditavam na literatura como um estágio
necessário para a transformação espiritual da humanidade e sua elevação
aos rituais mais belos... que se encontram no Vaticano, cuja origem está
na ritualística pomposa do Império Romano.
Tolkien fez o seu catolicismo penetrar no romance O Hobbit (1937) e na sua sequência, a trilogia de romances Senhor dos Anéis
(1954-1955). Embora ele quisesse, no fim das contas, narrar uma boa
história, esperava que seus leitores evoluíssem espiritualmente com ela.
Dizia que um dos objetos “subcriativos” de seu projeto era “a
elucidação da verdade, e o encorajamento da boa moral neste mundo real,
através do antigo artifício de exemplificá-las em personificações pouco
conhecidas, que podem tender a prová-las”. A citação está no livro Encontrando Deus em O Hobbit
(Thomas Nelson, 200 páginas, R$ 29,90), de tolkienólogo Jim Ware, um
dos muitos lançamentos “místicos” e de autoajuda (ou autoilusão) na
esteira do lançamento do filme de Peter Jackson. Jim Ware diz que
garante que o leitor “vai encontrar Deus” ao ler O Hobbit. Talvez isso seja difícil. Mais fácil é encontrar os preceitos da Cúria Romana na saga.
Aqui me permito um desvio sobre a composição das obras, que ajudará a
compreender melhor o processo criativo e a crença de Tolkien. O Hobbit
é um prelúdio da trilogia do Anel, e nesse sentido mantém um estreito
parentesco espiritual e estrutural com a tetralogia operística O Anel dos Nibelungos
(1876), de Richard Wagner, com seu prólogo e a saga dos deuses
dominados pelo ouro do rio Reno (Wagner foi acusado por Nietzsche de se
render ao catolicismo bávaro ao fim da vida).
No ensaio Explorando o universo do Hobbit (Lafonte, 258 páginas, R$ 29,90), o medievalista (como Tolkien) Corey Olsen afirma que Tolkien revisou O Hobbit,
pensado inicialmente como um livro infantil, com o objetivo de ampliar a
história da Terra-média e inseri-lo na composição final de Senhor dos Anéis.
Alterou, por exemplo, o encontro do Gollum com Bilbo Bolseiro, para que
o achado do anel ganhasse mais consistência. Na versão original, Bilbo,
um depositório inconsciente da ética católica, apossou-se do anel e se
despediu do Gollum de maneira amistosa, não sem uma dose de culpa, já
que o Gollum não havia notado o furto. Na nova versão, o Gollum
percebe-o e jura odiar para sempre o hobbit. O ódio se torna um alicerce
para a trama levada adiante pelo sobrinho de Bilbo, Frodo, em O Senhor dos Anéis. Curiosamente, Peter Jackson faz quase a mesma coisa: ele seguiu Tolkien para encaixar O Hobbit como prelúdio a Senhor dos Anéis. Mesmo assim, Jackson desrespeitou a organização da obra para prolongar O Hobbit em três filmes – o que tornou o primeiro longa-metragem arrastado e repleto de flash-backs irritantemente explicativos.
A organização retroativa proposta por Tolkien fornece às aventuras dos
hobbits, anões, elfos, trolls, magos e orcs um qualidade arquitetônica.
Sua tetralogia como que derrete a ordem perfeita da Catedral de São
Pedro no Vaticano para reencenar com suas figuras, alegorias e
simbologia uma aventura de revelação em um ambiente alienígena, em uma
geografia imaginária.
No mapa de Tolkien ingressam transfigurados os princípios elementares
do catolicismo. Assim como a viagem de Gandalf, Bilbo (interpretado no
filme pelo ator inglês e católico Martin Freeman) e os 13 anões é uma
representação da volta à Terra Prometida (os anões pertencem a um povo
valoroso, porém espoliado de seus tesouros pelo dragão Smaug), abençoada
por um hobbit bondoso, a história da peregrinação a Mordor e a
devolução do anel pode ser lida como uma alegoria do Evangelho encoberta
sob o manto da fábula. Pode-se deduzir que O Hobbit é o Velho Testamento; Senhor dos Anéis, o Novo. Todos os volumes da história da Terra-média de Tolkien (Os filhos de Húrin, O Silmarilion
etc.) compõem uma versão fabulosa e medievalesca da Vulgata Latina, a
tradução da Bíblia para o Latim feita por São Jerônimo no século III
d.C., considerada o texto oficial das Sagradas Escrituras pelo Vaticano.
Além dessas transposições, é possível identificar quatro aspectos mais evidentes do Catolicismo no enredo de O Hobbit e Senhor dos Anéis.
Em primeiro lugar, Bilbo, um hobbit aparentemente conformista, torna-se
o escolhido para viver uma aventura: seguir com os anões à Montanha
Solitária, atravessando terras ermas e perigosas, para enganar Smaug e
restituir o tesouro e a terra aos seus donos originais. Trata-se,
portanto, de uma jornada iniciática. “No final, você não será o mesmo”,
avisa Gandalf. Bilbo irá conquistar o anel, ficar rico e atingir a
espiritualidade. É o mesmo percurso exigido ao católico, que galga os
degraus rumo à perfeição, do batismo à extrema-unção na vida profana e,
na sacerdotal, do noviciado à sagração como bispo e até mesmo papa.
Um dos pré-requisitos para Bilbo e amigos seguirem adiante é a
obediência. Dessa forma, se fazem presentes a submissão e até mesmo a
admiração de todos os personagens “bons” a uma hierarquia imperial, a um
poder central liderado pelo Papa, o mandatário direto de Deus na Terra,
segundo a Igreja Católica. Como a cruz, não há um papa explícito em O Hobbit, mas Gandalf parece ser o mais próximo de empunhar o cajado e a cruz de São Pedro. Ou Bilbo, a longo prazo.
As virtudes teologais, em terceiro lugar, são o motor da trama de
combate ao Mal: Fé, Esperança e Caridade. Bilbo reúne-as como nenhum
outro personagens. Mesmo quando tomar para si o anel, usa seu poder para
reforçar a fé entre os companheiros de jornada.
Desse modo, quando o objetivo dos justos contra os ímpios está próximo a
ser alcançado, contará o quarto e maior elemento católico da história
de Tolkien: a Divina Providência. É ela que vem resgatar o herói nos
instantes de maior perigo. Como na terra dos orcs, quando águias
gigantes salvam os anões liderados por Thórin e Bilbo da morte. As
águias simbolizam ali o Espírito Santo, parte da Santíssima Trindade, ao
lado do Pai e do Filho. A Divina Providência retornará ao longo de O Hobbit e Senhor dos Anéis para organizar os reinos caóticos da Terra-média.
Bilbo e companheiros fazem o papel de apóstolos. São soldados de Cristo em uma Cruzada, ainda que sem cruz. Eles conduzem o leitor e o espectador às altas esferas da crença, para assim promover sua conversão por meio da catequese. No entanto, à parte a crença e persuasão doutrinária, o texto de Tolkien consiste em uma peça artística, uma narrativa de ficção, onde as leis da lógica são alteradas. E é na fantasia que o aspecto mais profundo do catolicismo de Tolkien se revela, na crença de que o reino deste mundo é maléfico. Assim, Mordor ou Ereborn, os reinos caóticos deste mundos, não valem a pena ser conquistados, pois o reino está em outro lugar, no plano espiritual e divino. Nem mesmo o Condado do Bolsão, onde moram os hobbits, é recomendável. “Meu reino não é deste mundo”, poderia dizer o mago Gandalf, ecoando Jesus Cristo.
No entanto, apesar de poder ser compreendida como páginas de doutrinação religiosa, a experiência mais enriquecedora é ler e ver O Hobbit e Senhor dos Anéis como obra de arte literária e cinematográfica. Tolkien parece demonstrar a observação do escritor argentino Jorge Luis Borges, segundo o qual a metafísica (e, por extensão, a religião) deve constituir uma subcategoria da literatura fantástica.
-----------------------Bilbo e companheiros fazem o papel de apóstolos. São soldados de Cristo em uma Cruzada, ainda que sem cruz. Eles conduzem o leitor e o espectador às altas esferas da crença, para assim promover sua conversão por meio da catequese. No entanto, à parte a crença e persuasão doutrinária, o texto de Tolkien consiste em uma peça artística, uma narrativa de ficção, onde as leis da lógica são alteradas. E é na fantasia que o aspecto mais profundo do catolicismo de Tolkien se revela, na crença de que o reino deste mundo é maléfico. Assim, Mordor ou Ereborn, os reinos caóticos deste mundos, não valem a pena ser conquistados, pois o reino está em outro lugar, no plano espiritual e divino. Nem mesmo o Condado do Bolsão, onde moram os hobbits, é recomendável. “Meu reino não é deste mundo”, poderia dizer o mago Gandalf, ecoando Jesus Cristo.
No entanto, apesar de poder ser compreendida como páginas de doutrinação religiosa, a experiência mais enriquecedora é ler e ver O Hobbit e Senhor dos Anéis como obra de arte literária e cinematográfica. Tolkien parece demonstrar a observação do escritor argentino Jorge Luis Borges, segundo o qual a metafísica (e, por extensão, a religião) deve constituir uma subcategoria da literatura fantástica.
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