quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

A filosofia e o baú de Zyah

Paulo Ghiraldelli Jr.*

Lá na Capadócia, os parentes de Zyah servem o almoço e todos se preocupam com ele, que parece ter brigado com a namorada, Bia, a “estrangeira”. Na refeição, o filho quer saber onde o pai vai morar, e os parentes cortam a fala do menino. Quando Zyah sai da mesa, o menino é advertido: “não faça perguntas ao seu pai, não nesse momento, pois ele precisa ficar sozinho, ficar com ele mesmo”.[1] Ficar com ele mesmo. Ficar consigo mesmo, dizemos. No momento em que conversamos com outros, nos colocamos objetivamente, estamos menos conosco e mais com os outros. Temos de ficar sozinhos se queremos ficar conosco mesmo. Ficar só consigo mesmo. Ficar com o eu que, embora esteja nos acompanhando o tempo todo (afinal, nosso eu é o que somos), só se dispõe a nós se decidimos ficar com ele. Então, pensamos em nossa vida. Pensamos por meio do eu no eu.  Pensamos em nós mesmos. Zyah precisa ficar sozinho pois só assim ele poderá “ficar com ele mesmo”.

Ora, mas o que encontra um homem quando está sozinho? Lembranças dos amigos, dados do que viveu até então, inferências a respeito do que viu e ouviu. Mais? Sim: conjecturas a respeito do que verá e ouvirá. Imaginações sobre o que poderá ocorrer se ouvir X e não Y. Em tudo isso, não estará sozinho, nem consigo mesmo. Ainda estará com outros. Mas o homem moderno imagina que sozinho poderá ficar consigo mesmo em um sentido especial, o de encontrar um baú em que nenhum outro esteve e que nada há que não seja só dele e só para ele. Esse lugar indevassável é seu eu, tomado então como seu interior, sua mais profunda intimidade – o homem moderno se pensa como íntimo de si mesmo.

Zyah vai ficar consigo mesmo e, ao encontrar seu interior, esse seu baú em que nada há de outros, pegará só o que é seu, isto é, o que nunca foi criado ou tocado ou maculado por outro. Ali há um saber e esse saber é só de Zyah – é um saber da maior importância, porque não influenciado por ninguém mais. Zyah com esse saber finalmente encontra Zyah ou, melhor dizendo, “o verdadeiro” Zyah. Assim esperam os parentes que advertiram o garoto. Talvez Zyah também acredite nisso. O homem moderno acredita nisso. Ele imagina esse eu que é o seu si mesmo como um elemento natural. Trata-se de um baú feito de material espiritual ou mental, algo que é o interior.  Esse eu possui tudo aquilo que a psicologia conta, que são dois elementos básicos: identidade e consciência. Pela consciência eu sei que sei algo, pela identidade eu reconheço eu, o eu mesmo ou o si mesmo. Mas Zyah, como moderno, tem mais que isso: identidade e consciência não possuem uma topologia espraiada, mas vertical, profunda – trata-se do baú. La no fundo do baú há a solução para Zyah, que é o próprio Zyah, o verdadeiro, guardado no fundo de si mesmo.

É difícil de entendermos que tudo isso que nos é natural é alguma coisa de nossa cultura moderna. É algo formado desde a antiguidade, mas que na antiguidade ocidental, ao menos na antiguidade clássica grega, não se punha dessa maneira. Nenhum grego – nem mesmo os filósofos – imaginavam que podiam se recolher ao seu próprio interior como quem caminha em busca de um baú que contém, lá dentro, escondido, um eu, um si mesmo que é mais verdadeiro que o eu que conversa com outros. É normal que Zyah possa querer escrever um diário. Todavia, jamais essa ideia ocorreria a um grego do período clássico. Falar consigo mesmo não implicava em voltar-se para um interior que pode se desligar do exterior. Falar consigo mesmo, como Platão disse que era o pensamento, uma conversação sem emitir som, era possível, é claro, mas não como alguma coisa feita em um outro ambiente, separado, feito de outro material, diferente do material do mundo no qual a conversação em voz alta se dá. O grego podia se recolher à consciência e à solidão, mas jamais atravessar uma porta, fechando-a, e entrar para pegar o baú, o que não estava contaminado pelo exterior.

Estamos tão acostumados em nos colocar como tendo o subjetivo e o objetivo que não conseguimos imaginar o grego clássico pensando e falando sem essa situação dual nitidamente separada. Mas se olhamos para a sua teoria da visão e da percepção, tudo fica mais fácil.

Seja lá qual for a teoria que possamos ter sobre o olhar, menos ou mais científica, menos ou mais aceita hoje, o que entendemos quando vemos é que há o olho, de um lado, e de outro o que é visto, que nada tem a ver com o olho, e que é a luz ou que reflete a luz. Desse modo, a olho é tomado como uma lente e uma tela, na qual a imagem é projetada invertida. Não vemos isso, mas sim cores e formas, e então, por mecanismos físicos e fisiológicos, eu encontro o pensamento dentro do meu eu, que está com a imagem, mas sem a extensão do corpo material, só como pensamento, só como imagem mental. Grosseiramente é isso. De qualquer forma, o que se põe aí é a estrutura dual: de um lado o olho que vai encaminhar o que é visto como imagem dentro de nós, de outro lado o objeto que é a luz ou que é iluminado por uma luz que nada tem a ver conosco, e isso é o exterior, o que se opõe ao que há dentro de nós. Esse esquema geral não é o esquema do grego clássico. Sua psicologia da visão e percepção fala de modo diferente.

Para o grego clássico o olho humano lança um raio de luz que toca o objeto. Ou seja, o olho possui luz e essa luz funciona como um elemento material que se estica até onde está o objeto. Uma vez tocando o objeto ela se impregna da cor do objeto, e então o olho passa a ganhar essa cor tocada pelo seu braço de luz. Desse modo, não há uma oposição entre o objeto visto e um eu que vê, mas uma relação de elementos que estão em um todo sem separação. O grego não pode falar em sujeito e objeto como falamos, pois desde sua teoria da visão e percepção ele não cultiva um interior e um exterior.

O olho humano, como o grego o teoriza, enxerga porque ele é um olho luminoso. Ele é que ilumina. Aliás, o que ilumina é um olho e por isso o grego toma o sol como um tipo de olho. A ideia de um baú feito de outra matéria que não a matéria do mundo, e que vai se tornando profundo à medida que possui mais coisas que não são da matéria do mundo para guardar, não faz muito sentido para o grego. Chamamos o pensamento de um “um fato da consciência”. Mas o grego não poderia falar em um fato da consciência, um fato é um fato, e se falamos em consciência entre os gregos clássicos, falamos de enunciados avaliativos, não de um lugar, um buraco, um interior fechado para o exterior.

Não há cor no mundo nosso, pois dependemos de um aparato mental para selecionar raios de luz que nos atinge. Mas para o grego o mundo é colorido em si, e o que o homem faz é apenas se portar como quem é um lançador de luz sobre o mundo, como o sol faz em termos volumosos.  O espírito lança a luz por meio dos olhos e ela fica colorida por conta de tocar o objeto que possui cor. Assim, o homem está no mundo, ele não tem para onde se retirar. Ele não tem baú de outra madeira com coisas lá dentro feitas dessa madeira que, fora, jamais existiu em árvore alguma. Assim, o homem é natural e social ao mesmo tempo para o grego. Sua individualidade não está em sua alma de um modo separado do mundo, mas ela é feita das relações hierárquicas, sociais e históricas. Se Zyah fosse o grego clássico não poderia ficar sozinho consigo mesmo no sentido de quem vai encontrar o seu verdadeiro eu feito de algo intocado pelo exterior. Não há segredo dentro do homem grego. Há apenas coisas que se pode omitir de outros, mas não um segredo fantástico.

A religião grega, por sua vez, nunca deu qualquer passo no sentido de tirar os homens do mundo. Os deuses também estavam na natureza e não a haviam propriamente criado, mas vieram de outros deuses que, enfim, não eram parecidos com os humanos, mas com elementos do cosmos – os deuses originais. Este originaram os deuses olímpicos, então com feições humanas.  Desse modo, a distância do homem para com o mundo, foi obra dos filósofos.

O que os filósofos fizeram com esses gregos foi iniciar uma retirada do homem do mundo. Eles não geraram nenhuma figura do sujeito, como modernamente conhecemos, mas eles insistiram que a filosofia tinha a ver com o “estranhamento do mundo”. Ora, como estranhar um mundo todo aí, sem qualquer grande distinção do homem e do que está em seu redor? A resposta a essa pergunta dá toda a história da filosofia de Platão aos nossos dias. Uma história que culmina conosco, com Zyah tentando resolver problemas remoendo o que haveria de inédito em nosso baú, nosso original, privado, intimo, solitário e indevassável baú.

[1] Capítulo exibido dia 0/7/01/2012
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* Filósofo. Prof. Universitário. Escritor.
Fonte:  http://ghiraldelli.pro.br/2013/01/a-filosofia-e-o-bau-de-zyah/
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