Paulo Ghiraldelli Jr.*
Lá na
Capadócia, os parentes de Zyah servem o almoço e todos se preocupam com
ele, que parece ter brigado com a namorada, Bia, a “estrangeira”. Na
refeição, o filho quer saber onde o pai vai morar, e os parentes cortam a
fala do menino. Quando Zyah sai da mesa, o menino é advertido: “não
faça perguntas ao seu pai, não nesse momento, pois ele precisa ficar
sozinho, ficar com ele mesmo”.[1]
Ficar com ele mesmo. Ficar consigo mesmo, dizemos. No momento em que
conversamos com outros, nos colocamos objetivamente, estamos menos
conosco e mais com os outros. Temos de ficar sozinhos se queremos ficar
conosco mesmo. Ficar só consigo mesmo. Ficar com o eu que, embora esteja
nos acompanhando o tempo todo (afinal, nosso eu é o que somos), só se
dispõe a nós se decidimos ficar com ele. Então, pensamos em nossa vida.
Pensamos por meio do eu no eu. Pensamos em nós mesmos. Zyah precisa
ficar sozinho pois só assim ele poderá “ficar com ele mesmo”.
Ora, mas o que encontra um homem quando
está sozinho? Lembranças dos amigos, dados do que viveu até então,
inferências a respeito do que viu e ouviu. Mais? Sim: conjecturas a
respeito do que verá e ouvirá. Imaginações sobre o que poderá ocorrer se
ouvir X e não Y. Em tudo isso, não estará sozinho, nem consigo mesmo.
Ainda estará com outros. Mas o homem moderno imagina que sozinho poderá
ficar consigo mesmo em um sentido especial, o de encontrar um baú em que
nenhum outro esteve e que nada há que não seja só dele e só para ele.
Esse lugar indevassável é seu eu, tomado então como seu interior, sua
mais profunda intimidade – o homem moderno se pensa como íntimo de si
mesmo.
Zyah vai ficar consigo mesmo e, ao
encontrar seu interior, esse seu baú em que nada há de outros, pegará só
o que é seu, isto é, o que nunca foi criado ou tocado ou maculado por
outro. Ali há um saber e esse saber é só de Zyah – é um saber da maior
importância, porque não influenciado por ninguém mais. Zyah com esse
saber finalmente encontra Zyah ou, melhor dizendo, “o verdadeiro” Zyah.
Assim esperam os parentes que advertiram o garoto. Talvez Zyah também
acredite nisso. O homem moderno acredita nisso. Ele imagina esse eu que é
o seu si mesmo como um elemento natural. Trata-se de um baú
feito de material espiritual ou mental, algo que é o interior. Esse eu
possui tudo aquilo que a psicologia conta, que são dois elementos
básicos: identidade e consciência. Pela consciência eu sei que sei algo,
pela identidade eu reconheço eu, o eu mesmo ou o si mesmo. Mas Zyah,
como moderno, tem mais que isso: identidade e consciência não possuem
uma topologia espraiada, mas vertical, profunda – trata-se do baú. La no
fundo do baú há a solução para Zyah, que é o próprio Zyah, o
verdadeiro, guardado no fundo de si mesmo.
É difícil de entendermos que tudo isso
que nos é natural é alguma coisa de nossa cultura moderna. É algo
formado desde a antiguidade, mas que na antiguidade ocidental, ao menos
na antiguidade clássica grega, não se punha dessa maneira. Nenhum grego –
nem mesmo os filósofos – imaginavam que podiam se recolher ao seu
próprio interior como quem caminha em busca de um baú que contém, lá
dentro, escondido, um eu, um si mesmo que é mais verdadeiro que o eu que
conversa com outros. É normal que Zyah possa querer escrever um diário.
Todavia, jamais essa ideia ocorreria a um grego do período clássico.
Falar consigo mesmo não implicava em voltar-se para um interior que pode
se desligar do exterior. Falar consigo mesmo, como Platão disse que era
o pensamento, uma conversação sem emitir som, era possível, é claro,
mas não como alguma coisa feita em um outro ambiente, separado, feito de
outro material, diferente do material do mundo no qual a conversação em
voz alta se dá. O grego podia se recolher à consciência e à solidão,
mas jamais atravessar uma porta, fechando-a, e entrar para pegar o baú, o
que não estava contaminado pelo exterior.
Estamos tão acostumados em nos colocar
como tendo o subjetivo e o objetivo que não conseguimos imaginar o grego
clássico pensando e falando sem essa situação dual nitidamente
separada. Mas se olhamos para a sua teoria da visão e da percepção, tudo
fica mais fácil.
Seja lá qual for a teoria que possamos
ter sobre o olhar, menos ou mais científica, menos ou mais aceita hoje, o
que entendemos quando vemos é que há o olho, de um lado, e de outro o
que é visto, que nada tem a ver com o olho, e que é a luz ou que reflete
a luz. Desse modo, a olho é tomado como uma lente e uma tela, na qual a
imagem é projetada invertida. Não vemos isso, mas sim cores e formas, e
então, por mecanismos físicos e fisiológicos, eu encontro o pensamento
dentro do meu eu, que está com a imagem, mas sem a extensão do corpo
material, só como pensamento, só como imagem mental. Grosseiramente é
isso. De qualquer forma, o que se põe aí é a estrutura dual: de um lado o
olho que vai encaminhar o que é visto como imagem dentro de nós, de
outro lado o objeto que é a luz ou que é iluminado por uma luz que nada
tem a ver conosco, e isso é o exterior, o que se opõe ao que há dentro
de nós. Esse esquema geral não é o esquema do grego clássico. Sua
psicologia da visão e percepção fala de modo diferente.
Para o grego clássico o olho humano
lança um raio de luz que toca o objeto. Ou seja, o olho possui luz e
essa luz funciona como um elemento material que se estica até onde está o
objeto. Uma vez tocando o objeto ela se impregna da cor do objeto, e
então o olho passa a ganhar essa cor tocada pelo seu braço de luz. Desse
modo, não há uma oposição entre o objeto visto e um eu que vê, mas uma
relação de elementos que estão em um todo sem separação. O grego não
pode falar em sujeito e objeto como falamos, pois desde sua teoria da
visão e percepção ele não cultiva um interior e um exterior.
O olho humano, como o grego o teoriza,
enxerga porque ele é um olho luminoso. Ele é que ilumina. Aliás, o que
ilumina é um olho e por isso o grego toma o sol como um tipo de olho. A
ideia de um baú feito de outra matéria que não a matéria do mundo, e que
vai se tornando profundo à medida que possui mais coisas que não são da
matéria do mundo para guardar, não faz muito sentido para o grego.
Chamamos o pensamento de um “um fato da consciência”. Mas o grego não
poderia falar em um fato da consciência, um fato é um fato, e se falamos
em consciência entre os gregos clássicos, falamos de enunciados
avaliativos, não de um lugar, um buraco, um interior fechado para o
exterior.
Não há cor no mundo nosso, pois
dependemos de um aparato mental para selecionar raios de luz que nos
atinge. Mas para o grego o mundo é colorido em si, e o que o homem faz é
apenas se portar como quem é um lançador de luz sobre o mundo, como o
sol faz em termos volumosos. O espírito lança a luz por meio dos olhos e
ela fica colorida por conta de tocar o objeto que possui cor. Assim, o
homem está no mundo, ele não tem para onde se retirar. Ele não tem baú
de outra madeira com coisas lá dentro feitas dessa madeira que, fora,
jamais existiu em árvore alguma. Assim, o homem é natural e social ao
mesmo tempo para o grego. Sua individualidade não está em sua alma de um
modo separado do mundo, mas ela é feita das relações hierárquicas,
sociais e históricas. Se Zyah fosse o grego clássico não poderia ficar
sozinho consigo mesmo no sentido de quem vai encontrar o seu verdadeiro
eu feito de algo intocado pelo exterior. Não há segredo dentro do homem
grego. Há apenas coisas que se pode omitir de outros, mas não um segredo
fantástico.
A religião grega, por sua vez, nunca deu
qualquer passo no sentido de tirar os homens do mundo. Os deuses também
estavam na natureza e não a haviam propriamente criado, mas vieram de
outros deuses que, enfim, não eram parecidos com os humanos, mas com
elementos do cosmos – os deuses originais. Este originaram os deuses
olímpicos, então com feições humanas. Desse modo, a distância do homem
para com o mundo, foi obra dos filósofos.
O que os filósofos fizeram com esses
gregos foi iniciar uma retirada do homem do mundo. Eles não geraram
nenhuma figura do sujeito, como modernamente conhecemos, mas eles
insistiram que a filosofia tinha a ver com o “estranhamento do mundo”.
Ora, como estranhar um mundo todo aí, sem qualquer grande
distinção do homem e do que está em seu redor? A resposta a essa
pergunta dá toda a história da filosofia de Platão aos nossos dias. Uma
história que culmina conosco, com Zyah tentando resolver problemas
remoendo o que haveria de inédito em nosso baú, nosso original, privado,
intimo, solitário e indevassável baú.
[1] Capítulo exibido dia 0/7/01/2012
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* Filósofo. Prof. Universitário. Escritor.
Fonte: http://ghiraldelli.pro.br/2013/01/a-filosofia-e-o-bau-de-zyah/
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