Steven Spielberg Divulgação
Novo filme do mais bem-sucedido diretor de Hollywood estreia no Brasil no dia 25
RIO - Do momento em que disse “Alô!” ao instante em que se despediu,
ao telefone com O GLOBO, Steven Spielberg repetiu 13 vezes a palavra
“democracia”, assumindo-a como chave de seu novo sucesso: “Lincoln”.
Previsto para chegar ao Brasil dia 25, o filme sobre o ex-presidente e
militante abolicionista americano pode dar ao cineasta seu terceiro
Oscar de melhor direção (a lista de indicados sai na quinta-feira). Para
o Globo de Ouro, domingo que vem, já desponta como favorito,
concorrendo em sete categorias. Nesta entrevista, o realizador de 66
anos conta como recriou a guerra civil americana, adianta seu próximo
projeto e faz um balanço de sua geração.
Qual é o simbolismo de lançar um filme sobre um herói do abolicionismo no momento em que os Estados Unidos reelegem seu primeiro líder negro?
Barack Obama é o produto mais feliz do legado deixado pelo Dr. Martin Luther King, um mártir dos direitos humanos, em sua luta pela igualdade. Mas Obama é também fruto de uma emancipação racial que Abraham Lincoln não teve tempo de ver aplicada, embora tenha lutado por ela. E aí entra uma questão que nos leva até a eleição: o daltonismo social e racial do meu país, que não amaciou em nada a vida dos negros mesmo depois de eles conseguirem a sua liberdade. Até Obama chegar, nunca houve, na presidência, um líder que fosse uma espécie de sucessor ideológico de Lincoln em seu olhar para os negros. Imagino como esta nação teria sido diferente, talvez melhor, se ele tivesse vivido 20 anos mais.
Em um mês em cartaz, “Lincoln” arrecadou nos EUA o dobro do orçamento de US$ 65 milhões gastos na filmagem e na finalização. É um de seus maiores sucessos comerciais, sem usar efeitos especiais, dinossauros, ETs nem Tom Cruise. De que forma um drama político intimista, estrelado por um inglês (Daniel Day-Lewis) e baseado no poder da palavra tornou-se comercialmente atraente para audiências cevadas a superproduções?
Às vezes, num filme de época, um diretor põe sua visão estética na frente do tema que retrata e usa a História apenas como um elemento demonstrativo de suas teses. Em “Lincoln”, o olhar da câmera, ou seja, o meu, ficou atrás da História, porque ela é mais altiva do que qualquer discurso que pude fazer. Eu não filmei “Lincoln” discutindo planos, esquadrinhando efeitos, deixei a câmera com o fotógrafo (Janusz Kaminski, seu parceiro habitual) a maior parte do tempo e fui dirigir os atores. Gastei pouco tempo atrás da lente. Fui entender o que Daniel Day-Lewis descobriu de Abraham Lincoln estudando cartas dele e artigos de acadêmicos. É um filme cuja força vem da palavra e de interpretações como as de Daniel. Mas eu não diria que fiz um filme político, até por ter muito pudor com esse conceito.
O que é um filme político?
Qualquer discurso estético pode ser politizado. A questão é esse olhar político vir do tema e não da vaidade prévia de um realizador. “Lincoln” é o retrato de um homem no pior de seus momentos: o presidente dos Estados Unidos, com o país enfurnado numa guerra civil, e numa batalha ética para abolir a escravidão e fazer valer o direito constitucional ignorado por muitas autoridades. Este filme não existe para ser um postulado. Ele é a história ficcional de um homem que tentou entender como a Constituição dos Estados Unidos funciona.
Desde que as imagens dos atentados do 11 de Setembro bateram na mídia, o cinema, e não apenas o americano, embarcou numa viagem documental. Cada vez mais as ficções buscam um grau de realismo mais próximo de um noticiário da CNN do que da fantasia. Como o homem que dirigiu “E.T., o extraterrestre” reage a isso?
Usei recursos da linguagem documental em “O resgate do soldado Ryan”, na sequência de abertura do Dia D na Normandia. “A lista de Schindler” também tinha esse parâmetro. Eu acho que a aposta no documental deve obedecer ao que a dramaturgia pede, senão você cria uma espetacularização do real. Cai no simulacro em vez de cair na invenção. Em “Lincoln” não havia espaço para esse tipo de estilização, pois o roteiro de Tony Kushner (dramaturgo aclamado por “Angels in America”) exigia uma encenação mais próxima do teatro, do parlatório. E eu, em geral, não uso referências cinematográficas para construir meus planos.
E como o cineasta mais bem-sucedido da história de Hollywood constrói seu discurso cinematográfico?
Nos meus filmes que partem de episódios reais, minha referência é a História, não Hollywood ou as demais cinematografias. Se uso um filme como parâmetro, construo um discurso que estará refém do meu olhar de cinéfilo, de homem do século XXI. Eu queria entender o século XIX a partir das referências do próprio século XIX. Com Indiana Jones é diferente. Aquele arqueólogo de chicote em punho é um fruto da minha imaginação e da de George Lucas. Ali, tudo vem do cinema, posso usar filmes como matéria-prima. Em “Lincoln”, não. Nele eu parto de uma realidade cerzida à base de uma violência injustificável, como todas, que é a escravidão.
E que olhar vai guiar seu próximo projeto: “Robopocalypse”, uma ficção científica sobre um levante de robôs, com Anne Hathaway?
Vou dirigir essa história (baseada em romance de Daniel H. Wilson) com o mesmo olhar de “Tubarão”, isto é, vou fazer um filme de gênero, no caso, o sci-fi, sem apego à palavra. Esse é um filme em que a imagem desenha a encenação.
O homem que filmou “Lincoln” estreou nos longas em 1971, com “Encurralado”, no turbilhão da chamada Easy Rider Generation, onda que engajou o cinema americano em questões sociais e políticas de 1967 a 1980. Dela vieram Scorsese, Francis Ford Coppola, Terrence Malick e outros mestres. O que ficou daquela ideologia?
Quando o bando de cabeludos que nós éramos começou a filmar, todo mundo que tinha mais de 30 anos e se considerava um profissional sério tinha cabelo curto e olhava torto para as tormentas políticas. A gente, não. Queríamos o que fosse contra a corrente, o que fugisse do establishment americano. Mas isso não era forçado. Fomos um produto inconsciente de um tempo inconformado, que herdou o esclarecimento político de gerações anteriores. E da mesma forma que os rebeldes estudantes franceses criaram a Nouvelle Vague, nós criamos um cinema que reagia contra o governo, contra convenções. Ficou daquele tempo a generosidade de ouvir as diferenças.
O senhor, Scorsese e Coppola estão entre os remanescentes daquele movimento que ainda emplacam sucessos filmando ou produzindo. Mas como o senhor vê a situação de seus contemporâneos outrora aclamados que hoje penam para filmar, como Peter Bogdanovich (de “A última sessão de cinema”) e Brian De Palma (“Carrie, a estranha”)?
Não se esqueça de Monte Hellman, diretor de “Corrida sem fim”, que era uma espécie de irmão mais velho nosso e que lançou há pouco “Caminho para o nada”. Eu não sei o que houve pessoalmente com esses grandes diretores. Mas, profissionalmente, é lamentável que o cinema americano independente não tenha uma estrutura que ofereça a eles condições de filmar com liberdade. Brian inventou a dele: foi morar em Paris e filma sempre que pode com dinheiro europeu, cada vez melhor. Quando ele filma aqui, em Hollywood, ele faz trabalhos de encomenda como “Os intocáveis” ou “Missão impossível”. Para nós, seus fãs, esses filmes são obras-primas, mas eles fogem da especificidade do universo temático dele, que aparece em obras como “Síndrome de Caim”. O trágico é ele não poder fazer o que quer, como quer.
É raro a América Latina, em especial o Brasil, produzir um tipo de cinema fabular, de tintas fantásticas como o seu. O que o senhor conhece do nosso cinema?
Eu tenho pouca familiaridade com o que vocês fazem. O único diretor brasileiro cuja obra conheço bem é Bruno Barreto. Mas não é apenas por razões pessoais, já que ele foi casado com a minha ex-mulher, Amy Irving. Bruno é um grande diretor, como você pode conferir por “O que é isso, companheiro?”. Mas seria interessante ver o jovem cinema de vocês.
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Reportagem por Rodrigo Fonseca (Email) Publicado:
http://oglobo.globo.com/cultura/steven-spielberg-fala-de-lincoln-favorito-ao-oscar-ao-globo-de-ouro-7205885#ixzz2HECOLMwI
Qual é o simbolismo de lançar um filme sobre um herói do abolicionismo no momento em que os Estados Unidos reelegem seu primeiro líder negro?
Barack Obama é o produto mais feliz do legado deixado pelo Dr. Martin Luther King, um mártir dos direitos humanos, em sua luta pela igualdade. Mas Obama é também fruto de uma emancipação racial que Abraham Lincoln não teve tempo de ver aplicada, embora tenha lutado por ela. E aí entra uma questão que nos leva até a eleição: o daltonismo social e racial do meu país, que não amaciou em nada a vida dos negros mesmo depois de eles conseguirem a sua liberdade. Até Obama chegar, nunca houve, na presidência, um líder que fosse uma espécie de sucessor ideológico de Lincoln em seu olhar para os negros. Imagino como esta nação teria sido diferente, talvez melhor, se ele tivesse vivido 20 anos mais.
Em um mês em cartaz, “Lincoln” arrecadou nos EUA o dobro do orçamento de US$ 65 milhões gastos na filmagem e na finalização. É um de seus maiores sucessos comerciais, sem usar efeitos especiais, dinossauros, ETs nem Tom Cruise. De que forma um drama político intimista, estrelado por um inglês (Daniel Day-Lewis) e baseado no poder da palavra tornou-se comercialmente atraente para audiências cevadas a superproduções?
Às vezes, num filme de época, um diretor põe sua visão estética na frente do tema que retrata e usa a História apenas como um elemento demonstrativo de suas teses. Em “Lincoln”, o olhar da câmera, ou seja, o meu, ficou atrás da História, porque ela é mais altiva do que qualquer discurso que pude fazer. Eu não filmei “Lincoln” discutindo planos, esquadrinhando efeitos, deixei a câmera com o fotógrafo (Janusz Kaminski, seu parceiro habitual) a maior parte do tempo e fui dirigir os atores. Gastei pouco tempo atrás da lente. Fui entender o que Daniel Day-Lewis descobriu de Abraham Lincoln estudando cartas dele e artigos de acadêmicos. É um filme cuja força vem da palavra e de interpretações como as de Daniel. Mas eu não diria que fiz um filme político, até por ter muito pudor com esse conceito.
O que é um filme político?
Qualquer discurso estético pode ser politizado. A questão é esse olhar político vir do tema e não da vaidade prévia de um realizador. “Lincoln” é o retrato de um homem no pior de seus momentos: o presidente dos Estados Unidos, com o país enfurnado numa guerra civil, e numa batalha ética para abolir a escravidão e fazer valer o direito constitucional ignorado por muitas autoridades. Este filme não existe para ser um postulado. Ele é a história ficcional de um homem que tentou entender como a Constituição dos Estados Unidos funciona.
Desde que as imagens dos atentados do 11 de Setembro bateram na mídia, o cinema, e não apenas o americano, embarcou numa viagem documental. Cada vez mais as ficções buscam um grau de realismo mais próximo de um noticiário da CNN do que da fantasia. Como o homem que dirigiu “E.T., o extraterrestre” reage a isso?
Usei recursos da linguagem documental em “O resgate do soldado Ryan”, na sequência de abertura do Dia D na Normandia. “A lista de Schindler” também tinha esse parâmetro. Eu acho que a aposta no documental deve obedecer ao que a dramaturgia pede, senão você cria uma espetacularização do real. Cai no simulacro em vez de cair na invenção. Em “Lincoln” não havia espaço para esse tipo de estilização, pois o roteiro de Tony Kushner (dramaturgo aclamado por “Angels in America”) exigia uma encenação mais próxima do teatro, do parlatório. E eu, em geral, não uso referências cinematográficas para construir meus planos.
E como o cineasta mais bem-sucedido da história de Hollywood constrói seu discurso cinematográfico?
Nos meus filmes que partem de episódios reais, minha referência é a História, não Hollywood ou as demais cinematografias. Se uso um filme como parâmetro, construo um discurso que estará refém do meu olhar de cinéfilo, de homem do século XXI. Eu queria entender o século XIX a partir das referências do próprio século XIX. Com Indiana Jones é diferente. Aquele arqueólogo de chicote em punho é um fruto da minha imaginação e da de George Lucas. Ali, tudo vem do cinema, posso usar filmes como matéria-prima. Em “Lincoln”, não. Nele eu parto de uma realidade cerzida à base de uma violência injustificável, como todas, que é a escravidão.
E que olhar vai guiar seu próximo projeto: “Robopocalypse”, uma ficção científica sobre um levante de robôs, com Anne Hathaway?
Vou dirigir essa história (baseada em romance de Daniel H. Wilson) com o mesmo olhar de “Tubarão”, isto é, vou fazer um filme de gênero, no caso, o sci-fi, sem apego à palavra. Esse é um filme em que a imagem desenha a encenação.
O homem que filmou “Lincoln” estreou nos longas em 1971, com “Encurralado”, no turbilhão da chamada Easy Rider Generation, onda que engajou o cinema americano em questões sociais e políticas de 1967 a 1980. Dela vieram Scorsese, Francis Ford Coppola, Terrence Malick e outros mestres. O que ficou daquela ideologia?
Quando o bando de cabeludos que nós éramos começou a filmar, todo mundo que tinha mais de 30 anos e se considerava um profissional sério tinha cabelo curto e olhava torto para as tormentas políticas. A gente, não. Queríamos o que fosse contra a corrente, o que fugisse do establishment americano. Mas isso não era forçado. Fomos um produto inconsciente de um tempo inconformado, que herdou o esclarecimento político de gerações anteriores. E da mesma forma que os rebeldes estudantes franceses criaram a Nouvelle Vague, nós criamos um cinema que reagia contra o governo, contra convenções. Ficou daquele tempo a generosidade de ouvir as diferenças.
O senhor, Scorsese e Coppola estão entre os remanescentes daquele movimento que ainda emplacam sucessos filmando ou produzindo. Mas como o senhor vê a situação de seus contemporâneos outrora aclamados que hoje penam para filmar, como Peter Bogdanovich (de “A última sessão de cinema”) e Brian De Palma (“Carrie, a estranha”)?
Não se esqueça de Monte Hellman, diretor de “Corrida sem fim”, que era uma espécie de irmão mais velho nosso e que lançou há pouco “Caminho para o nada”. Eu não sei o que houve pessoalmente com esses grandes diretores. Mas, profissionalmente, é lamentável que o cinema americano independente não tenha uma estrutura que ofereça a eles condições de filmar com liberdade. Brian inventou a dele: foi morar em Paris e filma sempre que pode com dinheiro europeu, cada vez melhor. Quando ele filma aqui, em Hollywood, ele faz trabalhos de encomenda como “Os intocáveis” ou “Missão impossível”. Para nós, seus fãs, esses filmes são obras-primas, mas eles fogem da especificidade do universo temático dele, que aparece em obras como “Síndrome de Caim”. O trágico é ele não poder fazer o que quer, como quer.
É raro a América Latina, em especial o Brasil, produzir um tipo de cinema fabular, de tintas fantásticas como o seu. O que o senhor conhece do nosso cinema?
Eu tenho pouca familiaridade com o que vocês fazem. O único diretor brasileiro cuja obra conheço bem é Bruno Barreto. Mas não é apenas por razões pessoais, já que ele foi casado com a minha ex-mulher, Amy Irving. Bruno é um grande diretor, como você pode conferir por “O que é isso, companheiro?”. Mas seria interessante ver o jovem cinema de vocês.
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Reportagem por Rodrigo Fonseca (Email) Publicado:
http://oglobo.globo.com/cultura/steven-spielberg-fala-de-lincoln-favorito-ao-oscar-ao-globo-de-ouro-7205885#ixzz2HECOLMwI
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