Netos de John Maynard Keynes estariam hoje na meia-idade, já perto da
aposentadoria, e sem chance provável de ver concretizada a previsão
feita pelo avô, em 1930, de que, cem anos depois, a jornada semanal de
trabalho em países desenvolvidos teria caído para mínimas 15 horas.
Teriam vivido, eles próprios, a experiência, comum nas últimas décadas,
de trabalhar 30 e tantas horas, se não mais. Bisnetos poderiam, quem
sabe, ler com interesse notícias a respeito da presença crescente de
robôs na produção industrial e fazer algum tipo de conjectura favorável
aos cálculos do avô - mas talvez fossem empregados no setor de serviços,
e trabalhariam o triplo, hoje, sem imaginar coisa diferente para 2030.
Parece ser menor a cada dia a possibilidade de Keynes ter feito a
conta certa quanto à jornada de trabalho. Mas é muito provável que daqui
a 17 anos, como ele previu, a qualidade de vida nas economias avançadas
possa ser medida em números até superiores a oito vezes os níveis de
1930 (por baixo, pensou, seriam quatro vezes). Um dos indicadores dessa
mudança de padrão, o tempo livre, ele mesmo, e seu uso - quando cada um
faz o que quer, em atividades de lazer, ou não faz nada, em ócio
absoluto - passa agora a ser objeto de atenção do IBGE. Um sistema de
pesquisa específico sobre uso do tempo, que começa a ser implantado,
mostrará como o brasileiro se comporta quando não está cumprindo suas
oito horas diárias de trabalho (se considerado o máximo admitido pela
Constituição).
Faz sentido, essa decisão do IBGE. Somos apenas uma economia
emergente, mas certas faixas da população já podem identificar-se, em
sua realidade ou em perspectiva, com o personagem ao qual Keynes se
refere no ensaio "Economic Possibilities for our Grandchildren", de
1931, aquele em que apareceram suas reflexões a respeito da jornada de
trabalho (Keynes não teve netos. Sua mulher, a bailarina russa Lydia
Lopokova, ficou grávida em 1927, mas abortou). Disse ele: "Pela primeira
vez desde sua criação, o homem terá pela frente seu real e permanente
problema" [não mais o de satisfação de necessidades básicas], ou seja,
"como usar a libertação das preocupações econômicas, como ocupar o tempo
livre ("leisure"), que a ciência e os juros compostos lhe terão
proporcionado, para viver sabiamente e agradavelmente e bem".
Resultados de um teste do futuro sistema do IBGE, agora
divulgados, indicam que o tempo gasto em atividades culturais, hobbies e
esportes - típicas de tempo livre - não fica maior, entre pessoas com
25 anos ou mais, à medida que se sobe na escolaridade. Os entrevistados
dessa faixa etária que tinham de 0 a 3 anos de estudo despendiam 2 horas
e 26 minutos por dia àqueles fins; à escolaridade de 4 a 7 anos
correspondiam 2 horas e 24 minutos; a 8 anos ou mais, 2 horas e 18
minutos. Ou seja, diferenças bastante pequenas. Também se verificou, no
mesmo universo etário, que a variação ascendente de escolaridade
corresponde a uma diminuição do intervalo reservado ao sono e aos
cuidados pessoais, como comer, beber, descansar, zelar pela saúde.
O teste mostrou que os meios de comunicação de massa, como a
televisão, preenchem parcela importante do tempo livre, em todos os
grupos de escolaridade. Entrevistados com 0 a 3 anos de estudo relataram
passar 3 horas e 34 minutos em frente à televisão, que se comparam a 3
horas e 29 para quem tem de 4 a 7 anos, e 3 horas e 22 minutos para os
com 8 anos ou mais de estudo.
Esses resultados assemelham-se aos de pesquisa de uso do tempo
realizada na França. Entre os franceses assalariados, assistir à TV
representou 54% do que se considerava tempo de lazer - 1 hora e 52
minutos por dia de um total de 3 horas e 28 minutos. Outros 33 minutos
eram despendidos com o uso da internet. Esportes e caminhada somavam
mais 24 minutos e leitura, 9 minutos. Tal detalhamento deverá ser
possível também no Brasil, quando o sistema do IBGE estiver
implementado.
Em relação ao dormir - que não é considerado tempo livre -, o teste
também revelou diferenças em relação a graus de escolaridade: de 8 horas
e 32 minutos de sono para pessoas com 0 a 3 anos, o indicador cai para 8
horas e 9 minutos para os que tinham de 4 a 7 anos de escolaridade e
para 7 horas e 58 minutos entre aqueles com 8 anos ou mais de estudo.
O tempo dedicado a cuidados pessoais, que inclui comer e fazer
higiene pessoal, também é decrescente, de acordo com as faixas de
escolaridade: 4 horas e 8 minutos, 3 horas e 45 minutos e 3 horas e 32
minutos, respectivamente.
A soma de todas as atividades de tempo livre registrada para os
pesquisados com 10 anos ou mais - ou seja, incluindo crianças -, foi de 4
horas e 49 minutos para os homens e 4 horas e 20 minutos para as
mulheres.
As informações são preliminares. Segundo Cimar Azeredo, coordenador
de Trabalho e Renda do IBGE, o teste tem limitações, inclusive em
relação ao aproveitamento da amostra. Embora tenham sido pesquisados
10.092 domicílios, apenas 53,1% dos diários de tempo - nos quais os
entrevistados informam o que fizeram a cada 15 minutos do dia - foram
considerados válidos. Quando implementada, a pesquisa terá âmbito
nacional e será renovada a cada cinco anos.
Enquanto isso, Maurício Marquez, presidente da agência de comunicação
carioca Fullpack, vai dando sua contribuição, todos os dias, para
reduzir as 15 horas de Keynes à sua real dimensão de possibilidade. "Se
não existissem essas tecnologias e eu precisasse fazer todas as coisas
que faço hoje, o dia precisaria ter 48 horas. Com elas, consigo fazer
tudo dentro de 24 horas. Inclusive, dormir. Fico ligado via iPad,
telefone, quase 'full time'." Ali pelas 21h, quando vai para a cama, usa
o botão "não perturbe" do iPhone para se desligar.
Uma possível explicação para o erro de Keynes na tentativa de
configurar o que seria uma era de lazer expandido até níveis jamais
imaginados estaria no fato de que, na verdade, as pessoas gostam de
trabalhar. Podem até dizer o contrário, queixando-se de rotinas
aborrecidas ou horários estendidos além do que prefeririam, mas o fato é
que o lugar de trabalho também pode ser um ambiente prazeroso, de
realizações próprias e convivência afetiva e criativa entre as pessoas. O
livro "Revisiting Keynes", editado por Lorenzo Pecchi e Gustavo Piga
(MIT Press, 2008), que reúne ensaios de vários economistas, passa por
aí.
As mulheres são personagens - e, frequentemente, protagonistas, em
funções antes reservadas aos homens - de presença marcante no universo
de possibilidades de uso do tempo induzidas pelas novas tecnologias.
Sônia Hess de Souza, presidente da Dudalina, indústria têxtil, e membro
de várias entidades empresariais, inclusive do Conselho de
Desenvolvimento Econômico e Social da Presidência da República, reserva
sábados e domingos para a família. Em termos. "Raramente ligo para algum
de meus executivos no fim de semana, mas não espiar o e-mail é quase
como não rezar um Pai-Nosso antes de dormir. Estou evitando fazer isso e
até sou bastante disciplinada. É mais no domingo à noite que começo a
abrir a caixa postal para entrar no clima de segunda. É muito difícil no
meu cargo ter tempo livre."
Feitas todas as contas, o tempo que Sônia dedica ao trabalho deve
superar aquele captado como simples elemento estatístico. Em 2011, as
mulheres tinham uma jornada semanal de 36,8 horas, praticamente a mesma
carga de 2001, que chegava a 36,7 horas. Os homens passaram a trabalhar
menos, dedicando à profissão 42,9 horas semanais em 2011, depois de
terem chegado a 45,2 horas em 2001, segundo a Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílios (Pnad). É a carga mais baixa desde então. Nem por
isso aumentou o tempo que destinam aos cuidados da casa e da família,
terreno em que as mulheres permanecem com o peso maior, mesmo depois de
uma redução de 28,9 para 26,3 horas. Os homens continuam satisfeitos,
parece, com o que consideram a parte que lhes cabe na vida doméstica:
eram 10,9 horas semanais em 2001, e nada mudou ao longo da década, até
2011.
Pessoas em cargos de direção, como Sônia, nas áreas privada e
pública, são a categoria que declara ter as maiores jornadas, apesar da
redução havida entre 2002, primeiro ano para o qual o dado está
disponível, e 2011. Passaram de 50,4 horas para 47,3 entre os homens, e
de 45,4 para 43,1 entre as mulheres - acima, portanto, das médias
nacionais para cada sexo.
A redução da dupla jornada, tanto para homens quanto para mulheres,
tem significado relativo na vida real de cada um, e não só como se
espera de toda expressão estatística. Vai ganhando ritmo de tendência a
sobreposição de uso profissional ao que antes era o tempo considerado
efetivamente livre - ou seja, o antigo expediente, que antes se
restringia ao escritório, passou a atravessar a porta de casa, ou de
qualquer outro lugar em que se esteja, fora do ambiente de trabalho
formal.
"Para boa parte da população economicamente ativa ocupada, o tempo de
trabalho remunerado afeta o tempo livre de modo significativo,
crescente e negativo", afirma André Gambier Campos, técnico do Instituto
de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e doutor em sociologia pela USP,
autor do estudo "Trabalho e Tempo Livre", publicado em setembro. Campos
observa que essa interseção de usos do tempo foi declarada, pelos
entrevistados em pesquisa realizada para fundamentação do estudo, mesmo
tendo diminuído, nos anos 2000, as ocorrências de jornadas mais extensas
que o limite legal de 44 horas semanais.
Pesquisadores do Sistema de Indicadores de Percepção Social (Sips) do
Ipea ouviram 3.796 pessoas em todo o Brasil. Menos de um terço (29,7%)
dos entrevistados disseram-se capazes de assumir outros compromissos
regulares para além do trabalho remunerado. Parcela maior (37,7%)
informou que o tempo livre vem diminuindo no período recente, por efeito
direto das atividades profissionais. E quase metade (45,4%) disse ter
dificuldade para se desligar totalmente do trabalho, mesmo após o fim do
expediente.
"Quanto mais avançado um contexto econômico, maior a valorização do
trabalho e das credenciais a ele vinculadas. Por isso, os grupos
ocupacionais mais escolarizados e que auferem maiores ganhos econômicos
trabalham cada vez mais, porque deriva daí seu símbolo de status", diz
Luiz Flávio Neubert, professor da Universidade Federal de Juiz de Fora
(UFJF), que analisou em sua tese de doutorado o uso do tempo por
diferentes posições ocupacionais. O acréscimo de horas trabalhadas é
maior entre as mulheres. Segundo dados do IBGE, para as que tiveram 11
anos de estudo ou mais, a carga semanal é 6 horas maior do que a das com
até 10 anos. Para os homens, nesse mesmo recorte, o aumento é de 1,2
hora.
"Meu tempo livre diminuiu muito. Priorizo a vida familiar e meu lado
profissional. Tenho feito menos exercícios, vou menos à academia. Tempo
livre, ocioso, a gente diminui. Na verdade, quase não tenho", diz
Danielle Panissa, diretora de marketing da Procter & Gamble, casada e
mãe de duas crianças. É assim, apesar de ela morar a sete minutos do
trabalho. "Dá para bloquear a agenda e almoçar com a família" - os
filhos também estudam nas redondezas.
A hora do almoço de Vivian Perce, gerente especialista em recursos
humanos do grupo FBM, de consultoria empresarial, acaba servindo para,
"de vez em quando, dar uma passada no supermercado". As refeições em
família são o café da manhã, que ela prepara depois de levantar-se às
5h30, e o jantar - quando é possível, já que a jornada, de
aproximadamente dez horas, continua em casa. São outras duas ou três
horas no trânsito.
"Acho que, quanto mais se sobe de cargo, o tempo fica menor", diz
Vivian, casada, mãe de uma menina de 9 anos. "É claro que, com um nível
econômico melhor, consegue-se fazer coisas diferenciadas. Dá para ir a
bons restaurantes, viajar quando há um feriado prolongado, para passar
bons momentos juntos. Mas é complicado em relação ao nível de
responsabilidade que você assume." Sair de cena, mesmo nos momentos de
lazer, está fora de questão. "Não dá para parar, desligar a chave
realmente. No dia a dia, e mesmo no fim de semana, estou sempre
conectada. Recebo e-mails, atendo o telefone. Não há como não responder.
Procuro ter um equilíbrio durante o fim de semana em relação às minhas
atividades. Mas não deixo de responder, de atender a uma necessidade que
seja urgente."
Para Neubert, da UFJF, são justamente as pessoas mais qualificadas
que tendem a ampliar o tempo dedicado ao trabalho para além do período
formal, levadas pelas facilidades das novas tecnologias de comunicação,
como "tablets" e telefones móveis. "Para trabalhadores autônomos não
qualificados, por exemplo, o uso do celular é uma importante fonte para
conseguir demanda de trabalho." Para ocupações de gerência e
administração, trata-se de dedicar mais tempo às tarefas do dia.
Os mais de 30 anos no mercado óptico ensinaram à diretora da
divisão de luxo da Cartier Lunettes no Brasil, Eliane Gonçales, como
identificar o que é importante, urgente - competência valiosa, sobretudo
agora que o "smartphone" e o "tablet" lhe deram a companhia permanente
dos e-mails. "Se você não está com o iPad, está com o iPhone. Querendo
ou não, todas as mensagens batem no meu telefone. Então, mesmo que
esteja fazendo o pé ou a mão, eu recebo. Quando estou num parque ou numa
reunião de família, evito responder. Mas se é urgente, importante,
atendo imediatamente."
A atenção aos excessos permitidos pela conectividade ilimitada não
deve se restringir às preocupações do dirigente empresarial consigo
mesmo. É recomendável que se estenda ao que ocorre com os subordinados,
avalia Alvaro Mello, coordenador do Centro de Estudos de Teletrabalho e
Alternativas de Trabalho Flexível (Cetel), da Business School São Paulo.
O risco de empregados ampliarem a jornada além da conta, e partirem
depois para demandas judiciais, é real até mesmo para companhias que não
usam formalmente o trabalho a distância.
"O trabalhador passa o dia inteiro na empresa e, quando chega em
casa, vai dar uma olhada no notebook", diz Mello. "Há empresas que não
permitem o trabalho fora do escritório, mas também não dão tempo para
que o funcionário, por exemplo, responda a todos os e-mails. Resultado:
ele vai trabalhar mais duas, três horas horas em casa." Uma estratégia
possível é barrar o acesso à rede corporativa a partir de determinado
horário - como faz o Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro),
que impõe a restrição a partir das 21 horas. Mas isso não significa que
se esteja erguendo uma barreira por si só suficiente para conter o
comportamento dos funcionários em limites estabelecidos pela empresa.
É o que se vê no caso de Thaïs Rodrigues Crespo Luz, funcionária da
área de gestão de processos do Serpro. "De repente, você está com
insônia e vai trabalhar de madrugada." Escrever um relatório, por
exemplo, pode não depender de acesso à base de dados. A reabertura do
sistema, no dia seguinte, encontrará Thaïs sem nenhuma preocupação com a
hora de ir para o trabalho. Há quatro anos ela dá expediente em casa,
em Santos, no litoral paulista, a 80 km de São Paulo, onde está a
unidade do Serpro. Em suas contas, essa opção lhe permite economizar de 4
a 5 horas por dia, considerado o tempo de ida e volta da capital.
"Antes, quando estava em São Paulo, mesmo que estivesse no meio de um
projeto, de um processo, de uma linha de pensamento, tinha de largar às
17 horas. Hoje, não preciso nem interromper o trabalho por causa do
horário. Posso me estender um pouco mais, se quiser." Habitualmente,
porém, ela, que se diz "metódica e disciplinada", cumpre o horário
formal.
Keynes errou na previsão de queda contínua
da jornada de trabalho, mas vai acertando na
conta de melhoria da
qualidade de vida
A questão de trabalhar em casa - como alternativa permitida pela
empresa ou por vontade própria - é anterior à disseminação das
tecnologias de comunicação, diz Mello. Pessoas com propensão a trabalhar
além da conta usual, argumenta, já existiam bem antes dos "tablets",
celulares e da própria lei 12.551/2011, que regulamenta o trabalho a
distância. As inovações apenas lhes deram mais condições para estender a
atividade, em casa ou em qualquer outro lugar.
Autocontrolar-se é difícil, pois as possibilidades abertas pelos
novos equipamentos acabam tomando a forma de obrigação. O poder vira um
dever, avalia a psicanalista Maria Rita Kehl. "Conheço pessoas, aqui no
meu consultório, não só pacientes, que têm a seguinte dificuldade: se
não aceita fazer uma reunião on-line com o chefe e mais três
funcionários às 22h, você sairá perdendo. A competitividade traz essa
pressão. Afinal, se você pode, se você tem um celular, por que não? É
quase irrecusável."
Maria Rita observa que as tecnologias, enquanto prometem
agilidade para resolver demandas profissionais e, assim, proporcionaram
mais tempo livre, acabam por transformá-lo em uma extensão do tempo de
trabalho. A própria diversão já ganha características das atividades
laborais. "O ritmo de uma rave é quase uma espécie de reprodução de um
trabalho industrial pesado." Ela faz também um paralelo entre o
incessante bater e postar fotos dos momentos de descontração e a lógica
do trabalho. "Ele [o indivíduo] é produtivo o tempo todo."
A noção de que se está sempre acessível em qualquer lugar é uma das
alterações que as tecnologias produzem no cotidiano e que contribuem
para turvar a fronteira entre tempo livre e tempo de trabalho, diz Carla
Rodrigues, doutora em filosofia e professora da Universidade Federal
Fluminense (UFF) e da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
(PUC-Rio). "Você trabalhou por 8, 9, 10 horas e já está fora do seu
horário de trabalho, mas deve estar disponível para algum tipo de
emergência ou algum tipo de demanda que a empresa possa apresentar.
Provavelmente, não existe nenhum lugar do mundo onde você não pode ser
encontrado."
É um lado negativo do progresso tecnológico que começa a provocar
questionamentos sobre a qualidade do tempo livre, agora visto não apenas
em suas quantidades, afirma Marco Mira d'Ercole, diretor de
Estatísticas Domésticas e Mensuração de Progresso da Organização para a
Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). O tempo total dedicado ao
lazer é um dos indicadores que d'Ercole considera fundamentais para se
medir a qualidade de vida de uma população. Mas talvez já seja hora de
contabilizar também quanto de lazer pode ser aproveitado de forma
ininterrupta, para assim definir a qualidade do uso que se faz do tempo
em que se está fora do trabalho. "Se você gasta duas horas vendo um
filme, mas é interrompido seis vezes por causa do e-mail profissional
que supostamente deve responder, pode argumentar que, mesmo se o seu
tempo livre total não muda, a quantidade de prazer que você tira dele é
menor", disse d'Ercole ao Valor.
Interrupções, de fato, afetam negativamente a qualidade do lazer,
observa Jonathan Gershuny, diretor do Centro para Pesquisa de Uso do
Tempo e professor do Departamento de Sociologia da Universidade de
Oxford. Seja qual for a relação entre tempo de trabalho e tempo livre,
ainda é cedo para dizer que se esteja trabalhando mais, afirma Gershuny -
e talvez as novas tecnologias apenas tenham substituído pastas e
papéis. "Em pesquisas que faço desde os anos 1970 fica evidente o hábito
de se levar trabalho para casa, principalmente em profissões que exigem
grau elevado de conhecimento."
Otávio e Elisabeth Ventura decidiram expulsar o celular das mesas dos
restaurantes. Há dois anos, começaram a deixar os aparelhos no carro,
ou na bolsa. Evitam falar de trabalho fora da Your Office, empresa de
aluguel de flats comerciais com sede em Barueri, na Grande São Paulo,
que administram juntos. Mas a tecnologia frequentemente fala mais alto,
como no ano passado, durante uma viagem a Visconde de Mauá, no Estado do
Rio. "Pegamos a estrada na hora do almoço", conta Otávio. "E daqui até
lá são algumas horas. Elisabeth foi o tempo todo no "tablet". Chegou uma
hora em que disse: 'Espera aí. Saímos para viajar ou você trouxe o
escritório para dentro do carro?'". E acrescenta: "Bem administrada,
tecnologia é uma facilidade que você não fica mais sem. Computador e
celular são como automóvel. Você consegue viver sem só enquanto eles não
existem."
Carla Rodrigues também atribui a interseção entre tempo de trabalho e
tempo livre a outras dinâmicas socioeconômicas. Uma delas é a
flexibilização do mercado, que exige disponibilidade permanente dos que
trabalham em regime precário, sem carteira assinada - nenhum telefonema,
não importa em que horário, deixará de ser atendido, pois pode ser uma
oportunidade de negócio, exemplifica.
Segundo Neubert, trabalhadores informais e menos qualificados têm
dificuldade maior de organizar a semana em termos de dias úteis e fins
de semana. "Indivíduos mal colocados no mercado de trabalho, que
trabalham em ocupações informais etc., não desfrutam de uma semana
organizada da forma mais tradicional, mesmo trabalhando 'menos'".
Outra circunstância nova é o crescimento da economia criativa. Para
quem trabalha nesse segmento de atividade, a separação entre tempo de
trabalho e tempo livre não faz sentido, diz Carla, pois a criação
depende do tempo livre para que se produza inspiração. Gershuny acredita
que a divisão entre trabalho e lazer, historicamente, é na verdade uma
exceção forjada durante a era [de domínio] industrial - e por isso é
mais difícil, hoje, identificá-la.
"Acho que aquilo foi um período inusual em que essas temporalidades
eram fortemente separadas e delineadas. Mas, historicamente, essa não
foi a regra e talvez tenhamos voltado agora para uma situação mais
parecida com a que existia antes do alto período industrial, em que
trabalho e lazer, o lugar de trabalho e o lugar da família, produção e
consumo estavam mais misturados", afirma Gershuny.
A flexibilização do uso do tempo pode dar-se no próprio lugar de
trabalho. É assim na Fullpack. Em sua sede, no Rio, os terraços têm
vista para o mar da Barra da Tijuca. Há os vestiários necessários para
quem quer pegar uma onda na hora do almoço, um bar, jardim e um estúdio
onde o presidente Maurício Marquez toca com a banda de que participa com
outros membros da empresa - a Fullband. Ele é o baterista. Sessões de
relaxamento também ajudam a aliviar o peso da rotina.
"Você consegue pessoas mais comprometidas, mais felizes, porque
trabalham num ambiente relaxado. Fala-se na questão do ócio criativo, e é
isso mesmo. A gente vê nos números. Tivemos um crescimento do
faturamento bruto de 46% [em 2012]. Quem faz isso são as pessoas que
estão trabalhando no dia a dia. Pessoas felizes, empresa feliz também.
Isso tudo reflete na saúde delas, ficam menos doentes, têm menos
estresse."
O ócio no trabalho é possível, pois é uma "vivência interior", que
depende da vontade da pessoa e não do momento em que acontece", explica o
pedagogo Manuel Cuenca Cabeza, fundador do Instituto de Estudos do Ócio
da Universidade de Deusto, na Espanha, e autor de 23 livros sobre o
tema. O mesmo vale para cozinhar ou cuidar dos filhos e netos, tarefas
comuns do tempo livre das executivas ouvidas pelo Valor,
mas que são registradas como trabalho doméstico nas pesquisas sobre
trabalho e uso do tempo. Isso porque, diferentemente de ver um filme ou
ir à academia, por exemplo, tais atividades podem ser delegadas.
A chave para diferenciar uma coisa da outra é, mais uma vez, o ritmo,
diz Maria Rita Kehl. "Se você tem tempo para chegar em casa e fazer
comida para seu filho, isso vai ser feito forçosamente em outro ritmo
(que não o de trabalho). A não ser que você esteja fazendo comida
correndo, para voltar logo para o emprego. Mas, mudando o ritmo, isso já
é sentido como lazer na situação que se vive hoje."
Independentemente da forma como são executadas ou experimentadas,
porém, atividades domésticas não remuneradas geram riqueza e, portanto,
também podem - e, para alguns pesquisadores, como d'Ercole, devem -
entrar nas contas nacionais. No Brasil, um grupo de pesquisadores da
Faculdade de Economia da UFF fez um exercício atribuindo ao tempo gasto
no trabalho doméstico não remunerado um valor baseado no salário pago às
empregadas domésticas. O cálculo aponta que, se os afazeres de casa que
homens e mulheres realizam de graça fossem contabilizados
monetariamente, significariam um acréscimo ao PIB, a cada ano, em média,
de 11,3% (no período 2001/2011). "É uma subavaliação", ressalva Hildete
Pereira, integrante do grupo e coordenadora geral dos programas de
educação e cultura da Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM) da
Presidência da República. As mulheres são responsáveis por 82% daquela
contribuição para o PIB, em correspondência direta com o fato de
assumirem mais a responsabilidade por atividades domésticas do que os
homens.
Mesmo entre ocupantes de cargos de direção, a desigualdade é também
significativa: enquanto os homens realizam 8,6 horas de afazeres
domésticos por semana, a carga horária feminina é de 17,8 horas, segundo
a PNAD, do IBGE. "Quando a população tem mais renda, contrata empregada
doméstica. Ainda assim, as mulheres, mesmo as que trabalham fora,
administram (a casa) e fazem alguns trabalhos domésticos", diz Neuma
Aguiar, professora emérita da Universidade Federal de Minas Gerais e
membro vitalício da Associação Internacional de Pesquisas de Uso do
Tempo.
Neste ano, pela primeira vez, a conferência da entidade acontecerá no
Brasil, indicação do interesse do país em implementar sua própria
pesquisa de uso do tempo. Será em agosto, no Rio de Janeiro. A
expectativa, segundo Cristina Monteiro, coordenadora do Comitê Técnico
de Estudos de Gênero e Uso do Tempo (Cegut) da SPM, de que também
participam IBGE e Ipea - é que uma decisão sobre o início do
recolhimento de dados seja tomada ainda neste ano. "A divisão sexual do
trabalho", diz Cristina, "nada mais é, para dizer de maneira simples,
como os homens e as mulheres dividem seu tempo entre o trabalho
remunerado e não remunerado."
Vivian, da FBM, afirma que ela e o marido, ambos executivos,
conseguem chegar a uma boa divisão das tarefas domésticas. "Mas é claro
que, se acontece algum problema na escola (da filha), se há alguma
demanda, sou eu que vou conversar. A mulher ainda acaba abrindo muito a
mão das coisas em relação ao homem. As atividades do trabalho e da casa,
apesar de eu ter uma pessoa que ajuda bastante, acabam consumindo a
maior parte do tempo. Na verdade, não tenho tempo livre."
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