domingo, 4 de agosto de 2013

Dimensões da Alma e do Corpo

 Joaquim Motta*

Seres humanos somos susceptíveis às doenças, 
à decrepitude da idade e à morte.

A medicina procura combater os males e adiar o fim. O trabalho médico seria facilitado se admitíssemos carne e espírito sempre juntos, inseparáveis e unidos, do início ao final da vida.

Compreender o indivíduo, no plano pessoal e na sociedade, e como funciona essa unidade de integração corporal e anímica são os esforços da Medicina Psicossomática.

Se fôssemos rigorosos com esse título, dispensaríamos o adjetivo. A medicina seria naturalmente psicossomática, mas os vícios resistem.

A religião sempre pretendeu milagres. Buscar tratamentos e curas por meios mágicos induziu a separação do corpo e da alma. Essa receita corroborou o comando moralista que insistia em segregar a carne do espírito.

Na sociedade primitiva, ao começar as primeiras fixações dos povos que se tornavam agrícolas, 10 mil anos a. C., a doença tinha como causa os poderes espirituais. Era, então, enfrentada pelos mesmos meios (exorcismos).

Cinco mil anos depois, próxima da escrita, já havia a prática da trepanação (perfurar o crânio, técnica especializada da cirurgia atual).

Na civilização assírio-babilônica, 2500 anos a.C., a medicina era controlada pela religião. A sugestão tinha grande aplicação terapêutica na Mesopotâmia. Um rudimento psicossomático já surgia.

Na Grécia antiga, cerca de 400 anos a. C., para cuidar do corpo, pensava-se em conhecer o todo e a importância da alma. Hipócrates, considerado o “pai da medicina”, teria redigido o juramento do médico, onde conselho equivaleria a remédio.

Na transição da civilização helênica para a cultura romana, até quatro séculos d. C., os fluidos do corpo eram os focos principais da medicina.

Durante o milênio da Idade Média, religião e misticismo tomam conta do panorama – o pecado é o grande causador das moléstias mentais e corporais.

Mesmo assim, alguns tiveram visão aberta para expandir suas referências. Médico mouro do século 12, Maimônides deixou o recado: "Uma consulta deve durar uma hora. Durante dez minutos, ausculte os órgãos do paciente. Nos cinquenta minutos restantes, sonde-lhe a alma".

Nos dois séculos do Renascimento, as ciências naturais são priorizadas. Tudo tem que ser explicado objetivamente. Na subjetividade da mente e do espírito, os problemas eram considerados “não científicos”, relegados à religião e à filosofia.

No recente século 19 e início do 20, procuravam-se alterações estruturais das células para entender e tratar as doenças, de modo que o enfoque psicossomático seguiria renegado.

Espiritualidade e religiosidade estiveram ligadas à medicina ao longo dos tempos, com exceção deste período entre a metade do século 19 e últimas décadas do século 20. Durante esse tempo, foram associadas a rituais primitivistas, fuga emocional, negação da realidade. Nos últimos anos, surgiram pesquisas da Neurociência mostrando a sua importância no desenvolvimento do quadro clínico das doenças.

As pessoas que têm uma crença sincera e consistente, caso padeçam de alguma doença, podem evoluir e recuperar a saúde de modo mais rápido.

Não é exatamente um efeito religioso que cria essa segurança. O mesmo resultado pode ser obtido pela tranquilidade sentimental de quem se sente bem amado.

A fé que ajuda algumas pessoas pode, por outro lado, ser extremamente nociva para muitas delas. Talvez, as que são beneficiadas correspondam àquelas que têm facilidade para amar.

As outras formam uma provável maioria que não tem crença com resiliência suficiente nem amorosidade capaz de suportar os trancos e traumas de suas vidas.

Há cem anos, Sigmund Freud lançou as formulações que salientam o determinismo psíquico nas reações somáticas e sistematiza a psicanálise.

Contemporâneo de Freud, Wilhelm Stekel, também pioneiro da psicanálise, lançou a expressão alemã organsprache ("a fala dos órgãos") para denominar sintomas físicos decorrentes do âmbito psíquico.

Em pleno século 21, o nosso gabarito histórico e o reconhecimento dos equívocos e acertos deveriam equipar nossas tendências para que permitíssemos um fluxo amplo e livre entre corpo e alma.

Os fracassos e sucessos deveriam reforçar-nos mentalmente e flexibilizar democraticamente toda a nossa compreensão intelectual e filosófica da ciência e da arte.

A ciência se confirma à medida que se reproduza, e a arte se comprova se não tiver cópias.

Para se caracterizar um fato científico, ele precisa ser repetido muitas vezes e levar ao mesmo resultado. Uma obra artística é incomparavelmente única.

No laboratório, com as mesmas doses de reagentes e ambiente monitorado, seguindo o padrão recomendado pelos autores, a química prática se ratifica.

Na sala de concerto, cada vez que uma sinfonia é tocada, teremos um efeito diferente.

O corpo é ciência, a alma é arte.
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* Psiquiatra, psicoterapeuta e sexólogo. Palestrante e congressista de vários eventos nacionais e internacionais. 
Email: jzmmota@uol.com.br 
Fonte: Correio Popular.
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