domingo, 27 de setembro de 2015

A MENTIRA COMO VOCAÇÃO

Um dos motivos psicopolíticos fundamentais do nosso tempo é aquele de onde emerge a palavra “mentira”, em torno da qual se organiza grande parte da subjectividade política. E o que anima esta subjectividade nem é já o ressentimento nem a decepção, aquela “raiva de ter sido enganado” que George Grosz disse ser a disposição cínico-reflexiva da sociedade da República de Weimar e que permitiu a Hitler chegar ao poder prometendo a erradicação da mentira. O que a anima é, antes, algo menos agónico, uma “tonalidade epocal” responsável por um forte niilismo eleitoral. 

De certo modo, governar e mentir sempre foram sinónimos. Há quem afirme, com preceitos de sabedoria antiga, que assim é porque a verdade dos soberanos foi sempre diferente da vontade dos servos. Mas da defesa que Platão faz das “nobres mentiras” até à formulação muito eufemística de Hannah Arendt, segundo a qual “ninguém duvidou alguma vez de que é difícil a relação difícil entre verdade e a política”, persistente é o discurso teórico e doutrinário que nos fala das mentiras como instrumentos legítimos da profissão política. 

A experiência dos totalitarismos dos século XX ministrou uma lição: os regimes totalitários são fundados no primado da mentira. É uma conclusão que tanto inspirou George Orwell como Alexandre Koyré, o autor de The Political Function of the Modern Lie. Entre nós, deu-se nos últimos tempos um fenómeno discursivo de alguma importância: acusar um político de ser mentiroso deixou de ser uma prerrogativa da linguagem da “rua” e entrou sem cerimónias nas disposições do debate político. Tornou-se um argumento usado nas instâncias que, até há pouco, nunca tinham descido abaixo das “inverdades”, na escala das virtudes políticas. Isso não se deve a um recrudescimentos da mentira (Koyré é muito claro quanto à época em que se dá a hipertrofia da mentira:

 “O homem moderno — do genus totalitário — nada na mentira, respira a mentira, é prisioneiro da mentira em cada instante da sua vida”), mas a dois outros factores: em primeiro lugar, os políticos passaram a exercer a sua actividade num palco, estão sempre expostos e em plena representação (raramente fogem ou evitam na medida do possível essa condição porque aquilo de que são escravos é também o que lhes dá poder e capital simbólico); 

em segundo lugar, a política tornou-se uma especialidade técnico-gestionária que tem como meio os números e uma imensa série de dados que só podem ser uma de duas coisas: ou são verdades de facto ou são falsidades. A mentira em política já não é a “inverdade” que estava a meio caminho entre as ilusões da ideologia e as mentiras factuais. E, por isso, começou a tornar-se matéria para uma acusação deste tipo: “O senhor, que é meu par, é mentiroso”. 

Quando a política tinha uma dimensão ideológica e era sobretudo uma política das ideias, a mentira predominante, aquela em nome da qual se praticavam quase todas as outras, era a mentira da ideologia. Refiro-me ao conceito marxista de ideologia que, se não coincide inteiramente com a mentira e o erro, conduz-nos, pelo menos, para o lugar de uma não-verdade, para um véu que encobre a realidade. 

O que há então de novo, nesta questão da mentira política, é que passou a ser difícil, nas acuais circunstâncias, defender concepções substancialmente estéticas da política, como a de um teórico completamente anti-ético como Carl Schmitt, porque o triunfo da mentira de facto, aquela que autoriza a que se diga a um político que ele é mentiroso, não trouxe apenas consigo este rebaixamento da política ao discurso de gente mentirosa; caucionou também o seu contrário, uma ideologia ética de uma pobreza constrangedora.
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* Jornalista.
Fonte: Site de Portugal:  http://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/a-mentira-como-vocacao-1708698
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