Um dos motivos psicopolíticos fundamentais do
nosso tempo é aquele de onde emerge a palavra “mentira”, em torno da
qual se organiza grande parte da subjectividade política. E o que anima
esta subjectividade nem é já o ressentimento nem a decepção, aquela
“raiva de ter sido enganado” que George Grosz disse ser a disposição
cínico-reflexiva da sociedade da República de Weimar e que permitiu a
Hitler chegar ao poder prometendo a erradicação da mentira. O que a
anima é, antes, algo menos agónico, uma “tonalidade epocal” responsável
por um forte niilismo eleitoral.
De certo modo, governar e mentir sempre
foram sinónimos. Há quem afirme, com preceitos de sabedoria antiga, que
assim é porque a verdade dos soberanos foi sempre diferente da vontade
dos servos. Mas da defesa que Platão faz das “nobres mentiras” até à
formulação muito eufemística de Hannah Arendt, segundo a qual “ninguém
duvidou alguma vez de que é difícil a relação difícil entre verdade e a
política”, persistente é o discurso teórico e doutrinário que nos fala
das mentiras como instrumentos legítimos da profissão política.
A
experiência dos totalitarismos dos século XX ministrou uma lição: os
regimes totalitários são fundados no primado da mentira. É uma conclusão
que tanto inspirou George Orwell como Alexandre Koyré, o autor de The Political Function of the Modern Lie.
Entre nós, deu-se nos últimos tempos um fenómeno discursivo de alguma
importância: acusar um político de ser mentiroso deixou de ser uma
prerrogativa da linguagem da “rua” e entrou sem cerimónias nas
disposições do debate político. Tornou-se um argumento usado nas
instâncias que, até há pouco, nunca tinham descido abaixo das
“inverdades”, na escala das virtudes políticas. Isso não se deve a um
recrudescimentos da mentira (Koyré é muito claro quanto à época em que
se dá a hipertrofia da mentira:
“O homem moderno — do genus totalitário
— nada na mentira, respira a mentira, é prisioneiro da mentira em cada
instante da sua vida”), mas a dois outros factores: em primeiro lugar,
os políticos passaram a exercer a sua actividade num palco, estão sempre
expostos e em plena representação (raramente fogem ou evitam na medida
do possível essa condição porque aquilo de que são escravos é também o
que lhes dá poder e capital simbólico);
em segundo lugar, a política
tornou-se uma especialidade técnico-gestionária que tem como meio os
números e uma imensa série de dados que só podem ser uma de duas coisas:
ou são verdades de facto ou são falsidades. A mentira em política já
não é a “inverdade” que estava a meio caminho entre as ilusões da
ideologia e as mentiras factuais. E, por isso, começou a tornar-se
matéria para uma acusação deste tipo: “O senhor, que é meu par, é
mentiroso”.
Quando a política tinha uma dimensão ideológica e era
sobretudo uma política das ideias, a mentira predominante, aquela em
nome da qual se praticavam quase todas as outras, era a mentira da
ideologia. Refiro-me ao conceito marxista de ideologia que, se não
coincide inteiramente com a mentira e o erro, conduz-nos, pelo menos,
para o lugar de uma não-verdade, para um véu que encobre a realidade.
O
que há então de novo, nesta questão da mentira política, é que passou a
ser difícil, nas acuais circunstâncias, defender concepções
substancialmente estéticas da política, como a de um teórico
completamente anti-ético como Carl Schmitt, porque o triunfo da mentira
de facto, aquela que autoriza a que se diga a um político que ele é
mentiroso, não trouxe apenas consigo este rebaixamento da política ao
discurso de gente mentirosa; caucionou também o seu contrário, uma
ideologia ética de uma pobreza constrangedora.
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* Jornalista.
Fonte: Site de Portugal: http://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/a-mentira-como-vocacao-1708698
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