domingo, 6 de setembro de 2015

O desejo de desconectar

Queremos liberdade mas nos sentimos mancos sem companhia tecnológica

Quanto mais complexas se tornam nossas sociedades, mais propensas a gerar paradoxos como a que causou furor alguns anos atrás: “Vivemos melhores à custa de nos sentirmos piores”. Nossas vidas transcorrem entre dualidades pelas quais surfamos tentando encontrar alguma moderação aristotélica. Como conciliar o ritmo acelerado com a serenidade? Como combinar o imediatismo com a reflexão? Como criar algo se não temos tempo?
    Outro dos paradoxos atuais, talvez um dos mais chamativos, tem a ver com a sede de se desconectar. Em um mundo que permanece hoje mais do que nunca através da conectividade, é sintomático tanto desejo de se desconectar. Vivemos conectados, querendo nos desconectar.

    Não é estranho que sempre ouçamos: vamos desconectar no fim de semana! Na verdade, é apenas mais um paradoxo. Realmente o que fazemos é ir ao encontro do que provavelmente é o único e mais necessário: buscar a nós mesmos por algum tempo, nossos amigos, o que é verdadeiramente autêntico, o natural em vez do artificial. A substância contra a matéria.

    O que tem a conectividade que nos aprisiona tanto? Presumo que o caráter útil e funcional das tecnologias e programas que acrescentam valor à saúde, educação, lazer e relacionamentos interpessoais. Embora seja necessária muita distinção entre o joio e o trigo, a socialização do conhecimento e da informação, incluindo opiniões pessoais, é incomparável.

    No entanto, a capacidade insaciável do ser humano de praticar o autoengano e criar estados ilusórios transforma os próprios instrumentos em iscas às quais sucumbimos por seu poder de sedução. Vejamos alguns:

    Se você não estiver conectado, não está no mundo. Já que as crenças organizam os mundos que habitamos, para muitas pessoas a ideia de ficar conectada todo o dia cria a ilusão de que são parte ativa da sociedade em que vivem. Acabam convencidas da força de suas opiniões, de sua capacidade de influência, do interesse que despertam nos outros, mesmo que seja para que falem mal delas. Existe uma grande dose de narcisismo em uma cultura que se orgulha de “pendurar na Rede” toda sua vida (fotos, opiniões, símbolos, gostos e preconceitos). É a maneira encontrada pela pós-modernidade de recriar o sentimento de pertencimento. Ou você é visto ou não é ninguém. A quem interessa que acreditemos nisso?

    Quando passamos o dia consultado, opinando, conversando, respondendo imediatamente tudo o que acontece, ou é seu trabalho, ou ficou preso na rede, não há melhor maneira de descrever. Talvez a ideia de estar conectado o dia todo esconde uma dificuldade maior: encher-se de algo que não existe. É apenas uma miragem passageira. Como o viciado, é preciso fugir do próprio vazio, ou da dor e da tristeza, para abraçar o que acontece lá, em um mundo aparente, onde não param de acontecer coisas que, na verdade, acontece com os outros.
    Cada alma é e se torna o que ela contempla” Plotino
    Tomá-lo como uma obrigação. Não resta dúvida de que a comunicação interpessoal foi alterada pela obrigação da conectividade. Hoje aparecem várias formas de conflitos entre casais, pais e filhos ou colegas de trabalho. Não só por razões de mal-entendidos e suposições sobre as mensagens, mas por causa das exigências que são atribuídas à conectividade: é preciso estar sempre disponível. Há um conflito, mais uma vez, entre a liberdade e a necessidade.

    A confiança hoje não se baseia na sinceridade, mas nos ensaios. Os engenhosos aplicativos de celulares têm uma contrapartida controladora que pode nos transformar em policiais do outro. Como é que você estava conectado e não me respondeu? Eu sei que você recebeu a mensagem, onde estava? Mostre-me a conversa, se realmente não tem nada a esconder! De quem são essas fotos?

    Celulares, chats, mensagens agora são fontes de suspeita. Não confiamos na pessoa, mas no instrumento, como se fosse a máquina da verdade. Nas consultas dos especialistas há pessoas que confessam ter feito o impensável: entrar na conta de Internet de seu cônjuge; fuçar nas conversas do celular; ver o histórico de páginas e lugares que visita... Não deixar o celular à vista ou travar com senha o computador é uma fonte de angústia e propósitos perversos. Não podem ser entendidos como atos de liberdade ou autonomia. São provas que questionam a relação.

    É um real desconforto relacionar a privacidade com o engano. Em outras palavras, se alguém trai não será por culpa dos instrumentos. No entanto, seu uso como prova permanente de sinceridade e lealdade se transforma em um ataque ao espaço pessoal e um controle excessivo ao espaço relacional. A exigência de transparência pode se tornar uma necessidade perigosa. Temos de aprender a ser livremente responsável e resolver, se houver, os problemas de fundo de qualquer relacionamento.
    A conectividade é tanto um imperativo técnico quanto moral”
    Daniel Innerarity
    Viver fora do tempo. Uma das características mais marcantes da vida em conectividade é sua capacidade de quebrar as barreiras do tempo. Hoje vivemos fora do tempo, embora o imediatismo e o intervalo se imponham. No caso de imediatismo é preciso falar já de uma verdadeira obsessão por permanecer conectados e ativos, até o extremo de dirigir enviando mensagens. Arriscamos a vida por não termos paciência, acreditando que somos obrigados a responder imediatamente, porque aceleramos tanto a existência que nos esquecemos de viver. Conta apenas o instante. O importante é fazer a foto mais do que viver a experiência. Tem pressa o que manda a mensagem e tem pressa quem recebe.

    Por outro lado, seria interessante comprovar as horas que passamos conectados. Não importa o conteúdo, mas seu entretenimento. Não há espaço para mais enquanto estamos nesse intervalo no qual, na verdade, não acontece absolutamente nada. Porque o importante está dito com poucas palavras. Porque o que importa realmente acontece. O resto é mera distração.
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    Fonte: elpaissemanal@elpais.es 06/09/2015

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